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ÁFRICA E AMÉRICA
Um dos principais africanistas da atualidade, François Martin, participa da exposição "Brasil 500 Anos" em São Paulo, no ano 2000
Enigma do objeto
NELSON AGUILAR
especial para a Folha
O prior do mosteiro de
Saint-André de Clerlande (Bélgica), dom François Martin, 59, um
dos mais prestigiados africanistas,
participa do módulo afro-brasileiro da exposição "Brasil 500 Anos
Artes Visuais" (a ser realizada na
Fundação Bienal de São Paulo em
2000), juntamente com Catherine
Vanderhaeghe, sua assistente, e
Kabengele Munanga e Lisy Sallum, ambos da USP.
Professor no Instituto Superior
de Arqueologia e História da Arte
em Louvain-a-Nova, escreveu, entre outros, "Artes Tradicionais e
História do Zaire" (1980) e "Luba
nas Fontes do Zaire" (1993). Como monge, preside a Aliança Intermonasterial, organismo oficial
que cobre as ordens monásticas
procedentes de São Bento (beneditinos, bernardinos, cistercienses
e trapistas). Na última semana,
quando esteve em São Paulo para
discutir seu projeto na Bienal, deu
a seguinte entrevista à Folha.
Folha - Como o sr. justifica a
idéia de selecionar três áreas culturais africanas para dar conta da
arte afro-brasileira na exposição?
François Martin - A região que
se impõe, a mais conhecida e em
constante diálogo com o Brasil, é o
golfo de Benin, com os iorubas, a
Nigéria, Daomé e os fon, Togo. É a
região que teve influência muito
forte. Na Bahia, Roger Bastide e
Pierre Verger colocaram em evidência todos os cultos. Por meio
do candomblé, reconhece-se a importância da região ioruba. Mas no
Brasil há outro aspecto que é mais
oculto, porque mais antigo, que é a
influência da África central, do
Congo e de Angola. E aí é preciso
levar em conta não somente os reinos à beira-mar, como o Bakongo,
mas também o interior do Congo e
de Angola.
Creio que é interessante ir mais
longe e examinar as raízes ou uma
parte das raízes das culturas africanas no Brasil que encontram o
fundamento na África central. Para tomar um exemplo bem flagrante, nos estudos musicais,
vê-se que a palavra "samba" ocupa um lugar muito importante no
Brasil e que o samba brasileiro
acha sua origem num conceito que
vem do Congo. Há estudos de Kazadi e de outros que comprovam o
fato. É interessante valorizar não
somente o golfo de Benin, mas outras dimensões que, além do candomblé, repercutem na vida das
pessoas, na música, na língua, no
vocabulário, na tradição, e não estão bem estudadas, ou melhor,
ainda não foram estudadas e dizem respeito à África central.
O essencial quando se fala em arte africana é o percurso iniciático.
Não se chega a tocar nos objetos
africanos. Há presenças com significações diferentes e com diferentes níveis de profundidade se você
pertence à tradição e entra na significação dos objetos. Hampate
Ba, um dos sábios da África ocidental, dizia que as pessoas se extasiam diante do tecido, mas não
vêem o que está no interior do tecido. Diante dos objetos, permanece-se na forma, na exterioridade,
sem compreender a significação e
o valor profundo. O mais profundo é um enigma. É necessário deixar essa abertura e esse lado enigmático dos objetos. Quem quer tudo explicar esquece a sabedoria e a
profundidade da cultura africana.
Folha - O sr. tem grande experiência de campo e é capaz de perceber essas implicações. Elas estão
presentes em obras de especialistas que dedicam capítulos à arquitetura, para significar que a arte
africana não se resume ao que é
portátil, ao que se conhece de museus. Qual é exatamente sua experiência de campo?
Martin - Nasci na África. Passei
20 anos lá, toda minha infância na
região de Katanga. Fiz pesquisas
sobre os hembas e os lubas em todo o sudeste do Zaire. Depois voltei como professor na Universidade do Zaire e trabalhei com o Instituto do Museu Nacional. Em seguida, voltei à Bélgica para ser professor na Universidade Católica de
Louvain, mas fazia regularmente
viagens ao Zaire para pesquisas,
não somente sobre os hembas, os
lubas, mas sobre o conjunto do
país, ao qual dediquei uma obra.
Folha - Além do mais, o sr. é
monge...
Martin - Sim, com grande respeito pelas culturas e tradições que
vêm da África. Minha formação é
greco-latina, de filólogo clássico,
fiz doutorado em Louvain sobre
textos gregos, com a história da arte como complemento. Sempre
me espantava quando, de volta à
África, perguntavam-me se a arte
africana me interessava. Como se
pode interessar por essas populações sem conhecer ou sem entrar
em suas culturas? Sempre me espantou como muitos religiosos
missionários ignoram completamente a cultura do país onde estão.
Estive em Ife, a cidade santa dos
iorubas, e o missionário que me
recebeu disse: "O que veio fazer
aqui?". Respondi que fora ver os
objetos do museu de Ife. "Nunca
os vimos", mencionou meu interlocutor. Tive a mesma experiência
na África central, quando trabalhei sobre os ancestrais hembas.
Folha - Em contrapartida, os sacerdotes iorubas consideram a arte do ponto de vista da totalidade,
sem enfatizar a importância de um
objeto.
