São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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O prestigiado editor francês Maurice Nadeau, que está completando 90 anos, relembra os autores que lançou, como Samuel Beckett e Roland Barthes, e diz que a literatura hoje parece "coisa de intelectuais lunáticos"

O guardião do templo

por Leyla Perrone-Moisés

Maurice Nadeau acaba de completar 90 anos e sua revista, "La Quinzaine Littéraire", 35 anos de publicação. Duas datas que merecem ser comemoradas. A festa de aniversário da "Quinzaine" reuniu, em março, um grande número de intelectuais parisienses. Jacques Derrida, Hélène Cixous, Michel Deguy, Denis Roche, Elisabeth Roudinesco e dezenas de outros escritores se comprimiam nas duas salas da revista para homenagear o seu editor. A variedade de especializações e tendências ali representadas demonstrava o alcance das atividades de Nadeau, o reconhecimento por seu longo e incessante trabalho, a estima pela qualidade do homem e de suas realizações.

Ter uma longa existência não é um mérito, mas uma sorte. Entretanto atingir uma idade avançada tendo participado ativamente da vida intelectual e política de seu país, durante mais de meio século, e ter conservado tal integridade, é um feito merecedor da maior admiração. De fato, não houve acontecimento político ou literário do século 20 francês em que Nadeau não estivesse, de alguma forma, presente.
Contar a sua vida e as suas atividades não é fácil. Ele mesmo narrou algo de suas experiências num livro: "Grâces Leur Soient Rendues - Mémoires Littéraires" (Paris, Albin Michel, 1990). Sua real modéstia, visível desde o título do livro (que é um agradecimento), impediu-o de contar ali tudo o que fez. Ele alega que tem péssima memória, o que não é verdade.
Maurice Nadeau nasceu em 1911, numa família "proletária" (termo marxista que ele usa). Seu pai foi o que se chama no Brasil um bóia-fria, e sua mãe gastou prematuramente sua saúde como faxineira. O menino Nadeau beneficiou-se dessa notável (e agora ameaçada) instituição que é o ensino republicano, público e gratuito. Como era normal naqueles tempos de Frente Popular, o jovem Maurice tornou-se primeiramente um militante comunista. A pouca atenção dada pelos comunistas franceses à ascensão de Hitler fez com que ele discordasse do partido, que o excluiu. A leitura de Trótski, na mesma ocasião, abriu-lhe outros caminhos.
Ao mesmo tempo, leu os surrealistas, e com eles descobriu Lautréamont e Rimbaud. Começou então a trabalhar numa história do movimento surrealista, o que não agradava muito a Breton e seus companheiros, pelo fato de estes considerarem que essa história ainda estava em curso. Veio a guerra, e Nadeau era professor primário. Por sugestão de Merleau-Ponty, foi procurado por Sartre, que organizava uma rede de resistência à ocupação alemã. Depois de algumas reuniões secretas e algumas prisões, a rede foi desfeita.
Em 1945, Nadeau publicou sua "Histoire du Surréalisme" e foi contratado pelo jornal "Combat" (que fora o órgão clandestino da Resistência), onde passou a trabalhar ao lado de Camus e outros escritores já famosos. Em pouco tempo, tornou-se editor literário do jornal. Como tal, pôs-se a publicar novos autores, como Roland Barthes, que saíra recentemente do sanatório e lhe foi apresentado por amigos.

Participação política Desde então, Nadeau não cessou de "descobrir" talentos, revelando uma intuição e uma teimosia notáveis. Como crítico literário de "France Observateur" e de "L'Express", como diretor de revistas, em particular "Les Lettres Nouvelles", publicou de primeira mão os textos de Beckett e dos autores do "nouveau roman". Aliás, foi ele quem escreveu e publicou o primeiro artigo sobre Beckett. Como editor, revelou aos franceses autores nacionais, como Georges Perec, e estrangeiros, como Henry Miller, Malcolm Lowry, Witold Gombrowicz e Leonardo Sciascia. A literatura brasileira também não tem escapado à sua atenção. Ele publicou, nos anos 70, Osman Lins e, recentemente, Mário de Andrade.
