São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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+ cultura

O RÉQUIEM DE SÓFOCLES

19.jul.2000/France Presse
Atores encenam a peça "Édipo Rei", que faz parte da "Trilogia Tebana", no Coliseu,
em Roma


MARCADO PELA FORÇA DOS DIÁLOGOS E A AUSÊNCIA DE AÇÃO, "ÉDIPO EM COLONO" É ANTES DRAMA MORAL DO QUE TRAGÉDIA

Costumamos nos referir às tragédias que perfazem a saga de Édipo e sua família com o título de "Trilogia Tebana". Ao contrário do que normalmente se poderia pensar, os três dramas não foram escritos em ordem cronológica: em lugar da seqüência previsível ("Édipo Rei", "Édipo em Colono" e "Antígone"), Sófocles compôs "Antígone" em 441 a.C., "Édipo Rei" em 429 (425?) a.C. e "Édipo em Colono" em 406 a.C., pouco antes de morrer.
Quase 20 anos separam o "Édipo Rei" do "Édipo em Colono", e, para que se tenha uma idéia do significado desse período na história de Atenas, basta lembrar que, em 431 a.C., começa a Guerra do Peloponeso, concluída em 404 a.C., com a capitulação da cidade. Também no que concerne aos acontecimentos das duas peças, verifica-se uma distância temporal considerável.
No "Édipo em Colono", deparamo-nos com um herói idoso que, depois de errar longamente como mendigo, amparado por Antígone, repousa num bosque sagrado, em Colono, nas cercanias de Atenas. Sua saída de Tebas não se dá logo após o esclarecimento dos episódios catastróficos de sua vida, mas quando, tempos depois, ao reavaliar seus atos, conclui ser inocente. Ao rememorar esses episódios, Édipo faz uso da argumentação jurídica, no estilo forense, tão apreciado pelos atenienses: "Responde a uma pergunta apenas: se alguém agora viesse te matar, a ti, tão justo, indagarias se é teu pai o assassino, ou no ato o punirias? Se tens amor à vida -penso-, o vil punirias, sem o exame do direito. Foi como eu me meti num mal assim, numes à frente. Se a ânima do pai vivera -creio-, não me refutaria". (versos 991-999)
Esse tom oratório é recorrente nos diálogos da peça. Creonte baseia sua tentativa de levar Édipo de volta a Tebas num pressuposto falso, que ele apresenta como aparentemente óbvio: segundo afirma, imaginava que o tribunal do Areópago proibiria a permanência de um parricida em Atenas.
O que está por trás desse raciocínio caviloso é uma crítica ao próprio Teseu, líder de Atenas, que teria acolhido o ex-monarca tebano ao arrepio da lei. Contra a colocação de Creonte, duas objeções poderiam ser formuladas: se as leis vigentes impediam Atenas de acolher Édipo, não haveria motivo para ele tentar resgatá-lo à força; por outro lado, seria necessário demonstrar o caráter criminoso dos atos praticados por Édipo. O rei exilado defende-se com base no segundo argumento, como se vê no trecho citado acima e no que menciono a seguir, antecedido pela peroração de Creonte: (Creonte) "A um matador-do-pai, um maculado -pensei-, alguém cujo himeneu/
mostrou-se tão impuro, jamais o acolheriam. No pico de Ares -sei- o sábio/ Areópago, em conselho, não deixa a um vagabundo morar assim, qual cidadão, na pólis. Fiando-me nisso, pus as mãos na presa". (versos 944-950)
(Édipo) "Responde: o oráculo previu ao pai que o filho o mataria; como vens censurar-me justamente, se a semente vital máter-paterna não existia e eu era um não-nato? Se vim à luz qual vim, alguém sem sorte, e às vias de fato com meu pai, matei-o, nada sabendo contra quem agia, reprovar-me por ato involuntário é razoável?" (versos 969-978)
A expulsão de Tebas explica o rancor de Édipo contra Creonte e Polinices. A agressividade do diálogo que o herói mantém com esses dois personagens revela que o tempo transcorrido não esmoreceu sua têmpera. O mesmo personagem voluntarioso do "Édipo Rei" vai se manifestando à medida que ele se dá conta da dimensão exata de seu novo poder, o tutelar.
Logo no começo da peça, Édipo cita a previsão do oráculo, segundo a qual ele protegeria o local em que morresse. No diálogo com Ismene, esse informe torna-se mais preciso: segundo consultores délficos recentes, a cidade em que Édipo fosse enterrado ficaria livre do ataque inimigo, e, por esse motivo, Creonte e Polinices tentariam levá-lo, não a Tebas, que o condenara por parricídio, mas às cercanias da cidade, onde seria sepultado. A peça se estrutura ao redor de diálogos, e não propriamente de ações.
No âmbito dos acontecimentos, praticamente o único (excluída a tentativa frustrada de seqüestro por parte de Creonte) é o referido pelo mensageiro, a cena extraordinária em que o segredo da morte de Édipo -sua transformação em herói propiciador da região ática- é revelado exclusivamente a Teseu, que, desde o início, protegera o ex-rei tebano.


