São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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Ponto de fuga

O canto dos quatro timbres

Quarteto de cordas, apogeu da música mais sublime: é como o concebemos hoje; impossível voltar para o modo muito menos circunspecto como era sentido no século 18

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Rousseau escreveu que vida sem música seria um erro. Shakespeare pasmava-se com o fato de que um pouco de crina esfregada em tripa de carneiro pudesse comover tanto os homens. Hoje, as cordas dos violinos, das violas, dos violoncelos, assim como os respectivos arcos, são feitas de outros materiais.
Mas o milagre continua. A formação do quarteto de cordas é simples: dois violinos, uma viola, um violoncelo. Ela suscitou, porém, as mais altas arquiteturas sonoras.

Fios
O quarteto Parisii veio a Porto Alegre, Curitiba e São Paulo, no programa Concertos BankBoston, que se consagra à música de câmara. Seus componentes estudaram no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris; juntaram-se em 1981. A formação é a mesma até agora, exceto o primeiro violino, bem jovem.
Acompanhava-os o ótimo clarinetista Romain Guyot.
Sons justos, nuançados, intensos, exprimindo uma sensação de materialidade quase tangível. Muito diferentes dos timbres etéreos, das frases emitidas como num sonho, do quarteto Dinamarquês, em exemplo oposto.
Com o Parisii, o quarteto de Debussy nada mostrava de devaneios requintados em matizes azul e prata, mas um tom terrestre, de rigor ardente.

Territórios
O quarteto Parisii fez do século 20 seu celeiro de predileção. Gravou a integral de Webern, o "Livre pour Quatuors", de Boulez, os quartetos de Fauré, de Franck e, raros, os de Reynaldo Hahn, que devem ser uma pura delícia.
O programa foi francês na primeira parte. Começou com o nš 4 de Milhaud, de 1918, composto no Rio de Janeiro, quando o compositor se embriagava de ritmos que explodiriam em "Le Boeuf sur le Toit".
Porém, aqui, o espírito é profundo e grave, com sua politonalidade, sua simplicidade nas melodias, que sublinham as invenções originais, bem carregadas de meditação.
Depois, seguiram, do "Livre pour Quatuors", os "IIIa", "IIIb", "IIIc". Boulez os escreveu em 1948 e 1949: a própria numeração meio esquisita trai os charmes de uma velha modernidade que nada queria fazer como os outros. A música, cintilante de precisão, tem um sabor novo de outros tempos.
Enfim, o quarteto de Debussy: mais que nunca os intérpretes, com sonoridades individuais e marcadas, fundiram-se na trama, tornando-se um só.

Outro
Uma escritora americana disse que a música de Mozart lhe dava o mesmo conforto interior oferecido por um copo de brandy. Na segunda parte do recital, o clarinetista juntou-se ao quarteto Parisii para o "Quinteto K 581" de Mozart. Os intérpretes foram admiráveis, emocionantes, dignos de todos os melhores adjetivos e superlativos. No entanto o que, em Mozart, brota de vitalidade sem cerimônia, cheia de danças populares transfigurando-se com naturalidade, virou grande e sagrada música. Foi interpretado com a mesma convicção elevada que a primeira parte exigia: o clarinetista fazia caras inspiradas (certamente sinceras), fechando os olhos.
Quarteto de cordas, apogeu da música mais sublime e excelsa; é como o concebemos hoje. Impossível voltar para o modo muito menos circunspecto como era sentido no século 18.
Não é desagradável ouvir também essa música por amadores, que podem tropeçar aqui e ali, mas que vibram no prazer de tocar. "Essa música" quer dizer a de Mozart, não a de Boulez, está claro.


jorgecoli@uol.com.br


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