Enquanto isso, conheceu pessoalmente inúmeros escritores notáveis e de muitos se tornou amigo. Sua ação não se limitava à edição. Apenas um exemplo: interveio efetivamente em favor de Artaud, quando este sofreu a ação da censura e, posteriormente, quando ele esteve internado. No terreno político, sua coragem comprovou-se na co-redação, em 1960, do "Manifesto dos 121", texto de denúncia e de desobediência civil em favor da libertação da Argélia, no momento em que a França ali guerreava para manter a colônia. Esse manifesto foi assinado por Sartre, Simone de Beauvoir, Jean-Pierre Vernant, Marguerite Duras, Nathalie Sarraute, Maurice Blanchot e outros.
Em 1966, Nadeau fundou a revista "La Quinzaine Littéraire", que vingou e prosperou graças ao apoio de escritores renomados, que nela colaboraram gratuitamente, ajudando-a também materialmente em seus momentos de crise financeira. Enquanto isso, sua obra pessoal foi acrescida de um novo livro, "Gustave Flaubert, Écrivain" (Gustave Flaubert, Escritor), que recebeu o Grande Prêmio de Crítica de 1969.
Muito mais haveria a dizer da longa e bela trajetória de Maurice Nadeau, cujo estilo direto, seguro e despretensioso os leitores poderão aferir pela entrevista que ele concedeu ao Mais! recentemente, entre mil afazeres e compromissos, sentado a uma mesa da "Quinzaine" e tendo por fundo o colorido Centro Georges Pompidou.

Em suas "memórias literárias", você diz que, quando jovem, ficou impressionado com a frase de André Breton: "A literatura deve levar a algum lugar". Eu lhe pergunto agora: a literatura do século 20 levou-nos a algum lugar?
Essa frase tinha, para mim, um sentido político. Para Breton, não era político. Era na esteira de Rimbaud: "A literatura deve mudar a vida". Para mim, isso tinha outra significação. Eu acreditava que a arte devia mudar não apenas a vida, mas também mudar o mundo. Era uma idéia primária, que os soviéticos aplicaram. Eu os segui por algum tempo.
Quando estudante, fui um propagandista da literatura proletária. Escrevia em jornais do Partido Comunista, em revistas luxemburguistas (de Rosa Luxemburgo) e trotskistas. Era a guerra, a ocupação. À frente do palco estava Sartre, que falava de uma literatura engajada. Ele acusava Flaubert de ter sido responsável pelo massacre da Comuna, por não ter dito nada na ocasião.


Os autores mudaram de atitude, não querem mais ser Balzac ou Tolstói; o meio tornou-se uniforme, com a globalização; os escritores pertencem a um meio protegido, à pequena burguesia satisfeita; o que eles fazem, agora, são descrições anatômicas


Isso me deixou com o pé atrás. Eu já havia passado, então, pela descoberta do surrealismo, de Breton e dos outros e estava embebido disso. Então, quando criei a revista "Lettres Nouvelles", nos anos 50, era em reação contra Sartre e esse engajamento banal, imediato.
Eu era flaubertiano. Flaubert defendia a "arte pela arte", a torre de marfim. Ele queria ignorar seu século, pensava até em publicar sua obra mais tarde. Mas eu dizia: "Madame Bovary" é a vida de uma pequena provinciana, é a província profunda, a classe média. "A Educação Sentimental" é toda a Revolução de 48, o modo como Frédéric a vive. Enfim, há toda a agitação do século na obra desse partidário da "arte pela arte". Sem fazer política, Flaubert analisou a vida social e política. Outro que me fascinava era Kafka, e este é um exemplo do verdadeiro engajamento, o engajamento na literatura. É a literatura que fala. Não é o indivíduo, não é Voltaire, não é Sartre. Essa era minha posição, que não mudou.
