São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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+ Sociedade

Um ilustre desconhecido

Lançado na Inglaterra, "Vargas e o Brasil" aponta falhas na historiografia do ex-presidente, como a relação com São Paulo

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A centralização dos documentos sobre Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, a competição entre historiadores paulistas e cariocas e, por que não?, a sedução dos brasilianistas pelo sol e pelas praias cariocas são alguns dos motivos apontados no livro "Vargas and Brazil" (ed. Palgrave Macmillan, US$ 74,95, R$ 152), recém-lançado na Inglaterra, para que ainda existam tantas brechas com relação a esse período na historiografia brasileira.
Organizada pelo alemão Jens Hentschke, da Universidade de Newcastle, a coletânea reúne textos de três gerações de brasilianistas. Entre os destaques, estão os de Jerry Dávila, da Universidade da Carolina do Norte ("Mito e Memória"), de Lisa Shaw ("Vargas em Filme"), da Universidade de Liverpool, e de James Woodard, da Universidade Brown ("Tudo para São Paulo, Tudo para o Brasil").
É justamente Woodard quem chama a atenção para o fato de que, tendo permanecido na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional, em vez de serem transferidos para Brasília, os documentos sobre Vargas só colaboraram para "pesquisadores que amam o sol e a areia, mas contribuíram para a miopia de certos historiadores estrangeiros".
Os textos reunidos apontam lacunas em diferentes aspectos da era Vargas: a falta de estudos sobre política regional -em especial, a relação com São Paulo-, a abortada corrida eleitoral de 1936/1937 e aspectos culturais do Rio na época, sem o ranço provinciano.
Leia os principais trechos da entrevista que Hentschke concedeu à Folha, por e-mail.

 

FOLHA - Do ponto de vista dos brasilianistas, como está a discussão sobre o legado de Getúlio?
JENS HENTSCHKE -
Hoje o que mais se percebe é uma distinção mais marcada sobre o que significaram modernização e desenvolvimento, da perspectiva daquela época.
Sem dúvida, o Brasil foi modernizado na era Vargas. A modernização é vista, de um modo geral, como a tentativa de países atrasados de alcançar as nações desenvolvidas por meio de um processo de industrialização rápida e da redução das diferenças.
É patente que Vargas estava profundamente interessado em ajudar o Brasil a superar seu status semicolonial e fazer dele uma "grande nação".
Porém o seu regime não criou uma economia auto-sustentável, uma sociedade mais igual e coesa e uma democracia liberal -ou seja, desenvolvimento.
Volta Redonda, por exemplo, tornou-se uma "ilha de modernização", sem a repercussão desejada no resto do país, gerando assim heterogeneidade estrutural. O regime de Getúlio Vargas negligenciou a agricultura e perpetuou as distorções regionais, sociais e étnicas.
Como conseqüência, o Brasil continuou sendo uma sociedade desigual, com uma instabilidade que só foi agravada com a ditadura militar.
Além disso, Vargas nunca acreditou em instituições representativas, mas sim no poder transformador de uma ditadura iluminada, apoiada em tecnoburocratas que consideravam problemas sociais, conseqüentemente, como sendo de natureza técnica.
Um regime cuja estratégia era "conservar melhorando" evitou reformas estruturais que estimulassem a ampliação da participação política.
Mesmo depois do fim do Estado Novo, Getúlio Vargas não reforçou a democracia representativa, mas organizou sua base política em partidos semicorporativistas e mobilizou as massas de modo direto, por meio de campanhas populistas cuidadosamente orquestradas.
Mas isso significava que a ele faltava uma maioria política estável para implementar novas políticas públicas quando essas fossem necessárias. Para salvar seu legado, o suicídio parecia ser a única opção.

FOLHA - Por que há tantas lacunas com relação a Vargas e São Paulo?
HENTSCHKE -
É impressionante o fato de que, 75 anos depois da "rebelião paulista" de 1932, um bom estudo sobre esse evento crucial para a história do Brasil ainda esteja por ser feito.
Para muitos estudiosos de fora de São Paulo e do Brasil, o episódio continua sendo uma contra-revolução das elites da República Velha contra Vargas. Ou seja, uma interpretação getulista.
Enquanto para as elites paulistas segue sendo a "Revolução Constitucionalista", um grito desesperado pelo retorno à democracia. Para estas, Vargas segue sendo um não-personagem.
Provavelmente não há nenhuma rua ou edifício público em São Paulo levando o seu nome.
Tentativas de reconciliar as perspectivas "central" e "regional" sobre o período são raras. E nunca entenderemos o Brasil de Vargas se não explorarmos as transformações regionais e fenômenos como o castilhismo no Rio Grande do Sul ou o surgimento de novos empresários industriais, em São Paulo.

FOLHA - Outra brecha apontada é a que se refere à segunda administração de Vargas. Por que nossa historiografia é parca sobre esse período?
HENTSCHKE -
Depois de 1985 os historiadores priorizaram pesquisas sobre o Estado Novo, então ainda um dos períodos mais desconhecidos na história brasileira. Os militares tentaram banir publicações sobre a "revolução" de Vargas que pudessem minar seu regime.
A esquerda, por sua vez, sob a influência da Revolução Cubana e so regime peruano de Velasco, tentou interpretar 1930 como parte de uma tradição militar esquerdista, colocando o foco nos tenentes.
A partir desse momento, a importância dos estudos independentes vindos de fora foi muito grande.
O sucesso do livro de Robert M. Levine ("The Vargas Regime - The Critical Years, 1934-38" [O Regime de Vargas - Os Anos Críticos, 1934-38]), no começo dos anos 1970, foi um marco.
A pesquisa pós-redemocratização revelou aspectos dos anos 30 e 40 sobre os quais os brasileiros pouco sabiam: Prestes, a Intentona Comunista, o papel de Moscou nesses conflitos e os diários de Vargas.
Agora, com a disponibilização de novos documentos, os anos 50 e 60 começam a ser o foco principal de muitos estudos históricos.
Mas isso ainda caminha lentamente.


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