São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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O vácuo da democracia

Embora sem o culto à personalidade das ditaduras, regime marcado pela "mediocridade" também não consegue abolir lideranças e símbolos

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Um traço que caracteriza regimes totalitários ou autoritários, com suas respectivas gradações, é a capacidade de produzir rituais, mitos, símbolos e paixões. Isso ocorreu em regimes como os de Hitler, Mussolini, Stálin, Mao Tse-tung. Não faço referência aos casos atuais de [Fidel] Castro e de [Hugo] Chávez, este último encarnando uma situação autoritária em via de converter-se em regime autoritário, porque merecem uma análise à parte. Os exemplos referem-se a regimes em que se destaca uma personalidade extraordinariamente forte, por mais que possamos ter horror ou nos opor visceralmente a ela; falam de rituais esteticamente muito bem encenados ou pelo menos eficientes nos seus efeitos cênicos; falam da manipulação de símbolos que calam profundamente em amplos setores da população. Inspirado no seu passado de militante socialista, Mussolini soube martelar na técnica da Itália "nação proletária", diante das grandes potências do mundo, combinando-a com o mito do ressurgimento do Mediterrâneo como o grande lago romano; Hitler encontrou quem encenasse os grandes rituais dos congressos partidários em Nuremberg, explorando também o tema da desforra de uma nação humilhada pelo Tratado de Versalhes [1919], sob ameaça da conspiração judaica internacional. Stálin encarnou o mito da revolução proletária mundial. Revelou-se um gênio na construção da máquina partidária e do Estado totalitário, mas, ao contrário dos outros citados e de seu rival Trótski, não possuía dotes de oratória. A rudeza, a violência sem limites e, ao mesmo tempo, o encanto pessoal em doses calculadas foram armas de seu poder absoluto. Em contraste, os regimes democráticos, por sua natureza, não têm tais características, e há mesmo quem assinale que eles contenham como um de seus traços principais a mediocridade. Assim, Ian Buruma e Avishai Margalit, no pequeno e sedutor livro "Ocidentalismo" (ed. Jorge Zahar), salientam essa circunstância, acrescentando que o heroísmo revolucionário, o espírito de sacrifício e os horizontes de um futuro radioso encantaram muitos intelectuais do ocidente e os levaram a glorificar a União Soviética de Stálin, a China de Mao, o Irã dos aiatolás etc. Buruma e Margalit citam o historiador nacionalista alemão Arthur Moeller van den Bruck (1876-1925), para quem as sociedades liberais dão a todas as pessoas o direito de serem medíocres, pois seu objetivo principal reside em promover a vida rotineira, e não a vida excepcional. Eles dizem, com justeza, que essa observação não é inteiramente equivocada e lembram Tocqueville, que, fascinado com ressalvas pela democracia americana, já por volta de 1835, fazia considerações semelhantes.

Discurso e jogo
Lembrei-me, a propósito, da utilização do tema numa revista de propaganda inglesa, no curso da Segunda Guerra, editada em várias línguas, inclusive em português. Aí se contrastavam, com a força das imagens, um discurso de Hitler na Alemanha e um jogo de cartas num pub inglês, encimando as respectivas legendas: "O discurso do Führer que nunca acaba; o jogo de cartas que nunca acaba". Uma das questões mais significativas que essas comparações suscitam é a de que a "mediocridade democrática" não prescinde de lideranças nem de símbolos, embora ambos devam ser, por sua natureza, essencialmente diversos dos que caracterizam regimes totalitários ou autoritários. Em especial, uma democracia de massas, como a existente em alguns grandes países, de que são nítidos exemplos o Brasil e a Índia, não pode abrir mão de uma simbologia que expresse suas virtudes, embora não seja fácil de ser elaborada. Parece mesmo que só em situações excepcionais os líderes democráticos têm tido essa capacidade, como mostra o exemplo do "v" da vitória figurado nos dedos de Churchill nos momentos mais críticos da Segunda Guerra Mundial. A necessidade da formação de lideranças democráticas, que pela natureza da democracia não se perpetuam no poder nem tentam transformá-lo em condomínio familiar, salta também aos olhos. Lideranças que se expressem com clareza e com respeito à dignidade do cargo que ocupam, que traduzam aspirações e metas, que não hesitem em tomar medidas impopulares quando necessárias, explicando à população as razões dessas medidas. Infelizmente, no panorama internacional, há uma carência dessas lideranças. O presidente Bush dispensa maiores comentários, num texto curto; Tony Blair, outrora líder da terceira via, acomodou-se à sombra de Bush, selando, aliás, seu destino pessoal; [o presidente francês] Jacques Chirac não é nem a sombra de um De Gaulle; o respeitável [premiê italiano] Romano Prodi não chega a despertar entusiasmo e, quanto a seu rival Berlusconi, é melhor nem falar. E nosso país? Estaríamos correndo o risco de ressuscitar a frase atribuída ao ministro de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, para quem o Brasil, em sua época, era "um deserto de homens e de idéias"?


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).


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