São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENSINO
Projeto do MEC regulando autonomia universitária fere a Constituição
Os elefantes de Aníbal

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
especial para a Folha

O Congresso Nacional logo receberá o projeto, elaborado pelo MEC, regulando a autonomia universitária, documento que fere, em todos os sentidos, o artigo 207 da Constituição. O Ministério já desrespeitou, de vários modos, a nossa lei maior: o exame nacional de cursos, as avaliações arbitrárias e burocráticas de seus órgãos, as ingerências indevidas na condução dos assuntos acadêmicos, tudo isso já foi efetivado, negando à universidade o direito de estabelecer os seus princípios de ação.
Dessa vez, como já antes, o governo e seus aliados podem elidir os ditames constitucionais, impondo sua vontade por meio de "negociações", meras barganhas políticas visando a desobrigar o Estado de seus deveres democráticos -no caso, prover o ensino superior. O ministro Paulo Renato propõe, reiteradamente, dotar os campi do "mínimo", mas esse limite é incompatível com os fins da pesquisa: o "necessário" é o suficiente, tal como praticado por instituições rigorosas como a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), enquanto governos irresponsáveis não solaparem os seus recursos.
Há poucos dias foi publicada uma entrevista do secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo ("Jornal da Unicamp", abril/99) sobre os "rumos" das universidades paulistas. Sua fala expõe com rara brutalidade os objetivos do governo: com efeito, a manifestação de um ideólogo menor, ao repetir as crenças de seus superiores, as empobrece e esquematiza, por isso mesmo revelando com mais clareza as diretrizes por vezes encobertas por uma retórica mais astuciosa. Ecoando as ordens do MEC, dos ministérios econômicos, do BID e quejandos, parece a José Aníbal indispensável aprofundar as relações entre centros de pesquisa e setores produtivos de bens e serviços. Para tanto, a mágica é "juntar tecnologia, crédito e mercado".
Não lhe basta essa interferência de princípio nos rumos da produção do saber; vai adiante, definindo os beneficiários privilegiados -pequenas e médias empresas- a cujo serviço devem ser postos pesquisas e conhecimentos. Não pretende ele, apenas, que as universidades respondam diretamente às demandas do mercado, o que já é absurdo, pois os caminhos da imediatez no campo do saber e da técnica são nulos; pior, ele determina que elas se submetam a certos "clientes" definidos pelo arbítrio governamental. Não se cogita se tal ou qual problema tem interesse científico ou se se ajusta a projetos de pesquisa significativos em algum campo do conhecimento: apenas ordena-se que as universidades estejam disponíveis para o que for requisitado segundo os interesses eleitoreiros da burocracia política e os benefícios auferidos pelas empresas.
Da universidade enquanto núcleo produtor do saber, a seu próprio juízo e critério, nem cogita o sr. secretário: ela só tem existência em favor de atividades estranhas a ela, próprias a outrem. Impossível maior alienação -pasme-se, afirmada em nome da autonomia. Mas juntar incompossíveis é próprio de palavreados miseráveis. O referido secretário dita literalmente: "A universidade tem de ser um recurso do setor produtivo que ele possa usar, a que ele possa recorrer para que possa agregar tecnologia a seu produto". E cita um exemplo edificante, constatado em suas andanças: a universidade poderia contribuir, a pedido de um prefeito, para limpar o lixo indesejável -raspas de couro- das fábricas de luvas instaladas no município. E apresenta a proposta salvadora: um "convênio" entre a universidade e o município para solucionar o caso. Toda a dificuldade experimentada resumir-se-ia em falta de comunicação: o prefeito "não imaginava" que poderia dirigir esse pedido à universidade! Nem deveria mesmo imaginar: o problema não é dos núcleos de pesquisa, não lhes cabe tratá-lo a menos que apresente interesse de investigação; a rigor, nem é do município, mas da fábrica, que deve responder por seus detritos, eliminando poluentes.
O aspecto de serviço, de acordo com o secretário, não "é uma tradição, não está incorporado à cultura da universidade brasileira e nós precisamos fazê-lo urgentemente". A atribuição de "serviço", inclusive o ensino e os graus profissionalizantes, constituem apenas mais uma forma de eximir os governos dos gastos educativos: outras escolas que não as universidades constituem o lugar desse treinamento. Com efeito, a "urgência" pregada por Aníbal está fora do horizonte de toda e qualquer instituição que se pretenda universitária e não provinciana. Trata-se, novamente, de uma contradição em termos, mas o sr. secretário, alheio à lógica, reitera que vai se empenhar em multiplicar ações desse tipo, até porque iriam "fortalecer enormemente a imagem da universidade, colocá-la numa condição melhor para discutir seus próprios problemas, como o pagamento de inativos, o custo dos hospitais universitários, os repasses da Lei Kandir etc. Porque senão a imagem que vai ficar é que a universidade está sempre demandando".
