São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2000


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O trabalho assume nos últimos anos formas que tornam impossível imaginar, diferentemente do que muitos intelectuais supõem, que ele possa ser extinto
Material e imaterial

Ricardo Antunes
especial para a Folha

No pensamento contemporâneo tornou-se (quase) lugar-comum falar em "desaparição do trabalho" (Dominique Méda), em substituição da esfera do trabalho pela "esfera comunicacional" (Habermas), em "perda de centralidade da categoria trabalho" (Off) ou ainda em "fim do trabalho" (como Jeremy Rifkin ou ainda, na versão mais crítica à ordem do capital, como em Kurz), para citar as formulações mais expressivas.
Enquanto se opera no plano gnosiológico a desconstrução ontológica do trabalho, paralelamente, no mundo real, este se converte (novamente?) em uma das mais explosivas questões da contemporaneidade. Trabalho e desemprego, trabalho e precarização, trabalho e gênero, trabalho e etnia, trabalho e nacionalidade, trabalho e corte geracional, trabalho e imaterialidade, trabalho e (des)qualificação, muitos são os exemplos da transversalidade e da vigência da forma trabalho. O que se passa, então, com o mundo real do trabalho? Da General Motors à Microsoft, da Benetton à Ford, da Toyota ao McDonald's, será que o mundo produtivo e de serviços de fato não mais carece do trabalho vivo? Este se teria tornado mera virtualidade? É ficção que uma empresa de calçados esportivos se utiliza de quase 100 mil trabalhadores e trabalhadoras, esparramados em tantas partes do mundo, recebendo salários degradantes?
Vamos aqui procurar problematizar algumas das teses que propugnam o fim do trabalho. Quando concebermos a forma contemporânea do trabalho, enquanto expressão do trabalho social, que é mais complexificado, heterogeneizado e ainda mais intensificado nos seus ritmos e processos, não podemos concordar com as teses que desconsideram o processo de interação entre trabalho vivo e trabalho morto. Em verdade, o sistema de metabolismo social do capital necessita cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais das diversificadas formas de trabalho parcial ou "part time", terceirizado, dos trabalhadores hifenizados de que falou Huw Beynon, que se encontram em explosiva expansão em todo o mundo produtivo e de serviços. Como o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo de mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais, ele deve, além de incrementar sem limites o trabalho morto corporificado no maquinário tecnocientífico, aumentar a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração do sobretrabalho em tempo cada vez mais reduzido. Tempo e espaço se convulsionam nessa nova fase dos capitais. A redução do proletariado taylorizado, a ampliação do trabalho intelectual abstrato nas plantas produtivas de ponta e a ampliação generalizada dos novos proletários precarizados e terceirizados da "era da empresa enxuta" são fortes exemplos do que acima aludimos.

Desperdício e exclusão
Como o capital tem um forte sentido de desperdício e de exclusão, é precisa a síntese de Tosel: é a própria "centralidade do trabalho abstrato que produz a não-centralidade do trabalho, presente na massa dos excluídos do trabalho vivo", que, uma vez (des)socializados e (des)individualizados pela expulsão do trabalho, "procuram desesperadamente encontrar formas de individuação e de socialização nas esferas isoladas do não-trabalho (atividade de formação, de benevolência e de serviços)". Aqui aflora o limite maior da tese habermasiana da transformação da ciência em "principal força produtiva", em substituição ao valor-trabalho. Essa formulação, ao converter a ciência em principal força produtiva, desconsidera as interações existentes entre trabalho vivo e avanço tecnocientífico sob as condições dos desenvolvimentos capitalistas. Não se trata, portanto, de dizer que a teoria do valor-trabalho não reconhece o papel crescente da ciência, mas que esta se encontra tolhida em seu desenvolvimento pela base material das relações entre capital e trabalho, a qual não pode superar. E é por essa restrição estrutural que a ciência não pode se converter na principal força produtiva dotada de autonomia. Prisioneira dessa base material, menos do que uma cientificização da tecnologia, há, conforme sugere Mészáros, um processo de tecnologização da ciência. Ontologicamente prisioneiros do solo material estruturado pelo capital, o saber científico e o saber laborativo mesclam-se mais diretamente no mundo contemporâneo. Vários experimentos, do qual o projeto Saturno da General Motors foi exemplar, fracassaram quando procuraram automatizar o processo produtivo, desconsiderando os trabalhadores. As máquinas inteligentes não podem extinguir o trabalho vivo. Ao contrário, a sua introdução utiliza-se do trabalho intelectual do operário que, ao interagir com a máquina informatizada, acaba também por transferir parte dos seus novos atributos intelectuais à nova máquina que resulta desse processo. Estabelece-se, então, um complexo processo interativo entre trabalho e ciência produtiva, que não leva à extinção do trabalho, mas a um processo de retroalimentação que gera a necessidade de encontrar uma força de trabalho ainda mais complexa, multifuncional, que deve ser explorada de maneira mais intensa e sofisticada, ao menos nos ramos produtivos dotados de maior incremento tecnológico. Com a conversão do trabalho vivo em trabalho morto, a partir do momento em que, pelo desenvolvimento dos softwares, a máquina informacional passa a desempenhar atividades próprias da inteligência humana, o que se pode presenciar, segundo Lojkine, é um processo de objetivação das atividades cerebrais junto à maquinaria, de transferência do saber intelectual e cognitivo da classe trabalhadora para a maquinaria informatizada. A transferência de capacidades intelectuais para a maquinaria informatizada, que se converte em linguagem da máquina própria da fase informacional, por meio dos computadores, acentua a transformação de trabalho vivo em trabalho morto. Mas não pode eliminá-lo.

