São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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Batalha no esperma

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Os testes genéticos de paternidade não estão criando embaraços apenas para seres humanos. Ao utilizar essas técnicas para estudar o comportamento animal, os cientistas estão descobrindo que a infidelidade conjugal é bem mais disseminada que o pensado até agora e que a monogamia é um comportamento extremamente raro.
Essas descobertas somam-se a uma dúvida básica -os pesquisadores ainda debatem o motivo de o sexo ser tão comum na natureza, quando a reprodução assexuada pareceria ser mais simples e vantajosa. Por que um ser tem de procurar outro e convencê-lo de alguma forma a praticar um ato sexual, quando seria mais fácil simplesmente se dividir em dois?
"A maior parte dos organismos superiores se reproduz sexualmente, apesar da vantagem reprodutiva automática experimentada pelas variantes assexuadas. Isso implica a operação de forças seletivas que conferem uma vantagem à sexualidade e à recombinação genética, seja no nível de população, seja no de indivíduo", escreveram Nicholas Barton e B. Charlesworth, da Universidade de Edimburgo, Escócia, na revista "Science".
E, ainda mais, a cada dia se descobre uma forma nova de "fazer amor" -comportamentos inéditos com o mesmo objetivo, de passar o material genético para as gerações futuras.
O caso da monogamia é um bom exemplo. Estima-se que apenas cerca de 3% a 10% das espécies de mamíferos pratiquem a monogamia. Mas, mesmo entre esse grupo, nem sempre há fidelidade.
O biólogo Stephen Emlen, da Universidade Cornell, de Nova York, afirmou, na "Science", que é preciso distinguir entre a monogamia social e a monogamia genética ou sexual.
Isto é, o casal pode continuar vivendo junto, monogamicamente, mas, de vez em quando, algum deles pode dar uma escapadela e fazer sexo com outro.
Os resultados mais surpreendentes dessa nova safra de estudos de paternidade no mundo animal estão entre os pássaros, que se achava serem modelos de fidelidade. Apenas perto de 10% de cerca de 180 espécies de aves socialmente monógamas revelaram ser também geneticamente monógamas.
E a infidelidade vale tanto para machos quanto para fêmeas. De modo geral, a monogamia é associada à necessidade de cuidar dos filhotes. Ela seria mais comum nas espécies em que seria difícil a apenas um parceiro cuidar da prole.
Ironicamente, a infidelidade animal pode ter origem no mesmo motivo que fez surgir o sexo em primeiro lugar. A grande vantagem seria a possibilidade de mesclar genes, variando o patrimônio genético e com isso aumentando a capacidade de uma espécie resistir às mudanças do meio ambiente.
Isso poderia ocorrer seja criando indivíduos melhor adaptados, seja eliminando as mutações genéticas nocivas.
Uma das surpresas foi descobrir essa busca da variação até entre animais onde o sexo é monopolizado por uma minoria, como entre os insetos sociais (formigas e abelhas), entre os quais o sexo fica basicamente por conta da rainha e de alguns machos especializados.
Entre os mamíferos existe um animal com comportamento parecido, o rato-toupeira pelado da África (Heterocephalus glaber).
Pesquisadores da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, descobriram que colônias de ratos-toupeiras às vezes produzem alguns machos "ricardões", cuja função é fugir da colônia original e procurar se reproduzir com fêmeas de outras colônias, aumentando a variabilidade de genes.
No começo deste ano, também na "Science", pesquisadores da Universidade Emory, de Atlanta, mostraram como dois hormônios que agem no cérebro eram responsáveis pelo comportamento monogâmico de uma espécie de roedor das pradarias americanas, o Microtus ochrogaster.
Outros roedores biologicamente parecidos, da espécie Microtus montanus, não praticam o acasalamento em pares. Os machos não cuidam dos filhotes e as fêmeas os abandonam duas ou três semanas depois do parto.
Alguns resultados de pesquisa indicam diferenças da ação dos hormônios nos cérebros desses dois roedores. Mas ainda falta uma explicação mais detalhada, em termos de adaptação ao ambiente, para essas diferenças de comportamento existirem.
Se a infidelidade é comum -e o motivo é diversificar os genes, de preferência optando por um parceiro (ou parceira) melhor dotado-, uma das questões básicas é descobrir como os animais associam as características do novo parceiro a uma suposta melhor qualidade genética.
Ou seja: por que um pavão com cauda mais vistosa seria um parceiro sexualmente mais atraente? E por que a fêmea o preferiria?
Segundo Michael J. Ryan, da Universidade do Texas, os traços ligados à "seleção sexual" podem surgir de outros fatores não relacionados a uma maior aptidão genética (a capacidade do macho de ter mais filhotes etc.).
Isto é, haveria nas fêmeas uma tendência inata, preexistente, a achar determinados traços do macho atraentes, por influência do modo como os sentidos percebem o parceiro. Isso porque os órgãos do sentido -como visão, olfato etc.- também foram selecionados para outros fins, como procurar comida e fugir de predadores.
Um exemplo seria a tendência humana de preferir um rosto simétrico a um assimétrico. A explicação usual diz que a assimetria indicaria um problema genético. Mas pode ser, argumenta Ryan, na "Science", que o ser humano perceba padrões simétricos com mais rapidez. Do mesmo modo, lembra ele, há estudos que mostram que o homem prefere música harmônica porque o ouvido interno estaria estruturado para isso.



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