São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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Volume traz reunião de textos do historiador da arte Jorge Coli publicados no Mais! entre 1998 e 2000

Políticas do ponto de fuga

Teixeira Coelho
especial para a Folha

Gosto da forma breve. Nunca tive livro de cabeceira, mas sempre recorro às alusões rápidas de Valéry. Ou às reflexões mínimas de Wittgenstein sobre cultura. E às curtas proposições de Nietzsche sobre tudo. Não chamo de aforismos a esses textos enxutos porque nem todos quiseram ser "sentenças morais breves e concisas". Talvez nenhum. Detesto sentenças morais. Na forma breve vejo tentativas fulgurantes de apossar-se do próprio pensamento. Não são condensações do conhecimento do autor: são iluminações, haikus teóricos, "fósforos inesperadamente riscados no escuro" (Virginia Woolf). O que há de instigante no trabalho intelectual. Por isso recebo bem, desde logo, "Ponto de Fuga". Seus textos, bem mais extensos que os de Valéry ou Wittgenstein, são microensaios. Mas o essencial que procuro está lá: uma sugestão criativa aqui, ali um juízo cortante, sem justificativas, e a natureza de uma obra se revela em fratura exposta. Publicados no Mais! entre 1998 e 2000, tratam de tudo que se move em cultura: ópera, música erudita, cinema popular, literatura, artes. Talvez só a destinação inicial -coluna de jornal- permita a audácia de se abordar tudo que é cultural: ninguém pensaria em escrever um livro nessa perspectiva. Ótimo, porém, que tenham agora saído em livro: ganham outra dimensão, abrem espaço para uma imagem mais ampla do autor e do que escreve.

Imposições
Há, no volume, belos textos que envolvem o leitor em delicada sensação ao final da última frase -como "Branco", ao redor de Nova York, do impressionismo e do clima. E outros em que o autor se revela impiedoso crítico: em "Kitsch", demole uma exposição de Sérgio Ferro e, em "Mistificação", recusa Di Cavalcanti in limine. Em "Idolatrada, Salve, Salve!", repele, curto e grosso, um edital federal que em 1999, durante o governo FHC, estipulava temas obrigatórios para curtas-metragens que quisessem dinheiro oficial (coisa diferente de dinheiro público, digo eu): tinham de falar dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, de cultura popular, das culturas regionais. Um texto que, com a defesa por Coli feita de "Cronicamente Inviável", de Sergio Bianchi, muitos hoje em Brasília deveriam ler nestes dois anos de uma ideologia cultural que insiste em repetir o Estado Novo de Getúlio. O tom é pessoal, e isso é um ponto forte. Coli explica uma das regras auto-impostas para escrever a coluna: nunca usar a primeira pessoa do singular. Regra inútil, porque violada o tempo todo: talvez não haja no livro nenhum "eu" formal, mas nem por isso fica eliminada a intensa subjetividade do autor. Antes assim. Essa é sua regra sobre como escrever. Sobre o que escreve? Onde está seu ponto de fuga? Um rápido exame do índice onomástico mostra a trilha de incidências. O nome mais presente aparece nove vezes: Hitchcock. Oito menções para Kubrick, Clint Eastwood e Beethoven (essa mescla é bem a cultura, hoje). Sete para Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Almodóvar, quatro. Pessoa e Pasolini, três. Godard, uma. A insistência do cinema não será ocasional. Na peça "Luto", Coli diz que pelo menos nos últimos 50 anos o cinema se mostrou mais criador que as outras artes e mais reflexivo que muita teoria. Estou pronto para concordar que entre as maiores obras-primas do século 20 aparecem alguns filmes.

Mais Godard, menos Kubrick
Mas, com Peter Greenaway (quatro citações), num juízo de valor que não está neste livro, acho o cinema demasiado conservador (e vulgar, acrescento eu), ainda ilustrando o romance do século 19, nem chegando ao do século 20 (salvo exceções), nem sonhando ainda com Joyce, o cubismo. Talvez o cinema não tenha de passar por aí, é verdade. De todo modo, Kubrick me parece largamente superestimado, para não falar de Eastwood. A Hitchcock vejo como mito: apenas um mito ou todo um mito: e mitos não são para levar muito a sério. Isso para dizer que eu teria preferido mais Godard e menos cinema americano. Mas esse é apenas um ponto na reta de fuga de Coli -um feixe, não uma reta-, e essa divergência é irrelevante diante do modo como ele cobre um vasto panorama, feito de Corman e Wolfflin, Zeffirelli e Webner, Xuxa e Delacroix, Kiefer e Goeldi. Tudo que se move na cultura, quer dizer, tudo que é contemporâneo (toda a arte o é, para mim; o mesmo não digo da cultura), aparece no livro via comentários que sempre fazem pensar. E aparece na justa proporção geopolítica: um nome "nacional" para cada sete "de fora" (número até generoso com o "nacional": inevitável). Um ponto de fuga feito de erudição, porém erudição viva. A amplitude do leque multiplicará as discordâncias com os leitores: também inevitável. Cada um, porém, dele retirará sua cota de motivação.

Polimorfa e poliperversa
Há certa homologia entre a cultura contemporânea, fragmentada, polimorfa, felizmente polifônica, quando não poliperversa, e este livro, em cujo ponto de fuga o autor pode escapar de si mesmo tanto quanto de seus temas, e, estes, dele. Mas é esse traço pós-moderno (Coli não concordará com esse rótulo, talvez) que me atrai: a época dos tratados redutores se esgotou, resta agora navegar a miríade de correntes disparatadas e conflitantes, como aqui. Afinal, isso é a tal diversidade cultural, que só assim interessa, e não quando vem nos recortes-refúgio monomaníacos do nacional, do popular, do étnico ou, na outra face, apenas do estrangeiro, do erudito, do global. E pôr tudo isso num ponto de fuga é a melhor política.


Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e professor titular da Escola de Comunicação e Artes da USP. É autor de "Dicionário Crítico de Políticas Culturais" e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras).

Lançamento
O livro "Ponto de Fuga" será lançado no dia 23, às 18h30, na livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, SP, tel. 0/xx/11/3170-4033).


Ponto de Fuga
350 págs., R$ 38,00 de Jorge Coli. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, São Paulo, SP, CEP 01401-000, tel. 0/xx/11/ 3885-8388).



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