A cantilena desmoralizadora, entoada pelo governo tucano, mudou de registro: estes tempos de classe média empobrecida e escorchada por impostos enfraqueceram o discurso pseudodemocrático sobre o ensino gratuito a privilegiados que poderiam e deveriam pagar seus estudos. O novo mote é o da universidade pidonha e improdutiva, que gasta sem medida com aposentados e indigentes dos hospitais. Quanto aos primeiros, o jingle vem de cima, do governo federal, contumaz no genocídio: cuidem-se os professores, pois o "Ministério da Educação está trabalhando com algumas propostas nesse sentido". Afinado com ele, o sr. secretário afirma que "há professores com mais de 90 anos que recebem aposentadoria há mais de 50. Não há como pagar isso".
Diante desses velhos, "que fazer?", perguntaria Lênin; "matá-los", responderia Hitler. Esse parâmetro ecoa, rigorosamente, na fala de Aníbal: "A expectativa de vida do brasileiro está aumentando... o índice de mortalidade está diminuindo... Eu acho que é grave o problema dos inativos". Cuidem-se estes, uma pequena medida provisória tipo "Arsênico e Alfazema" pode vir a calhar na maravilhosa modernidade do PSDB. Fica-se a cismar se os reitores leram indiferentes tais portentos morais, vindos desse pequeno funcionário de um autoproclamado "governo sério".
Nosso Aníbal sutil, embora distante de seu engenhoso xará cartaginês, apresenta com ele alguma semelhança: o uso do elefante nas tropas de combate, embora sem a circunspecção do general. Essa violência de paquiderme só levará o governo a que serve (mal) a uma vitória de Pirro. Rimos, pois para o despudor de seu discurso não existe humana indignação que baste: ele "faria uma pedra gritar de cólera", para usar uma vetusta e solene imprecação. Apenas, no contexto antigo, a praga é suscitada por um silêncio obstinado, enquanto aqui a sentença se volta contra a garrulice.
Diz o secretário estar comprometido com os reitores para "buscar com eles uma solução", mas ajunta imperativamente: "Agora esquece o modelo atual, ele não tem sobrevida". Essa vulgocracia, sem decoro e em aberto desrespeito pela autoridade universitária, exclui o prepotente Aníbal de qualquer entendimento. Troveja também ele que aposentadoria integral não existe em lugar nenhum: mas o que escamoteia é que em mundo nenhum a taxa de exploração é tão alta, a riqueza tão concentrada, a vida tão cara e difícil quanto neste Brasil dos reais e dos realistas.
Esta Folha (24/5/99) publicou cálculos segundo os quais os assalariados deveriam poupar 30% dos seus salários, visando a educação, aposentadoria e desemprego; se a isso juntarmos o Imposto de Renda e mais os descontos de Iamsp, Ipesp, INSS e quejandos, bem pouco restará para casa e comida, quem dirá para o espírito. Não por acaso aquela prática é recomendada por um banco, em simetria com os "mores" governamentais: transferir a poupança popular para os lucros de banqueiros. Sem dizer que as economias do trabalhador podem simplesmente desvanecer-se por confiscos ou desvalorizações. Pagar o aposentado seria, no mínimo, redistribuir a riqueza tão desigualmente acumulada.
O grande custo dos hospitais universitários é também "um problema" para José Aníbal. Mas escamoteia-se que servem como centros de saúde pública em grandes áreas onde os governos se fazem ausentes. E os repasses da Lei Kandir não entram no cômputo do percentual devido às universidades públicas. Elas que se arrumem: "Estamos querendo que as universidades encontrem alternativas de financiamento, não fiquem eternamente em berço esplêndido. Aumentar a participação no ICMS é absolutamente inviável, mesmo porque não há como explicar isso para a sociedade". E arremata com o refrão imperativo e grosseiro: "Esquece essa alternativa, ela se esgotou". Os gastos com o sistema educativo são difíceis de explicar, mas não as manobras e o veraneio dos altos dignitários da República, os privilégios de bancos e instituições financeiras, os empréstimos a fundo perdido, os escândalos pessoais, as barganhas para a reeleição presidencial, tudo isso embaralhando o público e o privado. O sr. Bresser Pereira é o pró-sofista de plantão, perito em discursos legitimadores desses abusos.