Martin - Isso se liga ao que
acontece com a arte contemporânea. O objeto deve ser situado em
todas as dimensões da vida. A imagem reenvia à fala, ao ensino, à
formação, ao cosmos, e o cosmos
só se exprime por intermédio de
máscaras, de estátuas que têm provérbios, que têm textos precisos.
Há sempre uma correlação imagem/fala na África, o objeto não é
só visto por si próprio, mas é um
ensino, um culto, uma formação,
uma relação com o espaço -algo
bastante universal.
Folha - O curador William Rubin
afirma que o sr. é um dos raros
missionários a saberem preservar
uma cultura e não destruí-la por
catequese, por conversão. Como o
sr. considera essa observação?
Martin - Você leu muito bem o
catálogo sobre a exposição do primitivismo no século 20, ocorrida
no Museu de Arte Moderna de Nova York (1984), porque essa observação está em uma nota de pé de
página. Mas acho um estereótipo.
François Bontinekx, um dos melhores historiadores da África central, diz que muitos missionários
estudaram a língua, os costumes.
Claro que houve destruições. Não
foram os missionários, mas a época colonial, toda uma ordem de
coisas e também os movimentos
africanos no interior das sociedades, que, para se imporem, destruíram objetos dos que os precederam. É um estereótipo dizer que
os missionários destruíram os objetos por toda a parte, isso tem a
ver com certas ideologias. Fica-se
satisfeito de poder dizer coisas sobre os missionários, mas elas costumam não ser justas, mesmo porque as pessoas não se dão ao trabalho de verificar o que afirmam.
Folha - O sr. faz longas estadas
em suas viagens?
Martin - Não. Como historiador de arte, prefiro ver as formas e
entrar nas culturas, e não passar
muito tempo nas sociedades. Não
sou antropólogo ou sociólogo, o
que me interessa é ver os objetos
relevantes de uma cultura e interrogar as pessoas que os conhecem,
obter esclarecimentos sobre as
coisas fundamentais. Não tenho a
disponibilidade de passar muito
tempo em campo.
Folha - E entre os lubas?
Martin - Sobre os lubas e os
hembas trabalhei muito. Estava na
Europa quando os objetos saíram
do grande santuário hemba e, por
intermédio de colecionadores, antiquários e dos que haviam recolhido os objetos, obtive fotos e regressei à região com as mais importantes. Lá encontrei jovens e
comerciantes da aldeia que tinham
vendido esses objetos e disseram
que não iriam me encontrar na
missão, mas num café na cidade.
Mostrei a eles as fotos. Ficaram
com medo. Dei-lhes as fotos.
Aconteceu algo extraordinário:
distribuíram-nas entre as pessoas
que conseguiram os objetos.
"Agora vou lhe explicar", disseram. "Essa foto, o senhor não pode mostrar na aldeia porque é a
guerra em torno desse objeto. Essa
outra, o senhor pode mostrar, o
objeto foi vendido por um pai ou
um filho." Explicaram-me toda a
história da compra dos objetos que
se encontravam na Europa e, ao
mesmo tempo, me deram indicações precisas de localização.
Folha - Por que alguns se desfazem de seus objetos?
Martin - Às vezes o filho prefere
ter uma televisão ou um automóvel do que guardar uma estátua do
ancestral de sua família, objeto
que está lá há gerações. Então, ele
pega a estátua e a vende para obter
aquelas mercadorias. Mas na família acredita-se que o objeto foi roubado. Se se mostra uma foto do objeto para a família que foi roubada... bem, é o mesmo que exibir
para você a foto de um objeto roubado da Bienal para saber o que
você acha dele.
Folha - Um comerciante de arte
pode ser tratado como um receptador e não como galerista de
prestígio.
Martin - A experiência de Jacques Kerchache é interessante.
Disse que nas aldeias há antropólogos que nunca viram os objetos
relevantes embora tenham passado 10 ou 20 anos estudando sua
cultura -isso, porque não se deve
mostrar nunca esses objetos a pessoas que te conhecem. Mas, um
dia, alguém passa rapidamente e
diz: "Quero comprar hoje teus objetos e amanhã estarei nos Estados
Unidos" -às vezes, é assim que
os objetos desaparecem dessa cultura. Dito de outro modo: você
nunca vai conseguir os objetos
preciosos das pessoas com as quais
mantém relações. Mas, se se tratar
de uma pessoa que veio de muito
longe, que passará por ali rapidamente e que não será mais vista,
talvez o indivíduo fique tentado a
pegar o dinheiro em troca do objeto. Há pessoas que viveram numa
cultura e não perceberam os objetos que foram vistos por alguém
que passou rapidamente.
Folha - De qualquer modo, os comerciantes não levam em conta a
cultura em sua globalidade e seu
ponto de partida está inteiramente em oposição ao desses viajantes.
Martin - Tento devolver um objeto a seu contexto, ver os lados estético, artístico e sobretudo a significação e também pôr as coisas
em paralelo, porque estou convencido de que os objetos mais relevantes têm uma significação relevante na sociedade. Às vezes,
tenta-se obter explicações extraordinárias sobre objetos que são horrendos. A cada um seu ofício, então. O historiador de arte vê a qualidade dos objetos, os antropólogos vêem a significação e algumas
vezes dão como exemplo objetos
que não são representativos. Creio
que seja necessário uma dialética
entre a forma e a significação.
Nelson Aguilar é crítico de artes plásticas; curador-geral da exposição "Brasil 500 Anos Artes
Visuais" e professor de história da arte da Universidade Estadual de Campinas.
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