O infortúnio de Édipo é um dado irreversível; nada pode agravá-lo ou remediá-lo, nem mesmo o fato de o personagem não ser criminoso


É curioso notar o aspecto da biografia de Édipo que motiva inicialmente o apoio de Teseu, pois ele nos dá uma idéia clara da dimensão cosmopolita da cultura ateniense. Segundo observa o filho de Egeu, foi o fato de Édipo ter enfrentado as vicissitudes da vida no estrangeiro que despertou sua simpatia.
Em certo sentido, Sófocles, em sua última peça, idealiza o perfil aberto e receptivo de Atenas, que agonizava àquela altura diante de Esparta, apoiada por Tebas na Guerra do Peloponeso (como se sabe, historicamente, a rivalidade entre Tebas e Atenas remonta às guerras persas e atinge seu auge em 431 a.C., no conhecido episódio de Platéia. Quanto à Guerra do Peloponeso, cabe registrar que, com a vitória de Esparta, Tebas se manifestou a favor da destruição total de Atenas):
"Recordo que também cresci no exílio como tu; mais do que ninguém,/ no exílio, minha própria cabeça pus em risco: não posso agora te virar as costas, negar ajuda a quem provém de alhures". (versos 562-566)
Pelo menos nesse primeiro contato com Édipo, Teseu vê semelhança entre a resistência do herói tebano, submetido à penúria da vida andarilha, e as agruras sofridas por ele mesmo no exterior. Entretanto a função de Teseu em "Édipo em Colono" não se resume a esse traço.
Os atenienses julgaram esse personagem mitológico um herói civilizador, símbolo da história multiempreendedora da cidade. Seria difícil resumir num breve espaço suas peripécias prodigiosas, sobre as quais Eurípides também escreveu em "As Suplicantes" e no "Hipólito". Mencione-se, a título de exemplo, que Teseu foi o responsável pelo extermínio do minotauro no labirinto de Creta. Voluntarioso, perspicaz, curioso, sensível à diversidade cultural, arrogante, justo são alguns dos adjetivos que caberiam igualmente a Édipo e a Teseu ou a Édipo e a Atenas, na visão desse amigo e colaborador de Péricles durante a revolta de Samos (441/0 a.C.) que foi Sófocles.
Não seria equivocado definir "Édipo em Colono" como um drama, mais do que como uma tragédia. Nele não encontramos nenhuma ação que provoque a ruína do personagem central. É justamente a falta de ação (não retorno a Tebas) que causa a desgraça de um personagem secundário (Polinices). O infortúnio de Édipo é um dado irreversível. Nada pode agravá-lo ou remediá-lo. Nem mesmo o fato de o personagem não ser criminoso. Se, por um lado, a reviravolta do destino está ausente desse texto -elemento fundamental na tragédia, segundo Aristóteles-, por outro nele não faltam situações dramáticas, desencadeadas particularmente pelos diálogos. É o que permite a Édipo manter presente, até o fim, a imagem vigorosa, contrastada com seu físico debilitado.
Trata-se de um drama moral, em que a grandeza do personagem se destaca sobretudo diante da pequenez de seus interlocutores antagonistas, Creonte e Polinices. Como registra o velho rei exilado, ele se tornou alguém quando já não era ninguém. E esse alguém em quem ele se torna, que, aos olhos dos chefes tebanos, vive nele apesar dele, se deve à sua função tutelar post mortem. Creonte e Polinices requerem a proteção do personagem, não a sua pessoa. O oportunismo político eclode em diálogos de construção admirável, nos quais Édipo alude não só à sordidez atual, mas também a fatos antigos, quando seus parentes assistiram passivamente à sua expulsão de Tebas. Anos transcorreram entre o banimento de Tebas e os diálogos mantidos na peça, mas esse longo hiato não altera em nada a índole do herói e a vilania dos dois membros de sua estirpe.
Não à toa, encontramos nessa obra dois comentários extraordinários sobre o tempo, nos quais entrevemos o pessimismo acerca da instabilidade das decisões humanas e da predominância da experiência negativa na vida:
(Édipo)
