São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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Rumos do darwinismo opõe Stephen Jay Gould e Richard Dawkins, o autor da tese do gene egoísta, que lança novo livro
A polêmica interna

Reprodução
O naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), autor do livro "A Origem das Espécies" e formulador da teoria da evolução


MARCELO LEITE
especial para a Folha

Exatos 139 anos depois da publicação de "On the Origin of Species" ("A Origem das Espécies", como ficou conhecido o livro em português), o darwinismo sobrevive também como polêmica, e das bravas. Não mais com adversários da seleção natural, hoje verdadeiros fósseis vivos no ambiente da racionalidade, mas entre seus adeptos. Com seu novo livro, lançado em novembro, o cientista britânico Richard Dawkins põe mais lenha na fogueira do último grande debate intelectual do século.
"Unweaving the Rainbow" (Desemaranhando o Arco-Íris) tem um capítulo inteiro contra a Nêmesis de Dawkins no firmamento da teoria da evolução, o norte-americano Stephen Jay Gould. Não é simples descrever o que os opõe. Os campos poderiam ser identificados como ultradarwinista, gradualista ou adaptacionista, de um lado (o de Dawkins), e como contingencialista, catastrofista ou antideterminista, de outro (o de Gould).
Seriam apenas rótulos, com pequena capacidade de explicação. Ocorre que essa é também uma disputa que em muitos momentos e aspectos se resume mesmo a palavras. Ou às metáforas aplicadas à ciência e sua divulgação, tema central do livro de Dawkins -cujo título remete para um verso do romântico John Keats (1795-1821), para quem Isaac Newton (1642- 1727) teria destruído a poesia do arco-íris reduzindo-o às cores prismáticas.
Não se pode esquecer que Dawkins e Gould são também dois escritores em disputa pelo título e pelo mercado de mais conhecido ensaísta-divulgador da teoria da evolução. Em matéria de popularidade, aliás, Gould foi recentemente eleito para presidir em 2001 a poderosa Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS).

Metáforas e metáforas
Do relojoeiro cego ao polegar do panda, Dawkins e Gould sempre estiveram às voltas com metáforas elaboradas para tornar compreensível a solução do principal paradoxo da teoria da evolução darwiniana. Nas palavras do próprio Gould, resenhando o livro anterior de Dawkins ("A Escalada do Monte Improvável") para a revista "Evolution": "Como pode um processo sem intencionalidade, e operando somente com a matéria-prima da variação aleatória em um sistema de causalidade que carece de um princípio direcional superior, vir a produzir algo tão complexo (e tão belamente funcional) quanto um olho?".
Ambos concordam em que metáforas são imprescindíveis para guiar a mente, em meio ao emaranhado de crenças e idéias feitas sobre a questão, e tornar aceitável algo tão implausível. Nenhuma mutação genética seria capaz de fazer surgir um olho completo, de uma geração para outra. Uma fração de olho, por outro lado, em nada contribui para tornar o organismo mais apto a deixar a prole mais numerosa. O acordo entre os cientistas-escritores, contudo, termina na identificação do problema.
Dawkins ganhou fama em 1976 com o lançamento de uma idéia polêmica num livro idem, "O Gene Egoísta". Simplificadamente, ele defendia que a unidade básica submetida à seleção natural darwiniana eram os próprios genes, não os organismos, indivíduos ou espécies. Seriam absolutamente autocentrados, "interessados" só na própria replicação. Como escreveu Dawkins:
"O DNA de um elefante ou de um vírus são programas do tipo "copie-me'. A diferença é que um deles faz uma digressão quase fantasticamente extensa, "copie-me criando um elefante primeiro'."

Egoísta "ma non troppo"
Eis aí uma metáfora no mínimo difícil de engolir. Na ótica de Dawkins, ela serve para fornecer uma força interna capaz de pôr a evolução em andamento. Em "Unweaving the Rainbow", o escritor reage mais uma vez a duas décadas de críticas a ela, no capítulo sintomaticamente intitulado "O Colaborador Egoísta". Em poucas palavras, defende a idéia agregando-lhe que cada gene tem de ser bom em se reproduzir juntamente com uma comunidade, o genoma, ou "pool" de genes da espécie.
Como só existem genes dentro de genomas, a sobrevivência dos primeiros depende da manutenção dos outros. "Sobreviver", no caso, quer dizer disseminar-se, tornar-se o mais frequente numa população. Para tanto, esses genes teriam de trabalhar em equipe com outros genes, num mecanismo de co-adaptação: de pouco adiantaria a um animal desenvolver intestinos adaptados para digerir a celulose do capim se não dispusesse de dentes capazes de cortá-lo e macerá-lo.
Para Gould, não menos maravilhado com a ourivesaria biológica desenvolvida pela seleção natural ao longo do tempo geológico (bilhões de anos), as espécies são resultado de um processo muito mais caótico e sujeito a solavancos do que no quadro pintado por Dawkins. O autor americano põe ênfase em contingências como o choque de asteróides e cometas contra a Terra, que condenam algumas espécies à extinção e abrem avenidas evolutivas para outras, sem qualquer relação com seu "mérito", ou seja, as vantagens adaptativas até então acumuladas.
As estruturas resultantes seriam assim o produto de sucessivas "cooptações" de outras para novas funções, num caminho tortuoso em que a própria noção de finalidade ou tendência se perde, mesmo na versão atenuada de Dawkins. A nadadeira do pinguim, que já foi asa, que já foi pata, e assim para trás.

