São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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A história que não foi

Boris Fausto imagina como seria o Brasil se Getúlio Vargas não tivesse adotado a unidade sindical e suprimido a democracia

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

O historiador francês Fernand Braudel, integrante da chamada Escola dos "Annales", costumava dizer, a propósito de sua monumental obra "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Felipe 2ø", algo mais ou menos assim: "Convivi com Felipe 2ø por mais de 30 anos e cheguei à conclusão de que não gosto dele".
Lembro a frase de Braudel, sem nem em sonho pretender me comparar a ele, para abrir caminho a uma paráfrase: "Convivi com Getúlio Vargas durante quase toda a minha vida e não sei se gosto dele ou não; ou, melhor ainda, "gosto e não gosto'".
A convivência -diga-se de passagem- nunca foi pessoal, e sim no plano da imagem e do pensamento.
Um percurso que vai desde o "retrato do velho", conferindo respeito à sala de aula do ginásio em que estudava, passando pelo jornal de atualidades projetado na sala escura dos cinemas, até o interesse intelectual pelo período Vargas, que desembocou, recentemente, num livro que busca traçar a figura humana e política do protagonista ["Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (2006), Companhia das Letras].
Daí meu particular interesse em especular sobre as razões que levaram um expressivo grupo de nossa elite intelectual, política e empresarial a escolhê-lo, majoritariamente, como "o maior dos brasileiros", em pesquisa realizada há algumas semanas [e publicada em 1ø/4] pela Folha.

O que Getúlio foi
Uma conclusão me parece clara. O Getúlio promotor do desenvolvimento econômico, da unidade nacional, dos direitos outorgados aos trabalhadores soterrou, nessa escolha, o Getúlio ditador do Estado Novo (1937-1945), que suprimiu as liberdades democráticas, estabeleceu a censura e, por seus prepostos, prendeu pessoas por razões políticas e encobriu a prática da tortura.
Indício de que, para uma parte da nossa elite -e não apenas para a grande massa popular-, um regime autoritário, em determinadas circunstâncias, pode ser não só um mal necessário mas até um instrumento importante para promover um Brasil maior.
A figura desse personagem central da vida política brasileira que foi Getúlio se abre a um tema historiográfico significativo.
A necessidade que tem o leitor de livros de grande circulação, em particular os biográficos, de chegar a conclusões sem claros e escuros.
Na minha experiência getuliana, recebi várias interrogações, embutindo uma certa censura por ter me colocado, aparentemente, em cima do muro: afinal de contas, Getúlio foi uma figura positiva ou negativa na história brasileira?
Ou, dito de outra forma, Getúlio foi ou não um estadista?
Ora, "o nosso querido baixinho", para uns, "o maquiavélico ditador vindo dos pampas", para outros, na divisão apaixonada das facções políticas de seu tempo, tem o grande mérito, do ponto de vista histórico, de não se prestar a maniqueísmos, combinando aspectos positivos e negativos, muitas ambigüidades, numa carreira aberta ainda a tantas especulações.

O que o Brasil teria sido
Uma maneira interessante de examinar o papel político de Getúlio é a de explorar alternativas da história a contrapelo, ou seja, os caminhos que o país teria tomado caso algumas alternativas não tivessem sido vitoriosas.
Tomo aqui dois exemplos que me parecem significativos, em áreas diversas, mas interligadas: o da instituição dos sindicatos, segundo o princípio da unicidade e sob a tutela do Estado, desde os primeiros meses do Governo Provisório [1930-33]; e o da decisão de impor, em 1937, a ditadura do Estado Novo.
Ambas as coisas não estavam inscritas, necessariamente, nas tábuas das leis da história, ainda que os ventos estivessem a seu favor.
O que teria acontecido se a pluralidade sindical, consagrada na Constituição de 1934, com forte apoio da Igreja Católica, tivesse sido implantada, proporcionando maior liberdade à organização sindical?
Por certo, muitos males teriam sido evitados, decorrentes de um sindicalismo dependente do Estado, via imposto sindical e outras benesses -e a figura do "pelego" talvez não tivesse existido.
Mas, ao mesmo tempo, as categorias de trabalhadores em setores menos vitais para a economia não ficariam, na prática, órfãs de representação e destituídas dos direitos fixados na legislação trabalhista?
Por outro lado, o que aconteceria se Getúlio, apoiado na cúpula do Exército e na ampla maioria das elites, não tivesse desfechado o golpe do Estado Novo?
Caso o processo eleitoral em curso tivesse seguimento, um dos candidatos já em disputa -José Américo de Almeida ou Armando de Salles Oliveira- teria sido eleito em 1938 e o Brasil poderia ter dado continuidade a um processo democrático sem interrupções, quem sabe até evitando o golpe militar de 1964?
Não seria falsa a disjuntiva daqueles tempos, expressa na fórmula "ou autoritarismo, segurança e desenvolvimento nacional ou democracia, com riscos de controvérsias, que perturbariam o desenvolvimento"?
Perguntas sem resposta comprovada pelos fatos, pois o limite da frutífera e imaginativa exploração mental, própria da história a contrapelo, é que ela só nos permite conjecturar.

BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de A Revolução de 1930 (Companhia das Letras).



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