São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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EXCLUSÃO CORDIAL

A ANTROPÓLOGA TERESA CALDEIRA, DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, EXPLICA A SEGREGAÇÃO NOS SUBÚRBIOS DE PARIS, LOS ANGELES E SÃO PAULO E DIZ QUE AS CIDADES TOMARAM O LUGAR DAS FÁBRICAS COMO ESPAÇO DE PROTESTO

Vincent Kessler - 8.nov.2005/Reuters
Veículos empilhados após terem sido queimados durante distúrbios na periferia de Estrasburgo (França)


DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

Desde o último dia 27 até a quinta-feira passada, mais de 6.000 veículos foram queimados, pelo menos 2.000 pessoas foram detidas e uma morreu em Paris, capital de um país reconhecido por seu generoso Estado de Bem-Estar Social.
Em reação desesperada, o governo da França ressuscitou uma lei de 1955, que permite a adoção do toque de recolher, e ameaça expulsar os estrangeiros envolvidos nos ataques.
A mistura bombástica de segregação racial, cultural e econômica levou a capital mais glamourosa do Ocidente e outras cidades do interior do país a presenciar cenas de violência e destruição de proporções inéditas, que remetem aos "riots" que devastaram Los Angeles em 1992, em protesto contra o espancamento do motorista negro Rodney King. Mas também evocam a terra sem lei das periferias das grandes cidades brasileiras.
Embora as razões sejam outras, os distúrbios que ocorreram podem apresentar um estopim comum, como a violência policial -que teria sido a razão dos ataques em Paris e o foi em Los Angeles, em 1992, e também no caso dos confrontos recorrentes na periferia de São Paulo.


Em Paris há muitos espaços públicos, mas as pessoas dos subúrbios não os usam, estão presas do lado de fora


É essa a opinião de Teresa Caldeira, professora da Universidade da Califórnia (em Irvine) e uma das principais especialistas brasileiras em violência e segregação urbanas, que concedeu entrevista à Folha, por telefone, de sua casa em La Jolla.
Para ela, a principal diferença entre os conflitos europeus e os que se vêem nas periferias ou favelas de Rio e São Paulo é a própria base de negociação, uma vez que o excluído das favelas sabe que é cidadão e tem direitos, por mais que eles não funcionem, enquanto no "banlieu" parisiense a luta dos imigrantes e seus descendentes é pelo próprio direito de ter direitos.
Autora de "Cidade de Muros" (Edusp/ed. 34), em que investiga as formas da violência na periferia da maior cidade brasileira, Caldeira afirma que os conflitos urbanos hoje tomaram o lugar das antigas lutas trabalhistas ocorridas nas fábricas, e o espaço da cidade passou a ser o foco tanto de organização social e política quanto de revolta. "O que eram a fábrica e as condições de trabalho industrial, que davam o simbolismo para as revoltas, hoje é a cidade e as condições de vida nelas."
 

Folha - Existe a possibilidade de distúrbios similares aos ocorridos na França acontecerem em cidades como São Paulo ou Rio?
Teresa Caldeira -
É difícil responder. Claro que existe, e já de há muito tempo, mas isso ainda não causou nenhum problema generalizado. Sempre houve quebra-quebras em São Paulo, mas são contidos e ocorrem por alguma razão específica, como o transporte coletivo. A violência policial é um forte candidato a ser estopim de revolta urbana e tanto em Los Angeles quanto em Paris, foi ela que fez explodir a revolta.

Folha - Há hoje um aumento de segregação e de tensão social?
Caldeira -
Dados como a falta de perspectiva, as péssimas condições de vida, o desemprego, as poucas possibilidades de mobilidade social, inseridos em cidades de consumo exacerbado, juntamente com a questão racial -como em Paris- que atinge a segunda geração de imigrantes, que quer se integrar, criam a situação explosiva. O estopim é só um episódio isolado, que desencadeia o caos.
Mesmo nos EUA, onde a assimilação de imigrantes é muito mais fácil e todos entram logo no "american way of life", há imensa tensão racial, que foi o principal componente dos "riots" em Los Angeles.

Folha - Os distúrbios na França são um sintoma do aumento da segregação nas grandes cidades?
Caldeira -
Sempre houve segregação, mas o diferencial dos últimos anos é que se modificou o jeito de organizá-la.
Em São Paulo, por exemplo, os Racionais MCs têm um rap que exemplifica bem essa nova organização. Em "Fim de Semana no Parque", eles descrevem um clube de classe média que tem tudo e falam: "Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora", ele apenas sonha através do muro. Essa imagem é fantástica para mostrar o que aconteceu com a cidade. A periferia, que ficava isolada na zona leste, entrou na zona sul, e há novos enclaves de classe média interpostos no caminho para a periferia, exacerbando a visibilidade da desigualdade. Essa proximidade e a exposição da diferença exacerbada aumentam a paranóia e as marcas da desigualdade, tornando muros, fios elétricos, câmeras de vigilância mais ostensivos.
É importante dizer que a democracia também deixou mais evidente essa segregação. A abertura tornou mais difícil fingir e esconder a desigualdade.

Folha - Qual a diferença entre a situação dos excluídos nas grandes cidades brasileiras e a daqueles que incendiaram os carros na França?
Caldeira -
Na França, o problema é com migrantes internacionais, que têm um problema óbvio de cidadania, que não existe nas periferias brasileiras -o que já muda os termos de discussão da desigualdade.
No Brasil, o hip hop busca as origens da desigualdade na escravidão. Na França, ele fala do colonialismo, da definição de o que é ser francês. Na França, enquanto [o presidente Jacques] Chirac fala em nome da República, está excluindo grande parte dos revoltados, que não são cidadãos dessa República e que lutam pelo direito de o serem.

