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O vácuo da democracia
Embora
sem o culto
à personalidade das ditaduras, regime
marcado pela "mediocridade" também
não consegue
abolir lideranças
e símbolos
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Um traço que caracteriza regimes totalitários ou autoritários, com suas
respectivas gradações, é a capacidade de produzir rituais, mitos, símbolos e
paixões. Isso ocorreu em regimes como os de Hitler, Mussolini, Stálin, Mao Tse-tung.
Não faço referência aos casos
atuais de [Fidel] Castro e de
[Hugo] Chávez, este último encarnando uma situação autoritária em via de converter-se em
regime autoritário, porque merecem uma análise à parte.
Os exemplos referem-se a regimes em que se destaca uma
personalidade extraordinariamente forte, por mais que possamos ter horror ou nos opor
visceralmente a ela; falam de
rituais esteticamente muito
bem encenados ou pelo menos
eficientes nos seus efeitos cênicos; falam da manipulação de
símbolos que calam profundamente em amplos setores da
população.
Inspirado no seu passado de
militante socialista, Mussolini
soube martelar na técnica da
Itália "nação proletária", diante das grandes potências do
mundo, combinando-a com o
mito do ressurgimento do Mediterrâneo como o grande lago
romano; Hitler encontrou
quem encenasse os grandes rituais dos congressos partidários em Nuremberg, explorando também o tema da desforra
de uma nação humilhada pelo
Tratado de Versalhes [1919],
sob ameaça da conspiração judaica internacional.
Stálin encarnou o mito da revolução proletária mundial.
Revelou-se um gênio na construção da máquina partidária e
do Estado totalitário, mas, ao
contrário dos outros citados e
de seu rival Trótski, não possuía dotes de oratória. A rudeza, a violência sem limites e, ao
mesmo tempo, o encanto pessoal em doses calculadas foram
armas de seu poder absoluto.
Em contraste, os regimes democráticos, por sua natureza,
não têm tais características, e
há mesmo quem assinale que
eles contenham como um de
seus traços principais a mediocridade. Assim, Ian Buruma e
Avishai Margalit, no pequeno e
sedutor livro "Ocidentalismo"
(ed. Jorge Zahar), salientam
essa circunstância, acrescentando que o heroísmo revolucionário, o espírito de sacrifício
e os horizontes de um futuro
radioso encantaram muitos intelectuais do ocidente e os levaram a glorificar a União Soviética de Stálin, a China de Mao,
o Irã dos aiatolás etc.
Buruma e Margalit citam o
historiador nacionalista alemão Arthur Moeller van den
Bruck (1876-1925), para quem
as sociedades liberais dão a todas as pessoas o direito de serem medíocres, pois seu objetivo principal reside em promover a vida rotineira, e não a vida
excepcional. Eles dizem, com
justeza, que essa observação
não é inteiramente equivocada
e lembram Tocqueville, que,
fascinado com ressalvas pela
democracia americana, já por
volta de 1835, fazia considerações semelhantes.
Discurso e jogo
Lembrei-me, a propósito, da
utilização do tema numa revista de propaganda inglesa, no
curso da Segunda Guerra, editada em várias línguas, inclusive em português.
Aí se contrastavam, com a
força das imagens, um discurso
de Hitler na Alemanha e um jogo de cartas num pub inglês,
encimando as respectivas legendas: "O discurso do Führer
que nunca acaba; o jogo de cartas que nunca acaba".
Uma das questões mais significativas que essas comparações suscitam é a de que a "mediocridade democrática" não
prescinde de lideranças nem de
símbolos, embora ambos devam ser, por sua natureza, essencialmente diversos dos que
caracterizam regimes totalitários ou autoritários.
Em especial, uma democracia de massas, como a existente
em alguns grandes países, de
que são nítidos exemplos o
Brasil e a Índia, não pode abrir
mão de uma simbologia que expresse suas virtudes, embora
não seja fácil de ser elaborada.
Parece mesmo que só em situações excepcionais os líderes
democráticos têm tido essa capacidade, como mostra o
exemplo do "v" da vitória figurado nos dedos de Churchill
nos momentos mais críticos da
Segunda Guerra Mundial.
A necessidade da formação
de lideranças democráticas,
que pela natureza da democracia não se perpetuam no poder
nem tentam transformá-lo em
condomínio familiar, salta
também aos olhos.
Lideranças que se expressem
com clareza e com respeito à
dignidade do cargo que ocupam, que traduzam aspirações
e metas, que não hesitem em
tomar medidas impopulares
quando necessárias, explicando à população as razões dessas
medidas.
Infelizmente, no panorama
internacional, há uma carência
dessas lideranças. O presidente
Bush dispensa maiores comentários, num texto curto; Tony
Blair, outrora líder da terceira
via, acomodou-se à sombra de
Bush, selando, aliás, seu destino pessoal; [o presidente francês] Jacques Chirac não é nem
a sombra de um De Gaulle; o
respeitável [premiê italiano]
Romano Prodi não chega a despertar entusiasmo e, quanto a
seu rival Berlusconi, é melhor
nem falar.
E nosso país? Estaríamos
correndo o risco de ressuscitar
a frase atribuída ao ministro de
Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, para quem o Brasil, em sua
época, era "um deserto de homens e de idéias"?
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).
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