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A âncora rarefeita
Simon Blackburn refaz a busca dos filósofos por um critério confiável para a noção de verdade
ISAIAS PESSOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
que é a verdade?"
Pilatos fez a pergunta e não esperou a resposta.
Que não viria. A filosofia há séculos se interroga:
"existe uma verdade a ser alcançada?", "quando o conhecimento é verdadeiro?" ou, ainda, "a verdade é uma só, absoluta, ou é mutável, relativa?".
"Verdade", de Simon Blackburn, mostra, com densa informação, os caminhos tortuosos
dessa busca, em que cada achado traz nova perplexidade.
Mesmo sendo "um guia para
os perplexos", o texto não seria
filosófico se, ao final, abolisse
as perplexidades do leitor. Pois
uma resposta definitiva, para
ser verdadeira, teria que conformar-se a critérios de verdade outros que ela mesma; portanto, a outra definição de verdade. Assim, além de historiar
a trajetória filosófica do problema, o próprio texto é exemplo da inevitável relatividade
de qualquer resposta.
Ele mostra que à idéia de
uma verdade transcendente, a
ser alcançada pelo filósofo perfeito, se opõe, desde o século
5º, o relativismo do sofista Protágoras, a ensinar que "o homem é a medida de todas as
coisas", que verdade e opinião
individual coincidem.
É oscilando entre essas duas
concepções que -já esquecida
de uma verdade platônica, absoluta, eterna- a filosofia
constrói a teoria do conhecimento. Mas ainda admitindo e
procurando uma teoria verdadeira da verdade, critérios universais de verdade.
Um critério, secular, é: o conhecimento de um objeto é absolutamente verdadeiro quando representa fielmente o objeto real. Mas Nietzsche, James,
Foucault e outros mostraram a
falácia de tal critério: ele supõe
que se conheça o objeto real
antes de aferir se a representação dele é adequada.
Portanto, qualquer representação poderia ser verdadeira? Como escolher entre elas?
Um critério seria o da fidelidade ao "logos", às regras universais da razão, da lógica.
Mas um relativista diria que
"todas as opiniões são iguais,
vistas pelo "logos'", ou que "todo conhecimento é de um sujeito, é subjetivo" (tais afirmações pró-relativismo da verdade, como aponta Nagel, são claramente não-relativistas).
Essa oposição entre absolutismo e relativismo da verdade,
um fio condutor do texto, é exposta em seus diversos momentos históricos. Como o da
análise corrosiva de Nietzsche
(no capítulo quatro), a mostrar
a progressiva substituição da
idéia de "mundo verdadeiro"
pela de um mundo das aparências. "Existe "apenas" um ver
em perspectiva, "apenas" um
"saber" em perspectiva."
Não há uma razão pura, imune às determinações subjetivas, afetivas, na qual fundar a
verdade. O conhecimento é interpretação, é "versão", produzida historicamente. As categorias que descobrimos são transitórias, num fluxo heraclitiano, permanente.
Assim, como mostra o capítulo cinco, na reflexão filosófica passam a se opor uma concepção realista (que postula
um mundo de objetos de conhecimento reais a serem explicados, por meio de critérios
de verdade externos) e uma
concepção construtivista (para
a qual o mundo que conhecemos é, de algum modo, um produto de nosso modo de ver).
A primeira, que embasa o
método da ciência, objetivista
por definição, tende a banir
qualquer abstração não fundada no dado, no observado.
Só que a própria confiabilidade da observação é duramente contestada, e, além disso, qualquer explicação exige
alguma abstração, uma elaboração a partir de um certo modo de ver. Teórico, afetivo, consensual ou canônico.
Mais ainda, contra a postura
realista está a afirmação revolucionária de Wittgenstein, de
que todo conhecimento é feito
de linguagem, é um jogo de linguagem. Que os limites do
mundo são os limites da linguagem. Que, para verificar a
adequação do conhecimento
ao mundo real, a razão precisaria sair de si mesma, ser um objeto de si mesma. O olho não
pode enxergar a si mesmo. A
"realidade objetiva" como referencial para a verdade é, portanto, uma ficção.
Onde, então, buscar o critério de verdade?
No sentido das proposições
que a linguagem constrói para
dar conta dos fatos. O capítulo
seis mostra como as obras de
Wittgenstein, de Quine, Sellars
e Rorty desencantaram o paraíso do "logos" como critério
de verdade, mostrando que não
há um modo certo de adquirir
experiência, não há uma lógica
capaz de decidir as implicações
corretas de nossos pontos de
vista -ou aquilo que pode ou
deve ser inferido de não importa o que- e também não há um
modo seguro de fixar o significado em palavras.
Restaria uma âncora: admitir
que as sensações produzidas
pelos objetos causam impressões reais e fiéis deles. Mas, como mostra o capítulo sete, já
Berkeley semeava a idéia de
que os objetos físicos são apenas "possibilidades" permanentes de sensações. Como,
então, acreditar nos fatos da
ciência? A resposta, curiosa, de
Blackburn, é: "Só é verdadeiro
o que explica o que acontece".
Mas, após Wittgenstein, nós
sabemos que tal explicação, pura linguagem, balizada pela lógica, pelas regras da razão, não
é universal nem permanente.
Afinal, como ensina Granger,
até a mesma razão é apenas um
"equilíbrio provisório do processo criador" da humanidade.
ISAIAS PESSOTTI é escritor e ex-professor de
psicologia na Faculdade de Medicina da USP.
VERDADE - UM GUIA PARA OS
PERPLEXOS
Autor: Simon Blackburn
Tradução: Marilene Tombini
Editora: Civilização Brasileira (tel.
0/xx/21/2585-2000)
Quanto: R$ 44,90 (352 págs.)
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