Folha - Mas, no Brasil, os excluídos também não questionam a própria cidadania devido à falta de direitos?
Caldeira -
Sim. A diferença está na base de negociação. Um diz: "Sou um cidadão igual a você, mas me sinto excluído". O outro diz: "Eu quero ser um cidadão igual a você", porque ele não o é. Todos estão brigando por direitos, mas a base de negociação é diferente. O Brasil é mais abrangente em termos de cidadania nacional, o que não significa que a desigualdade seja menor, apenas que os termos da discussão são diferentes. Se não se é cidadão nacional, não se tem o direito nem mesmo de requerer direitos.

Folha - A diminuição da segregação evita ondas de violência?
Caldeira -
Em cidades onde há grande acesso à circulação e ao encontro de diferentes classes sociais, há menos chance de conflitos. Mas, se isso não evita completamente -afinal o conflito é inerente à convivência com a diferença-, ao menos evita confrontos violentos.

Folha - Esse tipo de revolta urbana modifica efetivamente a sociedade?
Caldeira -
Pode ter efeitos. Na história dos direitos civis, nos EUA, havia um componente fundamental de revolta, mas havia uma forte organização social. Eles mudaram a política do país. O que marcou, entretanto, foi a série de grandes "riots" nas metrópoles norte-americanas. Já os "LA riots" dos anos 90 não conseguiram as mesmas mudanças. Eles certamente obtiveram mudanças específicas na polícia, mas nada tão forte quanto o anterior nem mudaram as condições de vida nos guetos.
Na França, já se começou a anunciar medidas de inclusão. O importante agora é saber o efeito social dessas medidas. Eu diria que, enquanto não se mexer na questão da cidadania e da legalização dos imigrantes -no caso da França-, nada irá mudar.

Folha - Casos como os distúrbios na França, a segregação em São Paulo e os protestos violentos como o de Los Angeles, em 1992, põem em xeque a idéia de cidade contemporânea?
Caldeira -
Não. Todas as grandes cidades são muito segregadas e apresentam desigualdade bastante visível -o que é um dado histórico. A novidade, que explica por que estão surgindo tantas revoltas urbanas, é que até recentemente a maioria das revoltas de classe girava em torno do espaço de trabalho, localizava-se nas fábricas, e os grande agentes delas eram os sindicatos. Desde a metade do século 19, na França, as revoltas aconteciam por questões de trabalho.
Com as mudanças recentes causadas pela globalização e pelo neoliberalismo -que alteraram a estrutura produtiva e geraram um desemprego estrutural- bem como a migração nacional e internacional -que cria uma nova população urbana, inserida nos lugares mais precários das metrópoles-, a fábrica deixou de ser o catalisador das revoltas urbanas. As condições urbanas se tornaram uma das principais arenas de expansão e contração da cidadania.
A principal metáfora de elaboração simbólica do hip hop é justamente a cidade.
Todas as grandes cidades têm grandes bolsões de exclusão. Há a periferia de São Paulo, o gueto étnico em Los Angeles e a situação dos imigrantes em grandes cidades européias, como Paris ou Londres. Há a população excluída, que não tem condições de inserção no mercado de trabalho, altos índices de desemprego e falta de condição de inserção na vida da própria cidade; e uma cidade que exacerba as ofertas de consumo e promessas de mobilidade social. O espaço da cidade, onde está visível a exclusão da possibilidade de consumo, acaba sendo o espaço onde as pessoas articulam os protestos.

Folha - Então a segregação está ligada à própria idéia de cidade?
Caldeira -
As cidades são heterogêneas, têm uma mistura de culturas, de tipos de população. A questão é saber até que ponto a diferença se transforma em base para segregação. Sempre haverá segregação, justamente por conta dessas diferenças e porque as sociedades, de forma geral, são desiguais.
O importante é saber como organizar essas diferenças para aumentar ou diminuir essa segregação. A solução das fortificações, dos muros e da demonização das favelas, como acontece em São Paulo, não vai aproximar grupos nem tornar as divisões sociais mais amenas, apenas exacerbá-las, piorando a situação.
Na França, os excluídos nem sequer chegam a Paris, estão do outro lado do anel periférico, reforçando a distância social, como mostra o filme "O Ódio", de Mathieu Kassovitz [leia texto do cineasta na pág. 7]. No centro de Paris há muitos espaços públicos, mas as pessoas dos subúrbios não usam essa estrutura, estão presas do lado de fora.

Folha - Pode-se relacionar a segregação de que estamos falando com o que aconteceu após a passagem do furacão Katrina, em Nova Orleans, em agosto, que atingiu sobretudo os negros, imigrantes e mais pobres?
Caldeira -
Todos os movimentos negros dos EUA apontam que, quando chegou a hora de proteger uma população sobretudo pobre e negra, o sistema não funcionou.

Folha - Que cidade seria o exemplo de cidade ideal atualmente?
Caldeira -
Não sei se isso existe. A relação das pessoas com a cidade é muito complexa. Quando penso sobre cidades, meu modelo é São Paulo, e tenho uma relação afetiva com essa cidade, apesar de não morar mais nela. Tem gente que adora morar nos subúrbios norte-americanos, espaço segregado, onde não há pobres. Acho a vida nesses subúrbios altamente desinteressante. Para mim, a diversidade é o que faz as cidades interessantes, o que cria a cultura metropolitana.

Folha - E qual a pior cidade, aquela que já se tornou um barril de pólvora de exclusão?
Caldeira -
É difícil fazer esse tipo de previsão. Quem diria que esses "riots" iriam acontecer em Paris? São Paulo tem muito mais segregação e desigualdade, um cenário perfeito para uma revolta como essa, mas ela não ocorreu até hoje.


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