"Cronos, panforte, a tudo o mais/ consome. A terra perde o viço; o corpo, idem; confiança morre, desconfiança aflora e mesmo o sopro da alma entre/ os fraternos é mutável, como o é intercidades. A uns no presente, a outros mais à frente, o afeto azeda e logo após readoça. Teu convívio com Tebas te parece um dia de sol, mas Cronos, infinito em seu curso, infinita noite e dia, e a sintonia das mãos hoje estendidas, a lança anula-a por motivo frívolo". (versos 607-620)
(Coro)
(...) "O não ser nato
vence todo argumento. Mas,
advindo à luz,
o rápido retroceder
ao ponto de origem
é o bem de segunda magnitude.
Quando a neofase passa e a vanidade
da irreflexão,
qual golpe pluridor se exclui,
qual pesar não se inclui?"
(versos 1224-1232)
Consideradas da perspectiva presente de Édipo, piores do que as ações que lhe causaram desgraça no passado foram as atitudes tomadas por seus familiares diante de sua ruína. As primeiras -defende-se Édipo- foram ditadas pelos deuses; as segundas, pela ambição desmesurada. O que torna possível a Édipo fazer essa reflexão é que de certo modo também ele possui uma dimensão eterna, divinizada, enquanto futuro herói protetor. Não tivesse recebido esse poder perene, estaria reduzido à débil imagem com que se apresenta no início da peça. Esse aspecto acentua o tom patético dos diálogos que Édipo trava com seus inimigos. É evidente, em seu encontro com Creonte e Polinices, que, aos olhos dos dois, ele nada vale pelo que foi ou é, mas pelo que será, apesar dele. É em relação a essa situação que os debates adquirem maior tensão.
"Édipo em Colono" é a mais extensa tragédia grega que chegou até nós (1.780 versos). Para helenistas eminentes do início do século 20, como Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff e Adolf von Mueller, a peça careceria de unidade e de tensão dramática, defeitos que atribuem à idade avançada de Sófocles ou à intervenção de um autor menor, responsável pela alteração de características originais da obra. Wilamowitz considera, por exemplo, desnecessária a presença de Ismene (um mensageiro teria sido suficiente) e excessivamente longa a distância que separa o anúncio da morte de Édipo de sua ocorrência. Mueller, no mesmo sentido, opina que tampouco Polinices influi na ação e que nada haveria de dramático no fato de um velho "querer acabar com sua vida miserável".
Cabe indagar se, ainda hoje, nos devemos restringir a critérios de unidade da ação e de tensão dramática na leitura da peça. Se partirmos do princípio de que nenhum revés poderia agravar a condição de Édipo, seremos levados a buscar o interesse da tragédia em outro ponto. E esse interesse não é pequeno. Aos 90 anos de idade, Sófocles compôs um réquiem. A melancolia de Édipo não deriva da reavaliação de sua própria situação nem de algum episódio inusitado, que pareceria artificial no caso de alguém chegado ao extremo da privação.
Presenciamos a amargura serena de um olhar em perspectiva, voltado para o passado tebano e para o seu presente, no qual perdura a mesma sordidez moral de outrora. A persistência do vício no âmago de sua família, entre sua saída de Tebas e sua chegada a Colono, não deve ser considerada um dado insignificante na estrutura do drama, pois é ela que permite a Édipo e ao coro formularem comentários pesarosos sobre o tempo e a experiência humana. Assistimos a um personagem que, prestes a alcançar a sobrevida, observa pela última vez o poder devastador da ambição que corrói o governo em Tebas e destrói sua família. É a grandeza de sua manifestação indignada e inflexível que constitui -pode-se dizer- a grandeza da última tragédia de Sófocles.

Trajano Vieira é professor de língua e literatura gregas na Universidade Estadual de Campinas, autor de "As Bacantes de Eurípides" (Perspectiva), entre outros livros. O texto acima faz parte do livro "Édipo em Colono de Sófocles", que será publicado pela mesma editora.


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