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EXCLUSÃO CORDIAL
A ANTROPÓLOGA TERESA CALDEIRA, DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, EXPLICA
A SEGREGAÇÃO NOS SUBÚRBIOS DE PARIS, LOS ANGELES E SÃO PAULO E DIZ QUE
AS CIDADES TOMARAM O LUGAR DAS FÁBRICAS COMO ESPAÇO DE PROTESTO
Vincent Kessler - 8.nov.2005/Reuters
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Veículos
empilhados
após
terem sido
queimados
durante
distúrbios na
periferia
de Estrasburgo
(França) |
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
Desde o último dia 27 até a
quinta-feira passada, mais
de 6.000 veículos foram
queimados, pelo menos
2.000 pessoas foram detidas e uma
morreu em Paris, capital de um país
reconhecido por seu generoso Estado de Bem-Estar Social.
Em reação desesperada, o governo
da França ressuscitou uma lei de
1955, que permite a adoção do toque
de recolher, e ameaça expulsar os estrangeiros envolvidos nos ataques.
A mistura bombástica de segregação racial, cultural e econômica levou a capital mais glamourosa do
Ocidente e outras cidades do interior do país a presenciar cenas de
violência e destruição de proporções
inéditas, que remetem aos "riots"
que devastaram Los Angeles em
1992, em protesto contra o espancamento do motorista negro Rodney
King. Mas também evocam a terra
sem lei das periferias das grandes cidades brasileiras.
Embora as razões sejam outras, os
distúrbios que ocorreram podem
apresentar um estopim comum, como a violência policial -que teria
sido a razão dos ataques em Paris e o
foi em Los Angeles, em 1992, e também no caso dos confrontos recorrentes na periferia de São Paulo.
Em Paris há muitos
espaços públicos, mas as pessoas dos subúrbios
não os usam, estão presas
do lado de fora
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É essa a opinião de Teresa Caldeira, professora da Universidade da
Califórnia (em Irvine) e uma das
principais especialistas brasileiras
em violência e segregação urbanas,
que concedeu entrevista à Folha,
por telefone, de sua casa em La Jolla.
Para ela, a principal diferença entre os conflitos europeus e os que se
vêem nas periferias ou favelas de Rio
e São Paulo é a própria base de negociação, uma vez que o excluído das
favelas sabe que é cidadão e tem direitos, por mais que eles não funcionem, enquanto no "banlieu" parisiense a luta dos imigrantes e seus
descendentes é pelo próprio direito
de ter direitos.
Autora de "Cidade de Muros"
(Edusp/ed. 34), em que investiga as
formas da violência na periferia da
maior cidade brasileira, Caldeira
afirma que os conflitos urbanos hoje
tomaram o lugar das antigas lutas
trabalhistas ocorridas nas fábricas, e
o espaço da cidade passou a ser o foco tanto de organização social e política quanto de revolta. "O que eram
a fábrica e as condições de trabalho
industrial, que davam o simbolismo
para as revoltas, hoje é a cidade e as
condições de vida nelas."
Folha - Existe a possibilidade de distúrbios similares aos ocorridos na
França acontecerem em cidades como
São Paulo ou Rio?
Teresa Caldeira - É difícil responder. Claro que existe, e já de há muito tempo, mas isso ainda não causou
nenhum problema generalizado.
Sempre houve quebra-quebras em
São Paulo, mas são contidos e ocorrem por alguma razão específica, como o transporte coletivo. A violência
policial é um forte candidato a ser
estopim de revolta urbana e tanto
em Los Angeles quanto em Paris, foi
ela que fez explodir a revolta.
Folha - Há hoje um aumento de segregação e de tensão social?
Caldeira - Dados como a falta de
perspectiva, as péssimas condições
de vida, o desemprego, as poucas
possibilidades de mobilidade social,
inseridos em cidades de consumo
exacerbado, juntamente com a
questão racial -como em Paris-
que atinge a segunda geração de imigrantes, que quer se integrar, criam a
situação explosiva. O estopim é só
um episódio isolado, que desencadeia o caos.
