São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 2009

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Cultura com muitas aspas

Em nova obra, Manuela Carneiro da Cunha retoma, na antropologia, o problema filosófico da possibilidade de comunicação

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Manuela Carneiro da Cunha é uma grande antropóloga. O vigor de sua militância em favor dos povos indígenas entremeia seu pensamento com a prática política.
Se não fosse estreito o espaço de que aqui disponho, gostaria de comentar mais a fundo seu novo livro "Cultura com Aspas". Mas, para não ficar alheio ao diálogo que esse livro haverá de provocar, limito-me a tecer algumas considerações a respeito dos problemas sugeridos pelo título.
O conceito de cultura é usado pelos antropólogos com muita cautela.
Depois das devidas ressalvas, Carneiro da Cunha passa a distinguir entre cultura e "cultura", vale dizer, em termos muito imprecisos, um complexo unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos etc. que, sem resistência, influenciam os humanos, e o modo de se falar desse complexo.
No entanto, essa clássica distinção entre uso e menção, demarcada pela diferença entre linguagem e metalinguagem, lhe serve tanto para refletir sobre o caráter reflexionante da cultura como para justificar práticas políticas.
Já que certos conhecimentos de povos tradicionais passaram a ser ditos e objetivados, e assim caem no circuito da exploração capitalista, nada mais justo que esses povos recebam parte dos lucros criados.
Notável é a análise que desenvolve de como muitos desses povos já se reportam a suas respectivas culturas e formas de conhecimentos de tal modo que elas apareçam como algo objetivado, quase sempre participando de um sistema de trocas.
Mais interessante ainda é a descrição de como tais povos vão tecendo um sistema de representação que lhes permita dialogar com o Estado nacional e o sistema internacional.
No entanto, precisamente o êxito de sua análise me leva a desconfiar do reiterado emprego que faz da distinção entre linguagem e metalinguagem, semântica e metassemântica e assim por diante.
Sua reflexão está calcada numa das dificuldades da lógica formal contemporânea. Quando uma linguagem é reflexiva, isto é, permite a fala de si mesma, abrem-se as portas para os paradoxos. O mais famoso já era conhecido pelos antigos.
Quando um cretense diz "todos os cretenses são mentirosos", está ele falando a verdade ou está mentindo?

Ascensão dos paradoxos
Os filósofos antigos, com a exceção dos megáricos, não cuidavam muito dos paradoxos porque, no fundo, para eles a verdade sempre teria mais peso do que a falsidade, de sorte que a luz das ideias e das formas prevaleceria sobre as limitações dos humanos.
Os paradoxos, entretanto, passaram a infernizar a lógica depois que ela se tornou matemática.
Mas, para isso, a proposição declarativa precisou ser definida como uma função cujos argumentos lhe dariam um dos dois valores de verdade, o verdadeiro e o falso, ambos colocados no mesmo plano formal. Se a cada função corresponde um conjunto, é possível traduzir o paradoxo do mentiroso na nova teoria: existe o conjunto de todos os conjuntos que não se incluem a si mesmos?
Depois que Bertrand Russell [1872-1970] descobriu esse furo no sistema lógico de Gottlob Frege [1848-1925], os matemáticos têm arrancado seus cabelos para tentar resolver ou pelo menos limitar os efeitos perversos do paradoxo.
Até que, na década de 1930, Kurt Gödel veio demonstrar que um sistema lógico ou é completo, isto é, tudo pode dizer com seus recursos elementares -mas então incorre em paradoxos-, ou é incompleto -deixa de poder dizer coisas para manter sua coerência. E os sistemas completos formais são em geral muito pobres.
Manuela opta pela completude: "Mas só lógicos e advogados exigem coerência. A escolha do senso comum privilegia a completude, e é por isso que nós, antropólogos, que lidamos com o senso comum, estamos mais interessados em linguagens completas. Assim como quase todo o mundo, incluindo-se os índios do Brasil".
"É por isso que é em plena consciência, e em concordância com uma convenção clássica, que opto por colocar "cultura" entre aspas quando me refiro àquilo que é dito acerca da cultura" (pág. 358).

Imagens do mundo
Mas a completude da linguagem do senso comum possui o mesmo sentido da completude de uma linguagem formal?
Dois filósofos o negam peremptoriamente: Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein, por razões opostas, mas não desencontradas.
Em seus últimos escritos, Wittgenstein compreende que a clássica questão do logos não se esgotava na calculabilidade matemática. A lógica proposicional opera com variáveis -"p", "q" etc.- determinadas por seus dois valores de verdade. Ora, "p" é sinal de uma proposição e não é por isso que explora todas as dimensões de um enunciado declarativo e do juízo correspondente.
Tomemos um jogo de linguagem não verbal para radicalizar a questão.
Numa encruzilhada, uma flecha indica as direções opostas "Rio" e "São Paulo". Já que os comportamentos passam a ser medidos como adequados ou inadequados em relação à intenção dos viajantes, esse complexo forma um jogo de linguagem. Nele, a flecha é tanto um objeto como padrão de medida, vale dizer, "flecha".
Não é de forma semelhante que se integram os elementos de uma cultura? Não se aglutinam num conjunto, mas tecem um mundo e uma imagem de mundo.
Não é à toa que os filósofos, depois da crise da fenomenologia e da crise da filosofia analítica, recorrem ao conceito de "mundo da vida".
E, se estamos no mundo, como quer Heidegger, ou falamos de tal modo que uma imagem do mundo se projeta a partir de nossa fala, como quer Wittgenstein, o ser si mesmo ou ser outro dependem de um jogo em que o eu, o tu e o ele falam e/ou são falados.
Os seres humanos estão no mundo e falam tendo um mundo no horizonte, por mais que tais mundos possam ser diferentes. É possível compreender a complexidade da cultura sem esse jogo da diferença e da identidade objetivante?

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! . jagiannotti@uol.com.br


CULTURA COM ASPAS

Autora: Manuela Carneiro da Cunha
Editora: Cosac Naify (tel. 0/ xx/ 11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 69 (440 págs.)


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