São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
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LIVROS
Todos os argumentos modernos em favor da liberdade de expressão já aparecem no panfleto "Areopagítica", escrito pelo poeta Milton em 1644
Contra a censura prévia

OTAVIO FRIAS FILHO
Diretor de Redação

Em maio de 1642, quando a Guerra Civil era iminente, o poeta inglês John Milton (1608-1674) casou-se com uma garota de 17 anos, Mary Powell, originária de uma família leal ao rei Carlos 1º. O casamento terminou depois de um mês, quando Mary fugiu para a casa dos pais em Oxford. Em agosto começou a guerra entre o rei "papista" e o Parlamento. No ano seguinte, Milton publicou um panfleto em que propugnava pela admissão do divórcio não apenas nos casos de adultério, mas também em consequência do que hoje chamaríamos de "incompatibilidade de gênios".
O panfleto causou escândalo e serviu de pretexto à aprovação, pelo Parlamento, de uma lei que estabelecia a censura prévia de qualquer impresso. A "Areopagítica" (1644), que a Topbooks publica agora em edição bilíngue, é a petição na qual Milton solicita ao Parlamento que revogue a medida. O futuro autor do poema "Paraíso Perdido" era um "scholar" protestante que chegaria a ser o encarregado da correspondência diplomática do governo republicano de Cromwell. Ele não se opunha a que publicações blasfemas (leia-se católicas) fossem queimadas e seus autores executados. Seu argumento é contra o caráter prévio da censura.
É curioso que um caso de divórcio esteja tanto na base da "Areopagítica" como do protestantismo inglês. Na Alemanha, a Reforma serviu de instrumento para que cidades e principados se emancipassem do império dos Habsburgos. Na França os católicos derrotaram os protestantes. Na Inglaterra, porém, a Reforma foi feita "de cima para baixo", obra do próprio rei, Henrique 8º, interessado por razões diplomáticas e sucessórias em obter o divórcio de Catarina de Aragão, que lhe era negado pelo papa.
O protestantismo inglês, por isso, esteve dividido em dois campos: os anglicanos, herdeiros da reforma conservadora de Henrique 8º, e os puritanos, calvinistas radicais com inclinações democráticas. No século 17, azares dinásticos fizeram a sucessão recair sobre o ramo escocês e católico da família real. Foi preciso executar um rei e depor outro até que o Parlamento afirmasse seus poderes e entregasse a Coroa a um príncipe protestante (e holandês!), Guilherme de Orange, na Revolução Gloriosa de 1688, estabelecendo ampla liberdade de religião e de imprensa, exceto para os católicos.
A "Areopagítica" não é leitura imprescindível, nem palpitante. É surpreendente que todos os argumentos modernos, no entanto, em favor da liberdade de expressão, já apareçam no texto de Milton, em que podem ser colhidos não depois de longa decantação, mas no momento mesmo em que surgiam em meio à conflagração de uma guerra civil. A difusão das técnicas de reprodução mecânica da escrita era relativamente recente, e os diversos governos tentavam mantê-la sob controle, já que livros, como ressalta Milton, "podem dar nascimento a homens armados".
No panfleto, ele procura mostrar que a Antiguidade clássica, até por causa dessa lacuna tecnológica, não conheceu a censura prévia. Platão, eterno inspirador de correntes autoritárias, defendeu a tese, mas Milton responde, um tanto malandramente, que o filósofo pensava no mundo ideal de sua República, não no mundo concreto em que "o bem e o mal crescem juntos (...) e o conhecimento do bem está de tal forma envolvido e entrelaçado com o conhecimento do mal".
Quem inventou a censura prévia, diz Milton, foi a Inquisição católica. Sendo os seres humanos livremente admitidos no mundo ao nascer, pergunta ele, por que não os livros, que contêm "vida em potência"? Se o receio é o de que a infecção da impiedade se alastre, então seria coerente proibir todos os livros, a começar da Bíblia, repleta de sacrilégios e controvérsias. Ora, o mal se aprende perfeitamente sem livros. Ao mesmo tempo, como confiar no discernimento dos censores, cujo intelecto estará necessariamente aquém, na maioria dos casos, do de suas vítimas? E conclui: "Admito que o Estado me governe, mas não que seja meu crítico".
Também por razões práticas a censura prévia é "vain and fruitlesse" (vã e inútil): há livros em parte bons, em parte maus; para certos leitores bons, para outros, maus. Rompido o dogma católico, admitida a primeira fratura na interpretação do Evangelho, a verdade se espatifou em mil pedaços, de modo que "só com muitos cismas e dissidências talhadas na pedra e na madeira será possível erguer a casa de Deus".
Milton já advoga a concepção contemporânea que toma a liberdade de expressão antes como prerrogativa de quem lê do que de quem se expressa, como direito difuso, portanto, em que o somatório das opiniões em conflito é protegida como patrimônio público inviolável, uma espécie de biodiversidade mental. Ele afirma que submeter a Inglaterra à censura prévia é como constrangê-la a um bloqueio marítimo que "obstrui e retarda a importação da nossa mais rica mercadoria, a verdade". Que verdade e impostura se digladiem, diz ele, pois "todo homem maduro pode e deve exercer seu próprio critério".
Algumas das razões pelas quais o protestantismo favoreceu o estabelecimento das liberdades civis são óbvias, outras nem tanto. Os protestantes eram tão ou mais fanáticos do que os próprios papistas. Foi precisamente o seu zelo meticuloso em matéria de fé que os levou a sucessivas divisões em seitas e mais seitas, dando ensejo à necessidade prática de elas virem a se tolerar. Ferindo o dogma católico, Lutero havia solapado todos os dogmas.
Ao combater a hierarquia do poder papal, pretendendo substituí-la por um contato direto entre o crente e as Escrituras, o protestantismo deu grande impulso à leitura e alavancou a alfabetização maciça dos séculos 19 e 20 nos países do norte. Sua doutrina favorece o trabalho "livre", a poupança e a acumulação, e não é por outro motivo que aqueles mesmos países logo se colocaram na vanguarda do capitalismo industrial. Ao mesmo tempo, ao expandir o espaço da consciência religiosa individual e ao se ver forçada à convivência entre as diversas confissões, a Reforma fixou o modelo da separação burguesa entre domínio público e esfera privada. Naquele, todos são iguais sob a lei; nesta, todos são livres para fazer o que não for legalmente proibido.
Uma das maneiras de "ler" o desenvolvimento da cultura humana, aliás bem ao gosto das tendências atuais, é considerá-la como um processo pelo qual as coisas são substituídas por suas representações. A língua, a moeda, a imprensa, o cinema e o computador, por exemplo, seriam momentos dessa crescente e inexorável "virtualização" do mundo.
A "Areopagítica" corresponde a um dos contramomentos em que essas representações são desfetichizadas, ou seja, cai o véu da ilusão de que uma idéia possa agredir como um soco ou uma bomba. Na tradição ocidental, calúnia, injúria e difamação ainda retêm esse poder de fetiche, embora no futuro talvez pareça irracional que uma ofensa, proferida por algum desafeto desprezível em nome de motivos desprezíveis, não seja igualmente desprezada.


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