Penso efetivamente que a literatura deve levar a alguma parte, que não deve ser mero estetismo. Minha posição é um pouco a de Gide: um livro só existe se ele muda não apenas o autor, mas também o leitor. A literatura leva a algum lugar, sim...
Mas tudo isso é coisa do passado, fora de moda. O que a literatura busca, hoje, é o sujeito, o indivíduo, o corpo. O social não existe mais, ou melhor, existe, mas não se dá atenção a ele. Por exemplo: publiquei recentemente o livro de uma moça que trabalha com os imigrantes, os sem-teto, que faz ateliês de escrita, teatro na rua... Esse livro não encontrou nenhuma audiência. As pessoas pensam: essa gente existe, mas eles se defendem por si mesmos, não é a literatura que os vai ajudar. A "literatura" parece, agora, uma coisa de intelectuais lunáticos.
Os autores mudaram de atitude, não querem mais ser Balzac ou Tolstói. O meio tornou-se uniforme, com a globalização. Os escritores pertencem a um meio protegido, à pequena burguesia satisfeita. O que eles fazem, agora, são descrições anatômicas. Antes, o sexo era um tabu. Quando publiquei Henry Miller, foi um escândalo. Miller, agora, parece uma menina de primeira comunhão. Até as mulheres se puseram a contar suas histórias, que são mais ou menos interessantes. Para que esse tipo de relato seja literatura, é preciso que seja mais do que um relato, é preciso que fale aos outros, numa certa linguagem.
Espero, entretanto, que haja mudanças. Mas não são os franceses que vão mudar isso. Os franceses estão na rabeira, não tomaram consciência de muitas coisas, primeiramente de que não são mais eles que reinam. Nesse momento, estou relendo "Ana Karenina" (de Tolstói, no Brasil publicado pela Ediouro). O esnobismo russo era, então, falar francês. Agora o mundo inteiro fala inglês. Os escritores franceses atuais suportam o peso dos antigos e sabem que não são muito ouvidos em outros países. Os americanos não conhecem Claude Simon, Prêmio Nobel de 1985. Ele teve muita dificuldade para ser traduzido lá, os americanos não estão interessados nessas questões de técnica romanesca. E somos nós que, desde a Segunda Guerra, sofremos a influência deles. Em matéria social, os americanos têm suas próprias histórias. Elas deveriam coincidir com a história francesa, mas tudo na França é um pouco estreito, um pouco burguês. Proust foi uma grande coisa literária e uma pequena coisa social: o Faubourg Saint-Germain.
Apesar disso, você continua descobrindo novos escritores na França. Foi você que publicou o primeiro romance de Michel Houellebecq, não foi?
Sim. Ele tinha um lado que me interessava: o tédio dos jovens executivos da informática, que não sabem o que fazer de seu tempo e de suas vidas, que são como máquinas. Fui eu que o publiquei, mas preciso dizer que ele insistiu muito. Houellebecq se apresentou e me disse: "O senhor publicou Perec, eu sou o novo Perec, é preciso me publicar". Ele insistiu durante um ano. Eu não tinha muita vontade, porque o que me interessa num escritor é a escrita, o modo como se sai da vida cotidiana, da banalidade, pela criação verbal. Não encontrei isso em seu livro. Mas, enfim, ele falava bastante bem das coisas. Eu não me interessei pelo romance seguinte, "As Partículas Elementares" (ed. Sulina). Ele o deu a outro editor e foi um grande sucesso de venda. É normal, porque era muito mais fácil, mais estereotipado, como um esquema.
Voltando às perguntas gerais: em suas memórias você diz, com excessiva modéstia, que tem sido apenas um intermediário, "um servidor de diversos mestres", como "um guardião do templo em defesa de uma causa que nos ultrapassa a todos". Você ainda é o "guardião do templo"?
