|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
O canto dos quatro timbres
Quarteto de cordas, apogeu da música mais sublime:
é como o concebemos hoje; impossível voltar para o modo muito menos circunspecto como era sentido no século 18
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Rousseau escreveu que vida sem música seria um
erro. Shakespeare pasmava-se com o fato de que um
pouco de crina esfregada em
tripa de carneiro pudesse comover tanto os homens. Hoje,
as cordas dos violinos, das violas, dos violoncelos, assim como os respectivos arcos, são
feitas de outros materiais.
Mas o milagre continua. A
formação do quarteto de cordas é simples: dois violinos,
uma viola, um violoncelo. Ela
suscitou, porém, as mais altas
arquiteturas sonoras.
Fios
O quarteto Parisii veio a Porto Alegre, Curitiba e São Paulo,
no programa Concertos BankBoston, que se consagra à música de câmara. Seus componentes estudaram no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris; juntaram-se em
1981. A formação é a mesma até
agora, exceto o primeiro violino, bem jovem.
Acompanhava-os o ótimo
clarinetista Romain Guyot.
Sons justos, nuançados, intensos, exprimindo uma sensação de materialidade quase
tangível. Muito diferentes dos
timbres etéreos, das frases emitidas como num sonho, do
quarteto Dinamarquês, em
exemplo oposto.
Com o Parisii, o quarteto de
Debussy nada mostrava de devaneios requintados em matizes azul e prata, mas um tom
terrestre, de rigor ardente.
Territórios
O quarteto Parisii fez do século 20 seu celeiro de predileção. Gravou a integral de Webern, o "Livre pour Quatuors",
de Boulez, os quartetos de Fauré, de Franck e, raros, os de
Reynaldo Hahn, que devem ser
uma pura delícia.
O programa foi francês na
primeira parte. Começou com
o nš 4 de Milhaud, de 1918,
composto no Rio de Janeiro,
quando o compositor se embriagava de ritmos que explodiriam em "Le Boeuf sur le Toit".
Porém, aqui, o espírito é profundo e grave, com sua politonalidade, sua simplicidade nas
melodias, que sublinham as invenções originais, bem carregadas de meditação.
Depois, seguiram, do "Livre
pour Quatuors", os "IIIa",
"IIIb", "IIIc". Boulez os escreveu em 1948 e 1949: a própria
numeração meio esquisita trai
os charmes de uma velha modernidade que nada queria fazer como os outros. A música,
cintilante de precisão, tem um
sabor novo de outros tempos.
Enfim, o quarteto de Debussy: mais que nunca os intérpretes, com sonoridades individuais e marcadas, fundiram-se
na trama, tornando-se um só.
Outro
Uma escritora americana
disse que a música de Mozart
lhe dava o mesmo conforto interior oferecido por um copo de
brandy. Na segunda parte do
recital, o clarinetista juntou-se
ao quarteto Parisii para o
"Quinteto K 581" de Mozart. Os
intérpretes foram admiráveis,
emocionantes, dignos de todos
os melhores adjetivos e superlativos. No entanto o que, em
Mozart, brota de vitalidade
sem cerimônia, cheia de danças
populares transfigurando-se
com naturalidade, virou grande
e sagrada música. Foi interpretado com a mesma convicção
elevada que a primeira parte
exigia: o clarinetista fazia caras
inspiradas (certamente sinceras), fechando os olhos.
Quarteto de cordas, apogeu
da música mais sublime e excelsa; é como o concebemos hoje. Impossível voltar para o modo muito menos circunspecto
como era sentido no século 18.
Não é desagradável ouvir
também essa música por amadores, que podem tropeçar aqui
e ali, mas que vibram no prazer
de tocar. "Essa música" quer dizer a de Mozart, não a de Boulez, está claro.
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os dez + Próximo Texto: Filmoteca básica - Eryk Rocha: Os Habitantes Índice
|