Visto que as universidades públicas em São Paulo têm certa autonomia, parece mais difícil passar sobre elas o rolo compressor, à maneira do governo federal: por isso, "nós temos de fazer uma conversa bem apurada (...), algo que seja discutido com a corporação, tem que ser uma coisa admitida por todos". Com os recursos engolidos pelas aposentadorias, reitera o secretário, "como é que vai pagar o ativo, a conta de luz, o custeio?". Trata-se das universidades ou das fabriquetas patrocinadas por ele? Prossegue: "Temos que ter uma ação forte, e quanto antes, melhor. Já tivemos uma rodada com os três reitores, eles colocaram algumas questões (...)". Causa escândalo que o secretário da Ciência e Tecnologia de importante Estado do país se refira nesses termos chulos -conforme a desenvoltura vil que marca o estilo PSDB- aos reitores das mais respeitadas universidades dessa mesma unidade federativa.
Junto a tais despropósitos, Aníbal faz afirmações que beiram à inocência. Declara que o governo não irá agregar recursos para as pesquisas atreladas ao setor produtivo e que as empresas devem pagar por elas, "até para criar credibilidade. Hoje alguém pode dizer: "Deixa que eu faço isso independentemente desse pessoal, nunca me ajudaram mesmo, eu me viro aqui". Como é que fez a indústria automobilística em São Paulo? Isso pode até dar tese para a USP, a Unicamp, a Unesp. Sabe como fizeram? Esse pessoal, extremamente aventureiro, ia lá fora, copiava uma máquina, um torno, uma prensa, chegava aqui, desmontava, chamava seus técnicos e fazia 20 iguais. E assim eles fizeram".
Não é nada claro o nexo entre pagar, ter confiança e admitir vínculos, mas o inteligível não é o forte da fantasia acima. Sem comentários sobre o teor de nossas teses ou sobre a preclara interpretação de Vargas, do processo de industrialização, de JK e do desenvolvimentismo, das multinacionais. Se aquele é o saber histórico e tecnológico do secretário tucano, acautelem-se os cientistas e também os empresários que ainda pensam investir em tecnologia no Estado de São Paulo. Causa no mínimo espécie que o sr. governador tenha feito tão lamentável escolha.
Mencionei que a palavra negociação tem um trânsito amplo, muitas vezes a serviço de oportunismos. Ninguém nega, pelo menos desde o século 17, que é preciso tolerância no trato de questões cruciais, em busca de acordos racionalmente estabelecidos, segundo vontades prudentes. Se o consenso é gerado com tais parâmetros, qualquer "negociação" com o atual secretário de Ciência e Tecnologia seria, antes, um contra-senso. Seu nível intelectual bem se evidenciou ao longo da entrevista, principalmente em sua leitura grotesca da indústria automobilística; seu padrão de moralidade fica inequívoco no modo lamentável como aborda a delicada e por vezes triste condição de colegas envelhecidos ou doentes. Sua consciência ética -uso o termo no sentido preciso de conjunto de valores, saberes, práticas, modos de ser, sentir, pensar e expressar-se- é o exato contrário do imprescindível num ambiente universitário, sobejamente manifesto em suas posições imperativas, linguagem indecorosa, estribilhos imitados de seus mandantes.
"Negociar" com tal personagem é vender barato a vida do espírito, jogar fora os próprios fins do conhecimento, sejam eles especulativos ou práticos, definidos em séculos de trabalho. Nossas autoridades universitárias respondem por isso ao corpo docente e discente, não podem malbaratar a dignidade do cargo que lhes foi confiado, ouvir passivamente palavras como as infelizmente publicadas pelo "Jornal da Unicamp". Quanto menor for a resistência a tais investidas, tanto maior sua audácia e tanto mais graves os danos. A única maneira de vencer o processo de desmoralização da escola pública e o escamoteamento dos recursos devidos à educação é enfrentá-los, nunca perdendo de vista o abismo que separa o intelectual que se auto-respeita e o servidor que bajula seu amo.
Se tivermos consciência de que as tarefas de ensino e pesquisa assentam sobre nexos milenares entre saber e poder, que sob essa égide mantêm-se as forças dominantes no mundo atual, se nossos objetivos são produzir conhecimentos e liberar as forças a eles imanentes, sabendo que disso dependerão as gerações futuras e os interesses do país, então será preciso revigorar as linhas institucionais da autoridade universitária, sobretudo sua autonomia, tornando-as capazes de enfrentar, à altura, o furioso impacto que nos impõe, de fora, o próprio estranhamento da vida intelectual.


Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e autora de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (ed. Unesp).


Texto Anterior: História - Maria Lúcia G. Pallares-Burke: Descobertas de um espectador
Próximo Texto: Livros - Otavio Frias Filho: Contra a censura prévia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.