São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007 |
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Das catacumbas para as massas
Sem o imperador Constantino, que adotou e financiou o cristianismo no século 4ø, religião não teria passado de "seita de vanguarda", diz Paul Veyne
Para o historiador Paul Veyne, o "inventor" do cristianismo viveu 300 anos depois de Cristo. FOLHA - Em seu último livro, o sr. defende a importância de Constantino como o real introdutor do cristianismo. O desenvolvimento da religião era inevitável ou Constantino teve papel fundamental? Ele é o "inventor" do cristianismo? PAUL VEYNE - Sim, Constantino é o inventor ou, acima de tudo, o "estopim" desse processo. Ele colocou em movimento essa organização, essa formidável máquina de enquadramento, esse "partido único" hierarquizado que é a igreja. Nunca devemos esquecer que o cristianismo é a única religião do mundo que é, ao mesmo tempo, uma igreja e uma organização. Não havia papas nem bispos no paganismo. Constantino se converteu por fé sincera mas também porque o cristianismo era espiritualmente e filosoficamente bem superior ao conto de fadas ingênuo que era o paganismo. O cristianismo, pela sua superioridade, era aos seus olhos a única religião digna do trono assim como o fato de qoe o imperador devia habitar o palácio mais belo. Constantino, homem de fé sincero, viu sobretudo um papel imenso a desempenhar na história universal. Ele faria a felicidade eterna da humanidade ao favorecer a verdadeira religião, enviar seus povos ao paraíso. Ele teria um papel gigantesco na história da humanidade. Um pouco como Lênin ou Trótski, que em 1917 disseram que fariam a felicidade material da humanidade estabelecendo o comunismo, o "paraíso soviético". Mas o papel de Constantino nunca foi o de converter pela força os pagãos, que compunham 90% da população do império. Isso seria irrealizável. Ele não forçou ninguém; não há mártires pagãos. Fez apenas duas coisas. Primeiro, decidiu que o cristianismo era a religião "pessoal" do imperador, "sua" religião pessoal. O império e suas instituições continuavam pagãos, ainda que os ambiciosos tenham se convertido para agradar o imperador. Segundo, ele favoreceu, sustentou e financiou a igreja. Então essa organização formidável, essa máquina que era a igreja, se pôs em marcha e se impôs como novo hábito, como novo conformismo. O bispo se tornou o grande personagem em todos os lugares, a grande autoridade moral. Isso impressionava as pessoas comuns. Outro exemplo: enquanto um proprietário de terras rico se convertia por ambição, todos os camponeses e subordinados se convertiam também, por docilidade em relação ao mestre. Constantino teve um papel fundamental, desencadeando e sustentando essa formidável organização que é a igreja. FOLHA - A Europa tem "raízes cristãs" ou o cristianismo se desenvolveu no continente por razões históricas? VEYNE - O cristianismo se desenvolveu apenas por razões históricas, porque Constantino colocou a igreja no poder. Sem sua ajuda, o cristianismo não poderia ter se imposto, não poderia ter se enraizado. Era uma religião muito erudita e exigente, que não poderia ser nada além de uma seita de vanguarda, só para os particularmente crentes. De fato, o paganismo não era exigente, não obrigava as pessoas a respeitarem a moral, a ir à missa, a acreditar em dogmas. O paganismo não exigia nada e prometia bastante: boas colheitas, cura de doenças, viagens sem naufrágios. Enquanto o cristianismo primitivo não prometia nada (as pessoas se limitavam a obedecer a Deus) e exigia muito de seus fiéis. Era pesado demais. O cristianismo pôde se tornar a religião corrente de toda a população romana apenas quando deixou de ser muito exigente, quando tolerou que existissem pecadores e, sobretudo, quando passou a prometer a felicidade, como prometia o paganismo. Foi a partir do ano 400 que os cristãos passaram a pedir a Deus (e aos santos) a cura, viagens a salvo etc. E que eles passaram a oferecer ex-votos, como ofereciam os pagãos. E as pessoas passaram a pedir a Deus e aos santos boas colheitas, como faziam os pagãos. O cristianismo só se impôs quando incorporou um pouco do paganismo. FOLHA - O Brasil é o maior país católico do mundo, em número absoluto de fiéis. A partir do seu estudo, o que é possível inferir em relação ao desenvolvimento do cristianismo no Novo Mundo? VEYNE - Suponho que as coisas tenham se passado da mesma maneira como ocorreram no Império Romano. Os conquistadores espanhóis e portugueses e seus reis ajudaram na construção da igreja, cuja autoridade teve papel importante para as populações. A igreja se impôs, por sua autoridade e seu orgulho, como o novo conformismo, como a grande coisa a ser respeitada. FOLHA - Religiões são ideologias? VEYNE - Podem servir de ideologia ou pode não ser utilizada para isso. Uma religião pode servir para tudo: de pretexto para festas, para solenização dos grandes momentos da vida (batismo, enterro, casamento), hábitos étnicos (proibições alimentares), prever o futuro ou curar doenças. A religião serve para determinações morais, para explicar fenômenos naturais, para as utopias sociais ou políticas, para legitimar um poder político e uma sociedade. Também pode servir como ideologia de classe, para expressão de uma identidade nacional etc. E para o erotismo, quase me esqueci de mencionar! Ela pode servir de ideologia étnica... O cristianismo tornou-se uma ideologia e uma bandeira para uma comunidade apenas por volta do ano 500, quando quase todos os habitantes do império se tornaram cristãos. O cristianismo passou a servir então de símbolo de identidade. FOLHA - O mundo greco-romano representou a primeira "globalização"? Qual é a relação que pode ser estabelecida com o presente? VEYNE - Houve uma primeira globalização na Antigüidade, mas foi anterior ao Império Romano e ao cristianismo. Foi na época de Alexandre, o Grande, a partir dos anos 300 a.C. A civilização grega dominava a cultura "mundial", do atual Afeganistão (onde os budas são esculpidos como bacos) ao atual Marrocos. A língua grega ocupava o lugar que o inglês ocupa hoje. Os próprios romanos possuíam uma cultura grega, assim como o Japão atual é ocidentalizado... FOLHA - Após o 11 de Setembro, com a política antiterror do governo George W. Bush, o sr. considera que houve um retorno à idéia de que é necessário cristianizar o mundo para salvá-lo? VEYNE - Francamente não! A era Bush é só um incidente momentâneo, em via de se extinguir. É um episódio, como o macarthismo. É uma circunstância menor, não tem a dimensão de um evento histórico. Bush é um bufão momentâneo, um anão ridículo e sanguinário. Não é do tipo que muda o destino do mundo. 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