São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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+ sociedade

Desconstrutores do inconsciente e do ser, o psicanalista e o filósofo carregam a culpa pelas incertezas da história

Freud e Heidegger no banco dos réus

JEAN-LUC NANCY

Quando os vagalhões da mídia se acalmam, é o momento de colocar as questões sérias. Heidegger e Freud: por que ambos voltam regularmente a ser o objeto de operações de denúncia e de demolição? Que os pensamentos de nossa herança sejam submetidos à releitura, à discussão, à crítica e à transformação, é muito natural. É a vida e o trabalho do espírito, é sua práxis.


Os nervosos só querem reatar com o tempo em que concepções e valores estavam disponíveis


Mas, com Heidegger e Freud, trata-se de outra coisa, como é fácil perceber. Eles não são discutidos, são vilipendiados. Querem nos exorcizar de sua presença perniciosa. O reitorado nazista de um e a extraterritorialidade do outro (nem propriamente médico nem psicólogo nem filósofo) são motivos muito convenientes às execuções sumárias.
De um lado, a infâmia política, de outro, a falta de respeito ao protocolo positivista bastam para instalar um a priori de descrédito. Por conta desse descrédito, e sem maior exame nem reflexão, eles são atacados e perseguidos.
Que há de comum entre Heidegger e Freud que possa explicar a analogia desses ataques compulsivos? Os dois casos são inteiramente diferentes. Estão mesmo nos antípodas um do outro, se nos ativermos ao mais visível, ao mais manifesto de suas figuras respectivas, tanto políticas quanto intelectuais, Mesmo assim, há entre eles um ponto de contato, se não de convergência.

Interrupção de sentido
Esse ponto consiste numa percepção que não se pode dizer comum, mas concomitante, da interrupção das visões ou das significações do mundo. A questão dita "do ser", de um lado, a chamada "do inconsciente", de outro, têm uma espécie de assíntota comum: o "sentido" não é mais disponível nem dado nem construtível ou projetável -nem por decifração nem por codificação do mundo, nem por luta nem por partilha. O "sentido" do homem, da história, da cultura não está mais nem em ato nem em potência.
Quando essa percepção se impôs tanto a Freud como a Heidegger, uma continuidade se interrompeu. Nossa tradição viu se abrir -ou abriu ela própria- um fosso entre ela e seu passado, mesmo o mais recente, assim como entre ela e seu futuro. Por volta da Primeira Guerra Mundial e depois, ocorreu uma deposição geral das representações e das significações.
Criou-se então uma suspensão de sentido ou de mundo tal como a história ocidental não conhecera desde o fim de Roma ou desde a véspera do primeiro mundo grego.
Continuamos ainda nessa suspensão. Para o pior e para o melhor. O melhor é que estamos avisados dos impasses ou das mentiras do "sentido", de toda espécie de realização ou de promessa de sentido. O pior é que nosso mundo se torna capaz de qualquer coisa, na medida em que, para compreender a si mesmo, não conta senão com a equivalência geral -o dinheiro- combinada com as finalidades auto-reprodutivas -a técnica. Em suma, tudo se equivale e nada leva a nada.
Freud e Heidegger tiveram, dessa metamorfose, uma percepção aguda, perturbadora, sem concessão. Eles pensaram o deslocamento: para um, do lugar e da questão do sentido ("o ser"); para outro, de seu emissor-receptor ("o inconsciente").
Nem o "ser" nem o "inconsciente" são objetos novos cuja efetividade caberia verificar. São nomes provisórios, mesmo duvidosos, que foram postos a trabalhar para nos fazer pensar a mutação do mundo.

A mutação em curso
Os limites e os desvios de ambos os pensadores -a tentação da regeneração, para um, a da cientificidade, para o outro, e, para os dois, a de uma eficiência- eram inerentes às condições que lhes impunha a época e que quase todos então compartilhavam, inclusive, é claro, os "revolucionários". Desde então, seus pensamentos engendraram o trabalho de sua própria ultrapassagem, crítica, desconstrução.
Não terminamos de compreender nem a irrupção desses pensamentos nem suas insuficiências e seus riscos, pois a transformação do mundo não está terminada. E não iremos terminá-la -nem nós nem nossos filhos.
Mas também devemos, com mais razão, pensar o seguinte: que uma mutação está em curso e para a qual, por definição, nenhuma forma está dada -nem "natureza" nem "história" nem "homem" nem "Deus" nem "máquina" nem "ser vivo".
Os nervosos bradam contra o niilismo: o que chamam assim comporta, em realidade, o saber e a responsabilidade ante o fato de que nada nos é dado, a não ser abrir os olhos e os ouvidos.

Mais puros e seguros
Na verdade, eles só têm uma preocupação: ignorar nossa condição presente e reatar com o tempo em que concepções, representações e valores estavam disponíveis. Sabendo ou não, comportam-se como se fossem capazes de saber o que Heidegger e Freud infringiram e que nunca deveriam ter infringido.
Certamente teria sido preferível que o pensamento do ser e o do inconsciente se conservassem mais puros e mais seguros, mais decentes e prestativos também. Mas pensar assim equivale a crer que a história podia ter sido outra. Do mesmo modo, alguns franceses do século 19 queriam que o gaulês fosse reconhecido como língua primeira do homem. A inspiração é a mesma: a de uma recusa da história e da verdade.

Jean-Luc Nancy é filósofo francês.
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Paulo Neves.


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