Agora eu não diria mais isso. Não guardo nada e não sei se o templo ainda existe. Enquanto ainda estou em atividade, as coisas acontecem por uma espécie de velocidade adquirida, prossigo em função de um passado. Não sou eu que vou buscar as pessoas, são elas que vêm a mim.
Mas as pessoas vêm porque sentem, em você, essa abertura.
A razão é simples. Eu não tenho obra, não escrevi uma obra. Fiz jornalismo. Fiz um pouco de crítica, com meu Flaubert. Mas nunca fui tentado pela escrita de uma obra. Ficar sentado a uma mesa, sem ver ninguém, não é a minha.
Você não lamenta não ter escrito mais?
Não, não lamento. Leonardo Sciascia, que eu editei na França, disse a meu respeito: "Nadeau não precisa escrever porque, quando ele publica os livros dos escritores, pensa que foi ele quem os escreveu" (risos). É um pouco isso. Os escritores que editei são um pouco eu. Mas eu posso me recuperar, antes do fim, já que me dizem: "É preciso reunir os seus artigos!". Isso não me interessa tanto assim. Se alguém quiser reuni-los, eles estão lá, nos vários jornais e revistas em que saíram. Eu ficaria lisonjeado, como qualquer um, mas não tenho um desejo louco de vê-los republicados. Eu nunca tive um método, uma doutrina. Meus textos são uma reação àquilo que li, é crítica impressionista. Não fiz nenhuma tese. Várias universidades me propuseram um doutorado "sur travaux", com a história do surrealismo... Eu recusei, seria ridículo, e além disso para que serve um título?
Sente-se, aliás, lendo suas memórias, certa rejeição pelos "doutores estabelecidos", que você chama de "betoneiros especializados", linguistas, semiólogos etc. Você encorajou, entretanto, alguns desses especialistas, como Roland Barthes, de quem você publicou o primeiro texto.
Eu publiquei Barthes não porque ele era semiólogo, mas porque eu o achei inteligente. Eu lhe disse: "Por que você não escreve?". Ele me deu um artigo. Quando me volto para o meu passado, percebo que é o lugar onde se está, a função que se ocupa por acaso, que faz com que as coisas aconteçam. Por que Barthes veio ao meu encontro? Não sei. Por que publiquei Henry Miller ou Gombrowicz? Porque eu estava lá, podia escutá-los e dizer: "Sim, isso me interessa". É portanto o lugar, a sorte.
Mas ter estado tão frequentemente no bom lugar e no bom momento não é apenas o acaso. Ainda sobre Barthes: qual das suas obras você considera a melhor?
Não sei, porque essa é uma pergunta que eu fiz a mim mesmo. Barthes foi muito flutuante em seus escritos. Primeiro, foi tocado pelo marxismo. Depois, descobriu o existencialismo, a psicanálise. Leu Saussure, Blanchot, Lacan etc. Sofreu uma série de influências às quais ele soube dar sua marca própria. Não creio que ele tenha uma originalidade, como Foucault, como Derrida. Mas tem uma inteligência e uma lucidez acerca das coisas. Também publiquei, mês após mês, as suas "Mitologias". Era difícil arrancá-las dele! Todo mês eu tinha de telefonar, lembrando. Ele sabia analisar uma imagem, fazer, ao mesmo tempo, jornalismo e reflexão. E nisso ele era realmente prodigioso, de uma agilidade extraordinária. Ele sempre me seduziu por essa plasticidade. Tinha a faculdade de penetrar numa obra, de alimentar-se dela e restituí-la à sua maneira. Dizer isso não é diminuí-lo, porque isso é mais do que uma habilidade, é uma grande inteligência. Os livros dele que eu prefiro são ainda "Mitologias" (ed. Bertrand Brasil) e seu "Barthes por Ele Mesmo".
