São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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A antropologização da literatura

Leia entrevista com Martin Lienhard, professor de literatura brasileira em Zurique

ROBERTO VENTURA
especial para a Folha

Martin Lienhard é um híbrido transcultural. Transita pelo mundo das universidades suíço-alemãs e das culturas africanas e latino-americanas como algumas pessoas vão de um bairro a outro da mesma cidade.
Professor de literatura brasileira e hispano-americana na Universidade de Zurique, na Suíça, recebeu em 1989 o prestigioso Prêmio Casa de las Américas com o livro "La Voz y Su Huella" (A Voz e Sua Pegada), sobre a voz e a escrita na América Latina, que sai agora em inglês pela Texas University Press.
Veio ao Brasil, em setembro, como professor visitante no departamento de teoria literária e literatura comparada da USP. Lançou, em Salvador, um novo livro sobre as histórias da escravidão no Congo, Angola, Brasil e Caribe, "O Mar e o Mato", publicado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia.

Folha - Por que o seu interesse pelas coisas do Brasil e da África?
Lienhard -
Já tinha levantado, em "La Voz y Su Huella", as vozes indígenas na escrita hispano-americana, abordando testemunhos e narrativas mitológicas dos índios da América Central e dos países andinos. Enfoquei a atividade discursiva e literária da população que foi marginalizada pela conquista e segue marginalizada.
Parti, em "O Mar e o Mato", de duas revoltas de escravos, uma no Brasil, outra em Porto Rico. Tratei da insurreição de Manuel Congo em 1837 no Vale do Paraíba, na região de Paty do Alferes e de Vassouras, no Rio. E um caso em Porto Rico quase na mesma época, que foi o plano de fuga de um grupo de escravos, que pretendiam ir não para o interior do país, mas para uma outra ilha, Santo Domingo ou Haiti, onde a escravidão já tinha sido abolida.
Os escravos brasileiros queriam construir um quilombo ou se juntar a um quilombo já existente. Participaram da revolta escravos bantos, da área do Congo, de Angola e de Moçambique, que seguiam um padrão que já conheciam da África, a criação de um quilombo. Foi um projeto de certa forma conservador, pois ficou preso a uma lógica trazida da África. Para mudar radicalmente a sua situação, precisariam ter organizado todos os escravos com a criação de uma confederação político-militar, capaz de atacar o poder estabelecido. Mas isso não se deu.
Folha - Qual o lugar da antropologia e das culturas excluídas na literatura latino-americana?
Lienhard -
Há, na literatura da América Latina, uma relação muito forte com a antropologia, porque houve nas colônias, desde a conquista e a colonização, um poder metropolitano representado por funcionários civis e eclesiásticos que governavam uma população formada pelos imigrantes de origem européia, pelos índios que eram o grupo majoritário e pelos africanos com seus descendentes. Os escritores latino-americanos se viram frente ao problema de saber como era possível a coexistência de grupos tão diferentes. A antropologização da literatura foi assim uma constante na América Latina.
Esse aspecto antropológico passou a aparecer nos textos literários desse século de forma mais proposital. Houve, nos anos 20 e 30, em quase toda a América Latina, um auge dos diferentes nacionalismos, que buscavam construir uma identidade cultural distinta. Um país latino-americano podia apresentar uma identidade própria a partir da heterogeneidade de sua população ou de uma miscigenação muito particular, tanto biológica quanto cultural e religiosa.
Mas autores como Alejo Carpentier, em Cuba, José María Arguedas, no Peru, Juan Rulfo, no México, e Guimarães Rosa, no Brasil, propõem uma abordagem muito diferente. São escritores que já não produzem romances como discurso ideológico a favor da miscigenação, mas que procuram incorporar, em níveis muito profundos do texto, essa heterogeneidade cultural, sobretudo elementos das chamadas culturas populares, indígenas, negras e mestiças.
Folha - Como você vê a cultura popular no Brasil hoje?
Lienhard -
O termo cultura popular é empregado no Brasil com pelo menos três significados. Um é o sentido tradicional de cultura popular como sendo criada pelos setores populares ou subalternos. Cultura popular também aparece no Brasil como uma cópia do inglês "popular culture", embora seja melhor falar em cultura de massa para englobar o universo da televisão, interativa ou não. Uma terceira definição implícita é aquela que aparece na música, designada pelas iniciais MPB. Ela não é em geral criada por setores populares e aparece ao público como cultura de massa. Mas não há fronteiras nítidas entre esses tipos de cultura.
Acho importante distinguir a cultura destinada às massas daquela produzida por grupos populares. Fala-se sempre no caráter popular da telenovela no Brasil, o que tem um elemento de verdade, mas também um aspecto enganoso. A telenovela não é produzida pelos setores populares, embora seja recebida por esses setores. É um discurso fabricado pelos grupos hegemônicos, que empregam elementos da narrativa ou da vida popular, embora a maioria das telenovelas tenha como cenário casas de pessoas de classe superior.
O exemplo oposto seria o candomblé, sobretudo em Salvador, na Bahia, que é uma cultura popular relativamente tradicional. Trata-se de uma comunidade religiosa e social, que procura recriar uma cultura antiga trazida pelos escravos da África, mas que também passa por mudanças constantes. Falou-se da reafricanização do candomblé da Bahia. Mas, com certeza, o candomblé atual não é igual ao do início do século.
Folha - E também reafricanização da música com grupos como o Olodum e o Ilê Aiyê...
Lienhard -
No caso do Olodum, a cultura popular tradicional consegue pular para um outro nível e se insere no mundo comercial da cultura de massa. O Ilê Aiyê é o grupo mais consciente dos perigos de comercialização dessa nova cultura popular de massa. Eles participam do Carnaval na Bahia e vendem discos e abadás. Não recusam o mercado, mas mantêm os laços com as culturas tradicionais.


Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras).



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