São Paulo, domingo, 13 de setembro de 2009

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O triste fim de Maiakóvski

VERSÃO BRASILEIR A DA PEÇA "OPERCE VEJ O", CUJA TRADUÇÃ O ACABA DE SER PUBLICAD A, QUIS DAR TOM OTIMISTA AOS FUNESTOS PRESSÁGI OS SOCIAIS E PESSOAIS QUE SERVIAM DE DESFECHO PARA A OBRA DO POETA RUSSO

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Como morreu Vladímir Maiakóvski? Boa pergunta. A versão oficial aponta para um suicídio melodramático, de acordo com o temperamento teatral do personagem. Na nova União Soviética de Stálin -a União Soviética da conformidade, da submissão absoluta, dos planos quinquenais-, o nome maior da vanguarda russa, ostracizado e deprimido, decidira sair de cena.
Existe uma outra versão, igualmente colorida: a amante, Lília Brik, uma colaboradora da polícia secreta, teria denunciado os comportamentos "desviantes" de Maiakóvski, e não necessariamente na cama. Caído em desgraça, Maiakóvski foi assassinado. Ou, como na piada bolchevique, barbaramente suicidado.
As circunstâncias da morte continuam a fascinar os estudiosos da matéria. Mas, suicidado ou suicidando-se, resta uma certeza que é difícil iludir: Maiakóvski morreu de ingenuidade. Não foi o único e, escusado será dizer, não foi o último: a mesma intelligentsia que recebera os bolcheviques de braços abertos na Rússia campesina e analfabeta de 1917 seria aquela que os bolcheviques acabariam por estrangular mais tarde.
Mas quem sabia disso em 1917? Poucos. Em 1917, o passado arcaico e opressivo dos czares seria enterrado pela paixão fraterna dos vermelhos.
Sabemos hoje que a história foi diferente. Mais: a história só poderia ser diferente. Ao contrário do que afirmam os beatos, não existe qualquer pureza benigna no ideal marxista; apenas a certeza de que a sua aplicação prática exige sempre violência e desumanidade, como é próprio das "religiões seculares". Kolakowski explica. Raymond Aron explica.
E Maiakóvski, à sua maneira, também. Em 1923, no poema dedicado à amante, "Pro Eto" [Sobre Isto], a desilusão do autor era já tangível: a Nova Política Econômica com que Lênin pretendia levantar a União Soviética saída da guerra civil era a primeira grande "traição" à pureza do ideal. A União Soviética, aos olhos do horrorizado Maiakóvski, "aburguesava-se": esquecia as relações humanas autênticas, preferindo os prazeres efêmeros.
O poema termina com uma nota de esperança: no futuro, proclamava Maiakóvski, seria possível retomar o rumo e viver um amor desinteressado e verdadeiramente fraternal.

 

Eis a esperança que "O Percevejo" enterra definitivamente. Basta acompanhar a odisseia trágica do seu personagem principal, Prissípkin, para contemplar o epitáfio.
Numa primeira leitura, Prissípkin não se distingue dos arrivistas que Maiakóvski elegia como alvo. Em "O Percevejo", Prissípkin representa o antigo operário soviético que, seduzido pelo "aburguesamento" consumista da Nova Política Econômica, decide atraiçoar a sua classe (e a sua amante proletária, Zoia Bieriózkina) para casar com donzela que lhe garante ascensão social.
Prissípkin tudo faz para escalar essa montanha: muda de nome; muda de amigos; muda de hábitos; mas não muda o destino implacável que usualmente se abate sobre os traidores: no dia do matrimônio, os noivos e os convidados são consumidos por chamas infernais. Deus não dorme. Fim de história? Longe disso.
Na segunda parte da obra, descobrimos que Prissípkin não morreu. Por razões milagrosas, o corpo permaneceu congelado em tina de água dos bombeiros e, cinco décadas depois do incêndio, a União Soviética do futuro decide descongelá-lo. A ele, Prissípkin, e a um percevejo que veio com ele do outro mundo.
"Do outro mundo" é o termo: em meio século, a União Soviética que recebe Prissípkin e o seu asqueroso amigo microscópico já não é dominada pelo consumismo repulsivo e sardônico do passado; um passado onde, apesar de tudo, sempre era possível vencer o tédio com vodca.
No novo mundo, não há vodca, não há fumo, não há nada. A "paixão" não passa de uma doença, felizmente extinta entre os contemporâneos; os "sonhos" só existem nos livros de psiquiatria, assim como as "rosas" nos manuais de jardinagem. Ninguém dança porque ninguém conhece a dança: apenas os mais velhos, tomados pelo reumatismo, se lembram dessa bizarria.
A União Soviética do futuro é pós-humana e inumana. Prissípkin e o percevejo, friamente rebatizados como Philistaeus vulgaris e Percevejus normalis, são meras aberrações. Anacrônicas aberrações que merecem ser exibidas no zoo da cidade, perante uma audiência fascinada e assustada. Moral da história?
A Nova Política Econômica podia ser um processo de crescente vulgarização; mas a política quinquenal de Stálin prometia ser mais: uma certeza de aniquilação artística e pessoal.
Como, na verdade, foi: ao desaparecer em 1930, Maiakóvski não sobreviveu para ver as perseguições tenazes aos seus colegas de ofício. Se os escritores eram, como afirmava Stálin em metáfora sinistra, os "engenheiros das almas humanas", esse glorioso papel era incompatível com as liberdades satíricas e pessimistas de um Bulgakov ou de um Zamiatin. Estava aberta a época de caça.
 

A publicação de "O Percevejo" permite aos leitores brasileiros revisitar o funesto presságio de Maiakóvski: uma visão do futuro que só peca por modesta. A destruição que Stálin promoveria na União Soviética, e que na realidade prolongava a violência sistemática inaugurada por Lênin, apenas pode ser comparável com a barbárie nazista.
Mas a publicação de "O Percevejo" permite igualmente corrigir o abuso praticado em 1981, quando a sua encenação no Rio de Janeiro levou o elenco a alterar o final sombrio da peça com a inclusão de um poema de esperança; no fundo, a esperança de que os brasileiros talvez precisassem depois dos anos da ditadura [1964-85].
O gesto, para além de abusivo, apenas partilha do mesmo tipo de ingenuidade que condenou Maiakóvski: a ingenuidade dos que acreditam que os ideais triunfarão onde os homens fracassaram.
O destino da União Soviética no século 20 não autoriza essa fantasiosa distinção.

O PERCEVEJO
Autor: Vladímir Maiakóvski
Tradução: Luís Antonio Martinez Corrêa
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 29 (112 págs.)



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