Dimensão intelectual
Há ainda em curso na sociedade contemporânea outra tendência dada pela crescente imbricação entre trabalho material e imaterial, uma vez que se presencia, no mundo contemporâneo, além da monumental precarização do trabalho acima referida, uma significativa expansão do trabalho dotado de maior dimensão intelectual, quer nas atividades industriais mais informatizadas, quer nas esferas compreendidas pelo setor de serviços ou nas comunicações, entre tantas outras. A expansão do trabalho em serviços, em esferas não diretamente produtivas, mas que muitas vezes desempenham atividades imbricadas com o trabalho produtivo, mostra-se como outra característica importante da noção ampliada de trabalho, quando se quer compreender o seu significado no mundo contemporâneo.
Desse modo, o trabalho imaterial expressa a vigência da esfera informacional da forma-mercadoria: ele é expressão do conteúdo informacional da mercadoria, exprimindo as mutações do trabalho operário no interior das grandes empresas e do setor de serviços, em que o trabalho manual direto está sendo substituído pelo trabalho dotado de maior dimensão intelectual.
Trabalho material e imaterial, na imbricação crescente que existe entre ambos, encontram-se, entretanto, centralmente subordinados à lógica da produção de mercadorias e de capital. Capturando a tendência da expansão da atividade intelectual dentro da produção, disse J.M. Vincent: "A própria forma-valor do trabalho se metamorfoseia. Ela assume crescentemente a forma-valor do trabalho intelectual-abstrato. A força de trabalho intelectual produzida dentro e fora da produção é absorvida como mercadoria pelo capital que se lhe incorpora para dar novas qualidades ao trabalho morto (...). A produção material e a produção de serviços necessitam crescentemente de inovações, tornando-se por isso cada vez mais subordinados a uma produção crescente de conhecimento que se convertem em mercadorias e capital".
A nova fase do capital, portanto, retransfere o "savoir-faire" para o trabalho, mas o faz se apropriando crescentemente da sua dimensão intelectual, das suas capacidades cognitivas, procurando envolver mais forte e intensamente a subjetividade operária. Mas o processo não se restringe a essa dimensão, uma vez que parte do saber intelectual é transferido para as máquinas informatizadas, que se tornam mais inteligentes, reproduzindo parte das atividades a elas transferidas pelo saber intelectual do trabalho. Como a máquina não pode suprimir o trabalho humano, ela necessita de uma maior interação entre a subjetividade que trabalha e a nova máquina inteligente. E, nesse processo, o envolvimento interativo aumenta ainda mais o estranhamento e a alienação do trabalho, amplia as formas modernas da reificação, distanciando ainda mais a subjetividade do exercício de uma vida autêntica e autodeterminada.
Portanto, em vez da substituição do trabalho pela ciência, ou ainda da substituição da produção de valores pela esfera comunicacional, da substituição da produção pela informação, o que se pode presenciar no mundo contemporâneo é uma maior inter-relação, uma maior interpenetração entre as atividades produtivas e as improdutivas, entre as atividades fabris e de serviços, entre atividades laborativas e as atividades de concepção, que se expandem no contexto da reestruturação produtiva do capital. O que remete ao desenvolvimento de uma concepção ampliada para se entender sua forma de ser do trabalho no capitalismo contemporâneo, e não à sua negação.


Ricardo Antunes é professor de sociologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de "Os Sentidos do Trabalho - Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho" (Boitempo), entre outros.


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