São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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A âncora rarefeita

Simon Blackburn refaz a busca dos filósofos por um critério confiável para a noção de verdade

ISAIAS PESSOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que é a verdade?" Pilatos fez a pergunta e não esperou a resposta. Que não viria. A filosofia há séculos se interroga: "existe uma verdade a ser alcançada?", "quando o conhecimento é verdadeiro?" ou, ainda, "a verdade é uma só, absoluta, ou é mutável, relativa?". "Verdade", de Simon Blackburn, mostra, com densa informação, os caminhos tortuosos dessa busca, em que cada achado traz nova perplexidade. Mesmo sendo "um guia para os perplexos", o texto não seria filosófico se, ao final, abolisse as perplexidades do leitor. Pois uma resposta definitiva, para ser verdadeira, teria que conformar-se a critérios de verdade outros que ela mesma; portanto, a outra definição de verdade. Assim, além de historiar a trajetória filosófica do problema, o próprio texto é exemplo da inevitável relatividade de qualquer resposta. Ele mostra que à idéia de uma verdade transcendente, a ser alcançada pelo filósofo perfeito, se opõe, desde o século 5º, o relativismo do sofista Protágoras, a ensinar que "o homem é a medida de todas as coisas", que verdade e opinião individual coincidem. É oscilando entre essas duas concepções que -já esquecida de uma verdade platônica, absoluta, eterna- a filosofia constrói a teoria do conhecimento. Mas ainda admitindo e procurando uma teoria verdadeira da verdade, critérios universais de verdade. Um critério, secular, é: o conhecimento de um objeto é absolutamente verdadeiro quando representa fielmente o objeto real. Mas Nietzsche, James, Foucault e outros mostraram a falácia de tal critério: ele supõe que se conheça o objeto real antes de aferir se a representação dele é adequada. Portanto, qualquer representação poderia ser verdadeira? Como escolher entre elas? Um critério seria o da fidelidade ao "logos", às regras universais da razão, da lógica. Mas um relativista diria que "todas as opiniões são iguais, vistas pelo "logos'", ou que "todo conhecimento é de um sujeito, é subjetivo" (tais afirmações pró-relativismo da verdade, como aponta Nagel, são claramente não-relativistas). Essa oposição entre absolutismo e relativismo da verdade, um fio condutor do texto, é exposta em seus diversos momentos históricos. Como o da análise corrosiva de Nietzsche (no capítulo quatro), a mostrar a progressiva substituição da idéia de "mundo verdadeiro" pela de um mundo das aparências. "Existe "apenas" um ver em perspectiva, "apenas" um "saber" em perspectiva." Não há uma razão pura, imune às determinações subjetivas, afetivas, na qual fundar a verdade. O conhecimento é interpretação, é "versão", produzida historicamente. As categorias que descobrimos são transitórias, num fluxo heraclitiano, permanente. Assim, como mostra o capítulo cinco, na reflexão filosófica passam a se opor uma concepção realista (que postula um mundo de objetos de conhecimento reais a serem explicados, por meio de critérios de verdade externos) e uma concepção construtivista (para a qual o mundo que conhecemos é, de algum modo, um produto de nosso modo de ver). A primeira, que embasa o método da ciência, objetivista por definição, tende a banir qualquer abstração não fundada no dado, no observado. Só que a própria confiabilidade da observação é duramente contestada, e, além disso, qualquer explicação exige alguma abstração, uma elaboração a partir de um certo modo de ver. Teórico, afetivo, consensual ou canônico. Mais ainda, contra a postura realista está a afirmação revolucionária de Wittgenstein, de que todo conhecimento é feito de linguagem, é um jogo de linguagem. Que os limites do mundo são os limites da linguagem. Que, para verificar a adequação do conhecimento ao mundo real, a razão precisaria sair de si mesma, ser um objeto de si mesma. O olho não pode enxergar a si mesmo. A "realidade objetiva" como referencial para a verdade é, portanto, uma ficção. Onde, então, buscar o critério de verdade? No sentido das proposições que a linguagem constrói para dar conta dos fatos. O capítulo seis mostra como as obras de Wittgenstein, de Quine, Sellars e Rorty desencantaram o paraíso do "logos" como critério de verdade, mostrando que não há um modo certo de adquirir experiência, não há uma lógica capaz de decidir as implicações corretas de nossos pontos de vista -ou aquilo que pode ou deve ser inferido de não importa o que- e também não há um modo seguro de fixar o significado em palavras. Restaria uma âncora: admitir que as sensações produzidas pelos objetos causam impressões reais e fiéis deles. Mas, como mostra o capítulo sete, já Berkeley semeava a idéia de que os objetos físicos são apenas "possibilidades" permanentes de sensações. Como, então, acreditar nos fatos da ciência? A resposta, curiosa, de Blackburn, é: "Só é verdadeiro o que explica o que acontece". Mas, após Wittgenstein, nós sabemos que tal explicação, pura linguagem, balizada pela lógica, pelas regras da razão, não é universal nem permanente. Afinal, como ensina Granger, até a mesma razão é apenas um "equilíbrio provisório do processo criador" da humanidade.


ISAIAS PESSOTTI é escritor e ex-professor de psicologia na Faculdade de Medicina da USP.
VERDADE - UM GUIA PARA OS PERPLEXOS
Autor: Simon Blackburn
Tradução: Marilene Tombini
Editora: Civilização Brasileira (tel. 0/xx/21/2585-2000)
Quanto: R$ 44,90 (352 págs.)


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