Em suas memórias, você fala dos "santos" de seu "altar". De todos os escritores que você frequentou, quais são aqueles que conservam sua estima?
Continuo tendo uma grande afeição por Henry Miller, que não considero como um escritor muito grande, mas alguém que sabia que a literatura deve levar a algum lugar, justamente. Conheci-o bem, em Paris e por uma centena de cartas que ele me mandou. Ele era não apenas uma pessoa encantadora, mas alguém que fazia de sua escrita uma vida. Mas reconheço, agora, que ele não tinha o dom sagrado da escrita. Aqueles aos quais tenho voltado são escritores que não publiquei, mas conheci. Por exemplo: (Georges) Bataille. Foi alguém que mudou algo na atmosfera intelectual de nosso país, mais do que Breton. Há outros que eu reverencio, como Maurice Blanchot. Ele não é um modelo, porque um modelo pode ser imitado, e ele está em outro plano, tão acima... É um homem admirável. Dentre aqueles que publiquei, Gombrowicz, Sciascia. Outros permaneceram desconhecidos, como o americano John Hawkes. Eu me esforcei por divulgá-lo, mas não funcionou. Agora os universitários americanos fazem colóquios a seu respeito. É um escritor que eu continuo apreciando.
E Beckett?
Sim, Beckett... Com Beckett podíamos passar horas sem dizer nada e sem nos sentir incomodados com isso. Era uma presença. Trocávamos algumas palavras, de tempo em tempo. Éramos amigos, como se pode ser amigo de uma dessas pessoas que nos sobrepujam por toda a sua altura. Era alguém que vinha me ver, com quem eu ia tomar um trago, que me dava sempre suas peças para ler antes de entregá-las ao seu editor, Lindon. Depois de sua morte, mexendo em meus papéis, encontrei uma peça que ele me havia dado, dizendo: "Não a publique, não vale nada". O título era "Eleutheria" e, de fato, não era das melhores. Uns americanos que editam a correspondência dele vieram me ver, e eu lhes mostrei esse texto. Eles disseram: "É uma peça conhecida". Fiz a bobagem de lhes dar uma fotocópia e eles a publicaram nos Estados Unidos, e depois Lindon a publicou aqui. Era um inédito, imagine! Não a deviam ter publicado, pois Beckett não queria, mas enfim...
Com Beckett, minha relação era particular. Era mais do que admiração. É próprio dos grandes escritores: a gente gostaria de entrar dentro deles, e aquilo que eles dizem, a gente gostaria de dizer. Beckett era assim, essa absorção. Ele absorvia o interlocutor justamente por sua indiferença e sua frieza aparentes. Alguns meses antes de sua morte, vi-o no Luxembourg, ele mancava, por causa de um problema na anca. Não ousei abordá-lo. Recentemente recebi um catálogo de livros raros e vi ali: "Beckett nas "Lettres Nouvelles'". Editaram as peças dele que eu publiquei na revista e agora as vendem em plaquetes! Lembrei-me de que tinha encerrado um dos avatares das "Lettres Nouvelles" com um texto dele, "Cendres". Havia um desenho, era um operário demolindo uma casa que ele construíra...
E qualquer um pode se apoderar, assim, desses textos?
Quando Jack Lang me deu o Grande Prêmio Nacional das Letras, ele me disse: "Vamos reeditar as "Lettres Nouvelles'". Devia ser uma iniciativa do Estado. Não o fizeram, e foi melhor assim. Mas havia ali muitas coisas. Além das de Beckett, havia as peças de Adamov, de Ionesco... "Le Planétarium", de Nathalie Sarraute, que saiu em forma de folhetim... Os primeiros textos de Claude Simon... Eram pessoas que não ousavam se apresentar aos grandes editores. E eu tinha a casa aberta, recebia gente, escutava o que me propunham. A porta estava sempre aberta. Para o trabalho que eu queria fazer, isso era necessário. Quando se escreve uma obra, a gente se põe ao abrigo, fica recluso, e eu sempre fui o contrário disso. Eu recebo as pessoas.