Mesmo nos EUA, onde a assimilação de imigrantes é muito mais fácil
e todos entram logo no "american
way of life", há imensa tensão racial,
que foi o principal componente dos
"riots" em Los Angeles.
Folha - Os distúrbios na França são
um sintoma do aumento da segregação nas grandes cidades?
Caldeira - Sempre houve segregação, mas o diferencial dos últimos
anos é que se modificou o jeito de
organizá-la.
Em São Paulo, por exemplo, os Racionais MCs têm um rap que exemplifica bem essa nova organização.
Em "Fim de Semana no Parque",
eles descrevem um clube de classe
média que tem tudo e falam: "Olha o
pretinho vendo tudo do lado de fora", ele apenas sonha através do muro. Essa imagem é fantástica para
mostrar o que aconteceu com a cidade. A periferia, que ficava isolada na
zona leste, entrou na zona sul, e há
novos enclaves de classe média interpostos no caminho para a periferia, exacerbando a visibilidade da
desigualdade. Essa proximidade e a
exposição da diferença exacerbada
aumentam a paranóia e as marcas
da desigualdade, tornando muros,
fios elétricos, câmeras de vigilância
mais ostensivos.
É importante dizer que a democracia também deixou mais evidente
essa segregação. A abertura tornou
mais difícil fingir e esconder a desigualdade.
Folha - Qual a diferença entre a situação dos excluídos nas grandes cidades brasileiras e a daqueles que incendiaram os carros na França?
Caldeira - Na França, o problema é
com migrantes internacionais, que
têm um problema óbvio de cidadania, que não existe nas periferias
brasileiras -o que já muda os termos de discussão da desigualdade.
No Brasil, o hip hop busca as origens da desigualdade na escravidão.
Na França, ele fala do colonialismo,
da definição de o que é ser francês.
Na França, enquanto [o presidente
Jacques] Chirac fala em nome da República, está excluindo grande parte
dos revoltados, que não são cidadãos dessa República e que lutam
pelo direito de o serem.
Folha - Mas, no Brasil, os excluídos
também não questionam a própria cidadania devido à falta de direitos?
Caldeira - Sim. A diferença está na
base de negociação. Um diz: "Sou
um cidadão igual a você, mas me
sinto excluído". O outro diz: "Eu
quero ser um cidadão igual a você",
porque ele não o é. Todos estão brigando por direitos, mas a base de negociação é diferente. O Brasil é mais
abrangente em termos de cidadania
nacional, o que não significa que a
desigualdade seja menor, apenas
que os termos da discussão são diferentes. Se não se é cidadão nacional,
não se tem o direito nem mesmo de
requerer direitos.
Folha - A diminuição da segregação
evita ondas de violência?
Caldeira - Em cidades onde há
grande acesso à circulação e ao encontro de diferentes classes sociais,
há menos chance de conflitos. Mas,
se isso não evita completamente
-afinal o conflito é inerente à convivência com a diferença-, ao menos evita confrontos violentos.
Folha - Esse tipo de revolta urbana
modifica efetivamente a sociedade?
Caldeira - Pode ter efeitos. Na história dos direitos civis, nos EUA, havia um componente fundamental de
revolta, mas havia uma forte organização social. Eles mudaram a política do país. O que marcou, entretanto, foi a série de grandes "riots" nas
metrópoles norte-americanas. Já os
"LA riots" dos anos 90 não conseguiram as mesmas mudanças. Eles
certamente obtiveram mudanças específicas na polícia, mas nada tão
forte quanto o anterior nem mudaram as condições de vida nos guetos.
Na França, já se começou a anunciar medidas de inclusão. O importante agora é saber o efeito social
dessas medidas. Eu diria que, enquanto não se mexer na questão da
cidadania e da legalização dos imigrantes -no caso da França-, nada irá mudar.
Folha - Casos como os distúrbios na
França, a segregação em São Paulo e
os protestos violentos como o de Los
Angeles, em 1992, põem em xeque a
idéia de cidade contemporânea?
