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A antropologização da literatura
Leia entrevista com Martin Lienhard, professor de literatura brasileira em Zurique
ROBERTO VENTURA
especial para a Folha
Martin Lienhard é um híbrido
transcultural. Transita pelo mundo das universidades suíço-alemãs
e das culturas africanas e latino-americanas como algumas pessoas
vão de um bairro a outro da mesma cidade.
Professor de literatura brasileira
e hispano-americana na Universidade de Zurique, na Suíça, recebeu em 1989 o prestigioso Prêmio
Casa de las Américas com o livro
"La Voz y Su Huella" (A Voz e
Sua Pegada), sobre a voz e a escrita
na América Latina, que sai agora
em inglês pela Texas University
Press.
Veio ao Brasil, em setembro, como professor visitante no departamento de teoria literária e literatura comparada da USP. Lançou, em
Salvador, um novo livro sobre as
histórias da escravidão no Congo,
Angola, Brasil e Caribe, "O Mar e
o Mato", publicado pelo Centro
de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia.
Folha - Por que o seu interesse
pelas coisas do Brasil e da África?
Lienhard - Já tinha levantado,
em "La Voz y Su Huella", as vozes indígenas na escrita hispano-americana, abordando testemunhos e narrativas mitológicas dos
índios da América Central e dos
países andinos. Enfoquei a atividade discursiva e literária da população que foi marginalizada pela
conquista e segue marginalizada.
Parti, em "O Mar e o Mato", de
duas revoltas de escravos, uma no
Brasil, outra em Porto Rico. Tratei
da insurreição de Manuel Congo
em 1837 no Vale do Paraíba, na região de Paty do Alferes e de Vassouras, no Rio. E um caso em Porto Rico quase na mesma época,
que foi o plano de fuga de um grupo de escravos, que pretendiam ir
não para o interior do país, mas
para uma outra ilha, Santo Domingo ou Haiti, onde a escravidão
já tinha sido abolida.
Os escravos brasileiros queriam
construir um quilombo ou se juntar a um quilombo já existente.
Participaram da revolta escravos
bantos, da área do Congo, de Angola e de Moçambique, que seguiam um padrão que já conheciam da África, a criação de um
quilombo. Foi um projeto de certa
forma conservador, pois ficou
preso a uma lógica trazida da África. Para mudar radicalmente a sua
situação, precisariam ter organizado todos os escravos com a criação de uma confederação político-militar, capaz de atacar o poder
estabelecido. Mas isso não se deu.
Folha - Qual o lugar da antropologia e das culturas excluídas na literatura latino-americana?
Lienhard - Há, na literatura da
América Latina, uma relação muito forte com a antropologia, porque houve nas colônias, desde a
conquista e a colonização, um poder metropolitano representado
por funcionários civis e eclesiásticos que governavam uma população formada pelos imigrantes de
origem européia, pelos índios que
eram o grupo majoritário e pelos
africanos com seus descendentes.
Os escritores latino-americanos se
viram frente ao problema de saber
como era possível a coexistência
de grupos tão diferentes. A antropologização da literatura foi assim
uma constante na América Latina.
Esse aspecto antropológico passou a aparecer nos textos literários
desse século de forma mais proposital. Houve, nos anos 20 e 30, em
quase toda a América Latina, um
auge dos diferentes nacionalismos, que buscavam construir uma
identidade cultural distinta. Um
país latino-americano podia apresentar uma identidade própria a
partir da heterogeneidade de sua
população ou de uma miscigenação muito particular, tanto biológica quanto cultural e religiosa.
Mas autores como Alejo Carpentier, em Cuba, José María Arguedas, no Peru, Juan Rulfo, no México, e Guimarães Rosa, no Brasil,
propõem uma abordagem muito
diferente. São escritores que já não
produzem romances como discurso ideológico a favor da miscigenação, mas que procuram incorporar, em níveis muito profundos
do texto, essa heterogeneidade
cultural, sobretudo elementos das
chamadas culturas populares, indígenas, negras e mestiças.
Folha - Como você vê a cultura
popular no Brasil hoje?
Lienhard - O termo cultura popular é empregado no Brasil com
pelo menos três significados. Um é
o sentido tradicional de cultura
popular como sendo criada pelos
setores populares ou subalternos.
Cultura popular também aparece
no Brasil como uma cópia do inglês "popular culture", embora
seja melhor falar em cultura de
massa para englobar o universo da
televisão, interativa ou não. Uma
terceira definição implícita é aquela que aparece na música, designada pelas iniciais MPB. Ela não é em
geral criada por setores populares
e aparece ao público como cultura
de massa. Mas não há fronteiras
nítidas entre esses tipos de cultura.
Acho importante distinguir a
cultura destinada às massas daquela produzida por grupos populares. Fala-se sempre no caráter
popular da telenovela no Brasil, o
que tem um elemento de verdade,
mas também um aspecto enganoso. A telenovela não é produzida
pelos setores populares, embora
seja recebida por esses setores. É
um discurso fabricado pelos grupos hegemônicos, que empregam
elementos da narrativa ou da vida
popular, embora a maioria das telenovelas tenha como cenário casas de pessoas de classe superior.
O exemplo oposto seria o candomblé, sobretudo em Salvador,
na Bahia, que é uma cultura popular relativamente tradicional. Trata-se de uma comunidade religiosa
e social, que procura recriar uma
cultura antiga trazida pelos escravos da África, mas que também
passa por mudanças constantes.
Falou-se da reafricanização do
candomblé da Bahia. Mas, com
certeza, o candomblé atual não é
igual ao do início do século.
Folha - E também reafricanização
da música com grupos como o Olodum e o Ilê Aiyê...
Lienhard - No caso do Olodum,
a cultura popular tradicional consegue pular para um outro nível e
se insere no mundo comercial da
cultura de massa. O Ilê Aiyê é o
grupo mais consciente dos perigos
de comercialização dessa nova
cultura popular de massa. Eles
participam do Carnaval na Bahia e
vendem discos e abadás. Não recusam o mercado, mas mantêm os
laços com as culturas tradicionais.
Roberto Ventura é professor de teoria literária
e literatura comparada na USP e autor de "Estilo
Tropical" (Companhia das Letras).
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