Permita-me dizer-lhe que é mais do que isso. Eu sempre o vi interessado por tudo e por todos, pelas literaturas estrangeiras, numa época em que os franceses traduziam pouco.
Depois da Segunda Guerra, eu publicava mais autores estrangeiros do que franceses. Agora se traduz muito -e qualquer coisa. Os estrangeiros são publicados por todos os editores, enquanto os franceses se encolhem com suas pequenas histórias. Houve um descentramento, as coisas acontecem alhures. Há as minorias... É muito espalhado e comercial. Não vou mais ao Salão do Livro. Quando tínhamos lá um stand da "Quinzaine", as pessoas passavam e nos olhavam. Nos primeiros anos, isso nos divertia. Depois nos cansamos. Agora é um supermercado, cheio de livros para a juventude, histórias em quadrinhos. A literatura de criação não interessa mais.
Entretanto, a "Quinzaine" está comemorando seus 35 anos em plena forma, gozando de um grande prestígio nacional e internacional. Querendo aproveitar sua experiência vitoriosa como editor de revistas literárias (no plural), gostaria de saber que conselhos você daria aos jovens jornalistas culturais?
As condições no Brasil devem ser muito diferentes. Eu mesmo me beneficiei de circunstâncias bem diversas das que existem hoje. Alguém me contratou num grande jornal, "Combat", quando eu não era nada. Não fiz curso de jornalismo, não fiz estudos especiais. Eu queria "falar dos livros" e me disseram: "Sente-se e fale dos livros". Era incrível, pois se tratava do jornal de Camus, de Sartre, de Malraux etc. Depois passei por oito ou nove editoras como diretor de edição. Quando não se tem nenhum capital, a gente vende sua força de trabalho. Eu vendi a minha, mas sempre com essa condição, impossível nos dias de hoje: "Eu trabalho para vocês, mas vocês me deixarão fazer aquilo que eu quiser". Eles aceitaram! Depois, com os outros, coloquei isso no contrato.
Sempre fiz o que queria. Não tinha dinheiro para editar por minha conta, mas finalmente vi que podia fazê-lo sem dinheiro. A prova é que o fiz. A "Quinzaine" funciona, e não há ninguém por detrás, somente eu. Não tem capital, não tem um órgão de imprensa ou uma grande editora por trás. Há uma sociedade, porque isso é legalmente obrigatório. Coloquei nela um amigo dentista, que me deu 10 mil francos de seu bolso e me disse: "Pronto, você é acionista, agora somos dois para fazer a "Quinzaine'". Podem-se fazer coisas sem dinheiro!
Há um estilo "Quinzaine", que se reconhece mesmo naqueles que se iniciam na revista. Qual é o segredo da "Quinzaine"?
É primeiramente o fato de que os colaboradores não ganham nada e por isso dão o máximo de si (risos). Não posso usar jornalistas, porque os jornalistas têm de ganhar a vida, têm sindicatos etc. Os que escrevem na "Quinzaine" são pessoas livres, universitários, amadores, gente de boa vontade. É muito estranho! Se fosse um jornal de partido, confessional, religioso, isso se compreenderia. Mas aqui as pessoas se mobilizam pela literatura, por essa "causa"! Muita gente deu seus primeiros passos aqui: Angelo Rinaldi, que depois foi para a revista "L'Express"; Hector Bianciotti, que daqui foi para "Le Nouvel Observateur" e de lá para a Academia Francesa. Todos passam pela "Quinzaine", esperando o momento de ganhar suas vidas. É uma espécie de iniciação. Seria preciso que um sociólogo se interessasse por isso: uma empresa que funciona sem dinheiro! É muito curioso! Não é uma grande empresa. Mas tem entre 30 mil e 40 mil leitores e assinantes em toda a parte do mundo, em 70 países. Eu os contei.


Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).


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