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Jornalismo de trincheira
Em "Lutando na Espanha", o escritor britânico George Orwell registra
os combates de que participou durante a Guerra Civil, 70 anos atrás
LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Apenas 70 anos se
passaram desde o
estouro da Guerra
Civil Espanhola,
mas parecem 700.
Mas entre 2006 e o remoto
1936 passou a Segunda Guerra
Mundial e transcorreu toda a
Guerra Fria, experiências distantes para a percepção média
de quem vive sob a hegemonia
absoluta do império norte-americano de hoje.
Mesmo assim, prestando um
pouco de atenção, se percebe
que o choque entre a esquerda
e a direita na Espanha de 1936
ainda ecoa: não faz muito, uma
senhora espanhola que vive em
São Paulo teve sua casa aberta
pela polícia porque, pequeno
horror paradoxal na sociedade
do desperdício, ela acumulava
doentiamente de tudo, desde
objetos industriais até comida;
perguntada, justificou-se dizendo que fora criada no tempo duro da Guerra Civil Espanhola, em que faltava de tudo.
Sobrava era futuro, vistas as
coisas de hoje para trás. E justamente esse futuro, os 70 anos
transcorridos, são talvez a melhor razão para ler "Lutando na
Espanha", de George Orwell
(com excelente apresentação
de Ronald Polito, mas com alguns erros de numeração nas
notas), escritor inglês mais famoso por suas sombrias narrativas alegóricas "1984" e "Revolução dos Bichos" -ambas ocupadas com o que ocorreu no
Ocidente depois da derrota das
posições que ele defendeu com
a vida nas terras espanholas: o
sonho socialista libertário, o
internacionalismo humanista,
o fim da opressão capitalista.
Experiências radicais
Orwell foi a Barcelona para
lutar pela esquerda, num tempo em que, fora da União Soviética, ainda se postulavam as teses socialistas não-comunistas.
Experiente em matéria militar, porque tinha servido à polícia do Império Britânico na
Ásia, depois de haver nascido
na Índia e estudado na Inglaterra, o escritor já havia vivido
experiências radicais, como a
de haver caído na pobreza voluntariamente, em Londres e
Paris, entre 1927 e 1929, de que
resultou seu primeiro livro publicado, "Na Pior em Paris e
Londres".
Essa obra, em que usou pela
primeira vez o pseudônimo que
o tornaria famoso (de batismo,
era Eric Arthur Blair), também
recebe edição brasileira, com
esclarecedor posfácio de Sérgio
Augusto. Neste relato já se vê o
estilo acertado do repórter-ensaísta, misto de depoimento
cru com visada discretamente
irônica (mas tem quem atribua
aos EUA a invenção do "new
journalism").
Por que foi para a Espanha?
Para conhecer de perto aquela
movimentação e sobre ela escrever artigos. Mas logo percebeu que valia mais a pena ajudar diretamente os que tinham
posições como a sua.
O repórter e o cidadão
Vai nisso outro dilema que
hoje parece fenecido, lamentavelmente: a consciência do repórter confrontando com a do
cidadão, sobre matéria complexa e de abordagem relevante
para a sociedade.
Orwell deliberou então entrar para a guerra e -após passar por breve treinamento, estar no front, ser ferido gravemente por tiro e experimentar
a derrota de seus sonhos libertários (derrota que foi primeiro
para a ortodoxia comunista,
que lá e noutras partes do mundo muitas vezes se aliou aos fascistas contra o resto da esquerda, e só depois para Franco)-
contou tudo isso.
E como contou.
O livro que agora se publica
tem grande interesse por ser
um relato honesto de uma
guerra civil importante para o
destino do Ocidente (muitas figuras relevantes se ocuparam
dela, indo lá lutar ou sobre ela
escrevendo, sendo esse o caso
de Erico Verissimo, em "Saga")
mas também por ser escrito
por um talento superior.
Logo no início aparecem as
marcas do indivíduo formado
na tradição letrada inglesa, como ao descrever um italiano
pobre e analfabeto, também
voluntário na guerra: "Havia
tanto de candura quanto de ferocidade nele; havia, também, a
reverência patética que os analfabetos têm para com seus supostos superiores".
Espalhado ao longo do relato,
se evidencia também um senso
de antropólogo, capaz de relativizar seus pontos de vista mesmo em matéria graves.
Para gosto do leitor de hoje,
há também uma crítica política
feroz, que não livra a cara de
ninguém, da direita feroz à esquerda anarquista, passando
naturalmente pelos comunistas (feitos alguns ajustes, Orwell ajuda a ler a cena brasileira
atual, na matéria do aparelhamento pragmático feito por
partido com histórico de luta
popular).
Bala no pescoço
Há pérolas de capacidade
descritiva, como a passagem
em que reconstitui a sensação
de ser atingido por uma bala no
próprio pescoço.
Isso sem falar no velho e bom
humor à inglesa: em certo momento, Orwell conta da guerra
de trincheiras em que estava
metido, uma posicionada frente à outra com algumas centenas de metros entre si, sem solução militar, quando alguém,
do mesmo lado do escritor, resolve fazer guerra pelo megafone, às vezes gritando slogans
contra os fascistas, mas noutras
anunciando, para atormentar
os inimigos, supostas vantagens bem mais humanas, como
"Estamos sentados comendo
torradas com manteiga".
Uma cena pode representar o
gosto de conhecer o relato de
Orwell: em certo momento, na
trincheira, teve chance concreta de atirar em um inimigo visível, um indivíduo que corria segurando as calças com as duas
mãos; e o escritor faz a reflexão:
"Tinha vindo atirar em "fascistas'; mas um homem que está
segurando as calças não é um
"fascista", é, visivelmente, um
semelhante".
Observação preciosa da vida,
em um texto que dá gosto de ler
do começo ao fim.
LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e autor de "Quatro Negros" (L&PM).
LUTANDO NA ESPANHA
- HOMENAGEM À CATALUNHA
E OUTROS ESCRITOS SOBRE
A GUERRA CIVIL ESPANHOLA
Autor: George Orwell
Tradução: Ana Helena Souza
Editora: Globo (tel. 0/xx/11/2199-8888)
Quanto: R$ 45 (400 págs.)
NA PIOR EM PARIS E LONDRES
Autor: George Orwell
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras (tel.
0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 39,50 (256 págs.)
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