São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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Jornalismo de trincheira

Em "Lutando na Espanha", o escritor britânico George Orwell registra os combates de que participou durante a Guerra Civil, 70 anos atrás

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apenas 70 anos se passaram desde o estouro da Guerra Civil Espanhola, mas parecem 700. Mas entre 2006 e o remoto 1936 passou a Segunda Guerra Mundial e transcorreu toda a Guerra Fria, experiências distantes para a percepção média de quem vive sob a hegemonia absoluta do império norte-americano de hoje. Mesmo assim, prestando um pouco de atenção, se percebe que o choque entre a esquerda e a direita na Espanha de 1936 ainda ecoa: não faz muito, uma senhora espanhola que vive em São Paulo teve sua casa aberta pela polícia porque, pequeno horror paradoxal na sociedade do desperdício, ela acumulava doentiamente de tudo, desde objetos industriais até comida; perguntada, justificou-se dizendo que fora criada no tempo duro da Guerra Civil Espanhola, em que faltava de tudo. Sobrava era futuro, vistas as coisas de hoje para trás. E justamente esse futuro, os 70 anos transcorridos, são talvez a melhor razão para ler "Lutando na Espanha", de George Orwell (com excelente apresentação de Ronald Polito, mas com alguns erros de numeração nas notas), escritor inglês mais famoso por suas sombrias narrativas alegóricas "1984" e "Revolução dos Bichos" -ambas ocupadas com o que ocorreu no Ocidente depois da derrota das posições que ele defendeu com a vida nas terras espanholas: o sonho socialista libertário, o internacionalismo humanista, o fim da opressão capitalista.

Experiências radicais
Orwell foi a Barcelona para lutar pela esquerda, num tempo em que, fora da União Soviética, ainda se postulavam as teses socialistas não-comunistas. Experiente em matéria militar, porque tinha servido à polícia do Império Britânico na Ásia, depois de haver nascido na Índia e estudado na Inglaterra, o escritor já havia vivido experiências radicais, como a de haver caído na pobreza voluntariamente, em Londres e Paris, entre 1927 e 1929, de que resultou seu primeiro livro publicado, "Na Pior em Paris e Londres". Essa obra, em que usou pela primeira vez o pseudônimo que o tornaria famoso (de batismo, era Eric Arthur Blair), também recebe edição brasileira, com esclarecedor posfácio de Sérgio Augusto. Neste relato já se vê o estilo acertado do repórter-ensaísta, misto de depoimento cru com visada discretamente irônica (mas tem quem atribua aos EUA a invenção do "new journalism"). Por que foi para a Espanha? Para conhecer de perto aquela movimentação e sobre ela escrever artigos. Mas logo percebeu que valia mais a pena ajudar diretamente os que tinham posições como a sua.

O repórter e o cidadão
Vai nisso outro dilema que hoje parece fenecido, lamentavelmente: a consciência do repórter confrontando com a do cidadão, sobre matéria complexa e de abordagem relevante para a sociedade. Orwell deliberou então entrar para a guerra e -após passar por breve treinamento, estar no front, ser ferido gravemente por tiro e experimentar a derrota de seus sonhos libertários (derrota que foi primeiro para a ortodoxia comunista, que lá e noutras partes do mundo muitas vezes se aliou aos fascistas contra o resto da esquerda, e só depois para Franco)- contou tudo isso. E como contou. O livro que agora se publica tem grande interesse por ser um relato honesto de uma guerra civil importante para o destino do Ocidente (muitas figuras relevantes se ocuparam dela, indo lá lutar ou sobre ela escrevendo, sendo esse o caso de Erico Verissimo, em "Saga") mas também por ser escrito por um talento superior. Logo no início aparecem as marcas do indivíduo formado na tradição letrada inglesa, como ao descrever um italiano pobre e analfabeto, também voluntário na guerra: "Havia tanto de candura quanto de ferocidade nele; havia, também, a reverência patética que os analfabetos têm para com seus supostos superiores". Espalhado ao longo do relato, se evidencia também um senso de antropólogo, capaz de relativizar seus pontos de vista mesmo em matéria graves. Para gosto do leitor de hoje, há também uma crítica política feroz, que não livra a cara de ninguém, da direita feroz à esquerda anarquista, passando naturalmente pelos comunistas (feitos alguns ajustes, Orwell ajuda a ler a cena brasileira atual, na matéria do aparelhamento pragmático feito por partido com histórico de luta popular).

Bala no pescoço
Há pérolas de capacidade descritiva, como a passagem em que reconstitui a sensação de ser atingido por uma bala no próprio pescoço. Isso sem falar no velho e bom humor à inglesa: em certo momento, Orwell conta da guerra de trincheiras em que estava metido, uma posicionada frente à outra com algumas centenas de metros entre si, sem solução militar, quando alguém, do mesmo lado do escritor, resolve fazer guerra pelo megafone, às vezes gritando slogans contra os fascistas, mas noutras anunciando, para atormentar os inimigos, supostas vantagens bem mais humanas, como "Estamos sentados comendo torradas com manteiga". Uma cena pode representar o gosto de conhecer o relato de Orwell: em certo momento, na trincheira, teve chance concreta de atirar em um inimigo visível, um indivíduo que corria segurando as calças com as duas mãos; e o escritor faz a reflexão: "Tinha vindo atirar em "fascistas'; mas um homem que está segurando as calças não é um "fascista", é, visivelmente, um semelhante". Observação preciosa da vida, em um texto que dá gosto de ler do começo ao fim.


LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Quatro Negros" (L&PM).

LUTANDO NA ESPANHA - HOMENAGEM À CATALUNHA E OUTROS ESCRITOS SOBRE A GUERRA CIVIL ESPANHOLA
Autor: George Orwell
Tradução: Ana Helena Souza
Editora: Globo (tel. 0/xx/11/2199-8888)
Quanto: R$ 45 (400 págs.)
NA PIOR EM PARIS E LONDRES
Autor: George Orwell
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 39,50 (256 págs.)


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