|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Cortinas de fumaça
Nobel
de Literatura, Kawabata tematiza, em dois romances,
o choque de civilizações no Japão do
pós-guerra
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No ensaio "O Elogio
da Sombra", o escritor Junichiro
Tanizaki (1886-1965) diz que alguém que pretenda construir
uma casa em puro estilo japonês terá de se preparar para sofrer com a instalação da eletricidade, a água e o gás. Será preciso camuflar cabos, interruptores e mesmo o telefone e o
ventilador, num "exagero de
artifícios". "Pureza" significa
uma essência fora da história.
A imagem de Tanizaki serve
como metáfora para o dilema
da literatura moderna do Japão, que extrai do choque entre
Ocidente e Oriente as tensões
de sua arte. Luta para manter-se fiel a um mundo que se assume imemorial, ao mesmo tempo em que absorve o olhar histórico do "homem incompleto"
da literatura ocidental.
É um choque tão poderoso
que às vezes assume o suicídio
como última expressão de sua
cultura -uma cultura em que o
próprio conceito de "indivíduo" não tem o significado fundador de identidade como tem
no imaginário do Ocidente.
A obra de Yasunari Kawabata (1899-1972) é um paradigma
desse dilema. Dois novos lançamentos, em bem-cuidadas
edições, "Kyoto" e "Mil Tsurus", permitem conhecer um
pouco mais este autor.
"Kyoto" (1961) é quase uma
defesa implícita da "alma nacional", simbolizada na cidade
de Kyoto, antiga capital do império. Marca de Kawabata, o
gancho narrativo é mínimo.
Na sua delicada representação, homens e natureza se confundem na mesma aquarela, e
os gestos da cultura humana
parecem estar todos a serviço
de uma ordem imemorial e intocável. "Trinta centímetros
separavam as violetas de cima
das de baixo. Chieko, que chegava à plenitude da mocidade,
às vezes perguntava a si mesma
se elas se encontrariam algum
dia. Será que se conheciam?"
-reflete a personagem central.
Criança abandonada
Ela observa nas violetas brotadas num tronco o destino
que, afinal, era o dela própria:
nascida em família pobre, foi
abandonada na porta de um
atacadista de tecidos; para trás
ficou uma irmã gêmea, que conhecerá por acaso. Entre elas,
está Hiedo, jovem tecelão de
"obis" (faixas que prendem os
quimonos na cintura), que se
apaixonará por uma e, depois,
por outra das irmãs.
Esta breve intriga de sabor
clássico e popular, temperada
pela figura de Takishiro Sada,
pai de Chieko -comerciante à
antiga, deprimido pela modernização do país- vai discretamente amarrando o texto, que
se detém na descrição da natureza e dos festivais populares
de Kyoto, narrados às vezes
com um tom direto de documentário. "Kyoto" é uma obra
conservadora num sentido amplo -preserva as marcas de
uma literatura que existe para
cantar o mundo, e não para
contestá-lo (um dos traços longínquos da linguagem épica).
A pintura é um dos temas-chave; os motivos dos desenhos
que o tecelão Hiedo realiza em
seus obis se confundem com a
natureza que retrata.
A estranheza do mundo está
no insondável mistério de todas as coisas, mistério que é antes objeto de veneração que de
investigação. O narrador pensa
pelos personagens de forma
plana e integral. Não há ênfase
ou sentimentalismo -homens
e natureza partilham a mesma
tradição e a mesma inescrutável beleza.
Aprendiz de gueixa
Assim, quando o velho Takishiro, numa casa de chá, é apresentado a uma menina que se
prepara para se tornar gueixa
-o que, no Ocidente, sugere
inequívoca pedofilia-, diz que
ela seria uma "maiko" (aprendiz de gueixa) de primeira.
No quadro da cultura japonesa que Kawabata canta, os papéis do homem e da mulher, assim como a rígida estratificação
social, estão tão estabelecidos
como os cedros de Kitayama e
os festivais milenares da cidade. Naturalmente, ainda é o Japão dos anos 1950, mas, sinal
dos tempos, Kawabata deixa
entrever numa cena curta o fascínio dos clientes de uma loja
por um radinho Sony.
Em "Mil Tsurus", que significa "mil aves", encontramos um
Kawabata em estado puro
-aqui a intenção estética se
realiza inteira, sem o proselitismo de "Kyoto".
A fábula é econômica: o jovem Kikuji, após a morte do
pai, balança seu coração entre
duas pretendentes: Fumiko, filha da viúva que foi amante de
seu pai, e Yukiko, uma jovem
que a alcoviteira Chikako pretende casar com ele.
A própria Chikako -que tem
uma mancha escura em um dos
seios, uma lembrança marcante do protagonista quando
criança- também viveu um caso com o pai de Kikuji, o que dá
ao enredo um clima sutil de sugestões eróticas difusas e vagamente incestuosas.
A narração avança em torno
dos rituais de cerimônias de
chá e do denso simbolismo de
porcelanas clássicas, objetos
que têm quase o peso narrativo
das figuras humanas que os
manuseiam.
Indefinição
Há um teatro delicado no
gestual e nas falas do texto de
Kawabata. Não fossem alguns
raros sinais de modernidade
-o telefone, por exemplo-, leríamos uma obra sem idade sobre figuras arquetípicas.
O que sentimos de contemporâneo é justamente a indefinição, a inconclusão das cenas,
a neblina que suaviza o drama e
transforma a todos em figuras
de sonho, sob a sombra exigente de mil anos de história.
Como se frisou no discurso
de recepção do Prêmio Nobel
que Kawabata recebeu em
1968, quatro anos antes de se
suicidar, encontra-se nele uma
clara tendência de "nutrir e
preservar uma tradição de estilo genuinamente nacional".
CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor dos romances "O Fotógrafo" e "Breve Espaço entre
Cor e Sombra", entre outros, e do ensaio "Entre
a Prosa e a Poesia - Bakhtin e o Formalismo
Russo" (todos publicados pela Rocco).
KYOTO
Autor: Yasunari Kawabata
Tradução: Meiko Shimon
Editora: Estação Liberdade (tel. 0/
xx/11/3661-2881)
Quanto: R$ 37,50 (256 págs.)
MIL TSURUS
Autor: Yasunari Kawabata
Tradução: Drik Sada
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 29,80 (176 págs.)
Texto Anterior: A âncora rarefeita Próximo Texto: + lançamentos Índice
|