Psicologia evolutiva
Gould pode ser popular entre consumidores de livros de ciência e eleitores da AAAS, mas não parece fazer o mesmo sucesso entre cientistas na linha de frente da pesquisa darwinista. Essa é cada vez mais dominada por discípulos diretos ou não de Dawkins e de Edward O. Wilson, outro célebre oponente de Gould e seu colega na Universidade Harvard.
Wilson e seu livro "Sociobiologia" foram fustigados no final da década de 70 por Gould e Richard Lewontin, outro harvardiano a quem ainda hoje cairia bem a qualificação "de esquerda". A polêmica, amarga, foi travada nas páginas do jornal "New York Review of Books".
Wilson, hoje mais conhecido como paladino da idéia de biodiversidade, publicou este ano um livro que retoma a maior parte das idéias da sociobiologia, ainda que sofisticando-as. É "Consiliência", que acaba de ser lançado no Brasil (Editora Campus) e nos EUA chegou a frequentar a lista de best sellers do jornal "The New York Times" (o mesmo sucesso está obtendo "Unweaving the Rainbow" no Reino Unido).
Maior repercussão ainda teve a obra da última estrela gerada pelo campo sociobiológico, ou adaptacionista: Steven Pinker, com seu "How the Mind Works" (W.W. Norton, 1997). É mais uma obra de divulgação darwinista que leva ao grande público uma coqueluche universitária dos EUA conhecida como psicologia evolutiva: a explicação do funcionamento do cérebro do homem com base na seleção natural. Qualquer capacidade cognitiva ou comportamento humano -do uso da linguagem ao enjôo na gravidez- é reduzido à vantagem adaptativa que teria conferido há centenas de milhares de anos aos ancestrais da espécie.
A matriz da idéia de Pinker está na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. Lá trabalham seus mestres Leda Cosmides e John Tooby, que, em conjunto com o canadense Jerome Barkow, organizaram o volume "The Adapted Mind" (A Mente Adaptada; Oxford University Press, 1992), bíblia e precursor acadêmico da popularização feita por Pinker.
Os três foram arrastados por Stephen Jay Gould a uma nova e virulenta polêmica, mais uma vez nas páginas do "NYRB". Além de levantar para o caso do cérebro e suas faculdades as mesmas objeções de cunho evolutivo, Gould retoma um mote da "guerra da sociobiologia": as implicações éticas e políticas do reducionismo genético-darwiniano aplicado ao comportamento humano, por exemplo a naturalização da desigualdade entre os sexos.

Palavras contundentes
Os principais textos do debate podem ser lidos numa minuciosa página da Internet dedicada a Richard Dawkins (http:// www.spacelab.net/ēcatalj/). Estão reunidos sob a rubrica "The G-Files" (Arquivos "G", de Gould).
Uma das citações preferidas pela confraria anti-Gould vem de John Maynard Smith, um dos papas da biologia moderna, que assim o descreveu nas páginas do "NYRB" em novembro de 1995:
"Por causa da excelência de seus ensaios, tornou-se conhecido entre não-biólogos como o mais destacado teórico da evolução. Em contraste, os biólogos evolucionistas com quem discuti seu trabalho tendem a vê-lo como um homem cujas idéias são tão confusas que quase não vale a pena ocupar-se delas, mas alguém que não se deve criticar em público por ao menos estar do nosso lado contra os criacionistas" (que recusam o darwinismo por razões religiosas).
Como seria de esperar, Dawkins não resistiu à tentação de reciclar o juízo devastador contra seu adversário na disputa pela posição alfa na constelação darwiniana (confira na pág. 207 de "Unweaving the Rainbow"). O ataque a Gould é com efeito o centro de gravidade de seu livro, mas este está longe de se resumir a isso.
Dawkins, como Gould, é um bom escritor. Usa metáforas com habilidade e delas obtém efeitos perturbadores, instigantes, como sua fantástica teoria de que idéias -ou "memes"- também evoluem por seleção natural. Para não deixar a impressão de que seu recém-lançado livro se esgota num bate-boca, eis uma amostra de sua prosa inspirada (ao considerar a hipótese de que a capacidade de lançar projéteis, pela infinidade de cálculos balísticos envolvidos, esteja na origem do que hoje se considera propriamente humano):
"Poderia o arremesso ter sido o precursor da presciência? Quando lançamos nossa mente adiante na imaginação, estaríamos fazendo algo quase literal, tanto quanto metafórico? Quando a primeira palavra foi lançada, em algum lugar da África, o falante teria se imaginado arremessando um projétil de sua boca para o ouvinte?"
Gould que o diga.


A OBRA Unweaving the Rainbow - Science, Delusion and the Appetite for Wonder - Richard Dawkins. Houghton Mifflin, 352 págs., US$ 26.
O livro pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) ou, pela Internet, na Amazon Books (http://www.amazon.com).



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