Caldeira - Não. Todas as grandes cidades são muito segregadas e apresentam desigualdade bastante visível -o que é um dado histórico. A
novidade, que explica por que estão
surgindo tantas revoltas urbanas, é
que até recentemente a maioria das
revoltas de classe girava em torno do
espaço de trabalho, localizava-se nas
fábricas, e os grande agentes delas
eram os sindicatos. Desde a metade
do século 19, na França, as revoltas
aconteciam por questões de trabalho.
Com as mudanças recentes causadas pela globalização e pelo neoliberalismo -que alteraram a estrutura
produtiva e geraram um desemprego estrutural- bem como a migração nacional e internacional -que
cria uma nova população urbana,
inserida nos lugares mais precários
das metrópoles-, a fábrica deixou
de ser o catalisador das revoltas urbanas. As condições urbanas se tornaram uma das principais arenas de
expansão e contração da cidadania.
A principal metáfora de elaboração simbólica do hip hop é justamente a cidade.
Todas as grandes cidades têm
grandes bolsões de exclusão. Há a
periferia de São Paulo, o gueto étnico em Los Angeles e a situação dos
imigrantes em grandes cidades européias, como Paris ou Londres. Há
a população excluída, que não tem
condições de inserção no mercado
de trabalho, altos índices de desemprego e falta de condição de inserção
na vida da própria cidade; e uma cidade que exacerba as ofertas de consumo e promessas de mobilidade
social. O espaço da cidade, onde está
visível a exclusão da possibilidade de
consumo, acaba sendo o espaço onde as pessoas articulam os protestos.
Folha - Então a segregação está ligada à própria idéia de cidade?
Caldeira - As cidades são heterogêneas, têm uma mistura de culturas,
de tipos de população. A questão é
saber até que ponto a diferença se
transforma em base para segregação. Sempre haverá segregação, justamente por conta dessas diferenças
e porque as sociedades, de forma geral, são desiguais.
O importante é saber como organizar essas diferenças para aumentar ou diminuir essa segregação. A
solução das fortificações, dos muros
e da demonização das favelas, como
acontece em São Paulo, não vai
aproximar grupos nem tornar as divisões sociais mais amenas, apenas
exacerbá-las, piorando a situação.
Na França, os excluídos nem sequer chegam a Paris, estão do outro
lado do anel periférico, reforçando a
distância social, como mostra o filme "O Ódio", de Mathieu Kassovitz
[leia texto do cineasta na pág. 7]. No
centro de Paris há muitos espaços
públicos, mas as pessoas dos subúrbios não usam essa estrutura, estão
presas do lado de fora.
Folha - Pode-se relacionar a segregação de que estamos falando com o
que aconteceu após a passagem do
furacão Katrina, em Nova Orleans, em
agosto, que atingiu sobretudo os negros, imigrantes e mais pobres?
Caldeira - Todos os movimentos
negros dos EUA apontam que,
quando chegou a hora de proteger
uma população sobretudo pobre e
negra, o sistema não funcionou.
Folha - Que cidade seria o exemplo
de cidade ideal atualmente?
Caldeira - Não sei se isso existe. A
relação das pessoas com a cidade é
muito complexa. Quando penso sobre cidades, meu modelo é São Paulo, e tenho uma relação afetiva com
essa cidade, apesar de não morar
mais nela. Tem gente que adora morar nos subúrbios norte-americanos, espaço segregado, onde não há
pobres. Acho a vida nesses subúrbios altamente desinteressante. Para
mim, a diversidade é o que faz as cidades interessantes, o que cria a cultura metropolitana.
Folha - E qual a pior cidade, aquela
que já se tornou um barril de pólvora
de exclusão?
Caldeira - É difícil fazer esse tipo de
previsão. Quem diria que esses
"riots" iriam acontecer em Paris?
São Paulo tem muito mais segregação e desigualdade, um cenário perfeito para uma revolta como essa,
mas ela não ocorreu até hoje.
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