São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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ÁFRICA E AMÉRICA
Um dos principais africanistas da atualidade, François Martin, participa da exposição "Brasil 500 Anos" em São Paulo, no ano 2000
Enigma do objeto

NELSON AGUILAR
especial para a Folha

O prior do mosteiro de Saint-André de Clerlande (Bélgica), dom François Martin, 59, um dos mais prestigiados africanistas, participa do módulo afro-brasileiro da exposição "Brasil 500 Anos Artes Visuais" (a ser realizada na Fundação Bienal de São Paulo em 2000), juntamente com Catherine Vanderhaeghe, sua assistente, e Kabengele Munanga e Lisy Sallum, ambos da USP.
Professor no Instituto Superior de Arqueologia e História da Arte em Louvain-a-Nova, escreveu, entre outros, "Artes Tradicionais e História do Zaire" (1980) e "Luba nas Fontes do Zaire" (1993). Como monge, preside a Aliança Intermonasterial, organismo oficial que cobre as ordens monásticas procedentes de São Bento (beneditinos, bernardinos, cistercienses e trapistas). Na última semana, quando esteve em São Paulo para discutir seu projeto na Bienal, deu a seguinte entrevista à Folha.

Folha - Como o sr. justifica a idéia de selecionar três áreas culturais africanas para dar conta da arte afro-brasileira na exposição?
François Martin -
A região que se impõe, a mais conhecida e em constante diálogo com o Brasil, é o golfo de Benin, com os iorubas, a Nigéria, Daomé e os fon, Togo. É a região que teve influência muito forte. Na Bahia, Roger Bastide e Pierre Verger colocaram em evidência todos os cultos. Por meio do candomblé, reconhece-se a importância da região ioruba. Mas no Brasil há outro aspecto que é mais oculto, porque mais antigo, que é a influência da África central, do Congo e de Angola. E aí é preciso levar em conta não somente os reinos à beira-mar, como o Bakongo, mas também o interior do Congo e de Angola.
Creio que é interessante ir mais longe e examinar as raízes ou uma parte das raízes das culturas africanas no Brasil que encontram o fundamento na África central. Para tomar um exemplo bem flagrante, nos estudos musicais, vê-se que a palavra "samba" ocupa um lugar muito importante no Brasil e que o samba brasileiro acha sua origem num conceito que vem do Congo. Há estudos de Kazadi e de outros que comprovam o fato. É interessante valorizar não somente o golfo de Benin, mas outras dimensões que, além do candomblé, repercutem na vida das pessoas, na música, na língua, no vocabulário, na tradição, e não estão bem estudadas, ou melhor, ainda não foram estudadas e dizem respeito à África central.
O essencial quando se fala em arte africana é o percurso iniciático. Não se chega a tocar nos objetos africanos. Há presenças com significações diferentes e com diferentes níveis de profundidade se você pertence à tradição e entra na significação dos objetos. Hampate Ba, um dos sábios da África ocidental, dizia que as pessoas se extasiam diante do tecido, mas não vêem o que está no interior do tecido. Diante dos objetos, permanece-se na forma, na exterioridade, sem compreender a significação e o valor profundo. O mais profundo é um enigma. É necessário deixar essa abertura e esse lado enigmático dos objetos. Quem quer tudo explicar esquece a sabedoria e a profundidade da cultura africana.
Folha - O sr. tem grande experiência de campo e é capaz de perceber essas implicações. Elas estão presentes em obras de especialistas que dedicam capítulos à arquitetura, para significar que a arte africana não se resume ao que é portátil, ao que se conhece de museus. Qual é exatamente sua experiência de campo?
Martin -
Nasci na África. Passei 20 anos lá, toda minha infância na região de Katanga. Fiz pesquisas sobre os hembas e os lubas em todo o sudeste do Zaire. Depois voltei como professor na Universidade do Zaire e trabalhei com o Instituto do Museu Nacional. Em seguida, voltei à Bélgica para ser professor na Universidade Católica de Louvain, mas fazia regularmente viagens ao Zaire para pesquisas, não somente sobre os hembas, os lubas, mas sobre o conjunto do país, ao qual dediquei uma obra.
Folha - Além do mais, o sr. é monge...
Martin -
Sim, com grande respeito pelas culturas e tradições que vêm da África. Minha formação é greco-latina, de filólogo clássico, fiz doutorado em Louvain sobre textos gregos, com a história da arte como complemento. Sempre me espantava quando, de volta à África, perguntavam-me se a arte africana me interessava. Como se pode interessar por essas populações sem conhecer ou sem entrar em suas culturas? Sempre me espantou como muitos religiosos missionários ignoram completamente a cultura do país onde estão. Estive em Ife, a cidade santa dos iorubas, e o missionário que me recebeu disse: "O que veio fazer aqui?". Respondi que fora ver os objetos do museu de Ife. "Nunca os vimos", mencionou meu interlocutor. Tive a mesma experiência na África central, quando trabalhei sobre os ancestrais hembas.
Folha - Em contrapartida, os sacerdotes iorubas consideram a arte do ponto de vista da totalidade, sem enfatizar a importância de um objeto.
Martin -
Isso se liga ao que acontece com a arte contemporânea. O objeto deve ser situado em todas as dimensões da vida. A imagem reenvia à fala, ao ensino, à formação, ao cosmos, e o cosmos só se exprime por intermédio de máscaras, de estátuas que têm provérbios, que têm textos precisos. Há sempre uma correlação imagem/fala na África, o objeto não é só visto por si próprio, mas é um ensino, um culto, uma formação, uma relação com o espaço -algo bastante universal.
Folha - O curador William Rubin afirma que o sr. é um dos raros missionários a saberem preservar uma cultura e não destruí-la por catequese, por conversão. Como o sr. considera essa observação?
Martin -
Você leu muito bem o catálogo sobre a exposição do primitivismo no século 20, ocorrida no Museu de Arte Moderna de Nova York (1984), porque essa observação está em uma nota de pé de página. Mas acho um estereótipo. François Bontinekx, um dos melhores historiadores da África central, diz que muitos missionários estudaram a língua, os costumes. Claro que houve destruições. Não foram os missionários, mas a época colonial, toda uma ordem de coisas e também os movimentos africanos no interior das sociedades, que, para se imporem, destruíram objetos dos que os precederam. É um estereótipo dizer que os missionários destruíram os objetos por toda a parte, isso tem a ver com certas ideologias. Fica-se satisfeito de poder dizer coisas sobre os missionários, mas elas costumam não ser justas, mesmo porque as pessoas não se dão ao trabalho de verificar o que afirmam.
Folha - O sr. faz longas estadas em suas viagens?
Martin -
Não. Como historiador de arte, prefiro ver as formas e entrar nas culturas, e não passar muito tempo nas sociedades. Não sou antropólogo ou sociólogo, o que me interessa é ver os objetos relevantes de uma cultura e interrogar as pessoas que os conhecem, obter esclarecimentos sobre as coisas fundamentais. Não tenho a disponibilidade de passar muito tempo em campo.
Folha - E entre os lubas?
Martin -
Sobre os lubas e os hembas trabalhei muito. Estava na Europa quando os objetos saíram do grande santuário hemba e, por intermédio de colecionadores, antiquários e dos que haviam recolhido os objetos, obtive fotos e regressei à região com as mais importantes. Lá encontrei jovens e comerciantes da aldeia que tinham vendido esses objetos e disseram que não iriam me encontrar na missão, mas num café na cidade. Mostrei a eles as fotos. Ficaram com medo. Dei-lhes as fotos. Aconteceu algo extraordinário: distribuíram-nas entre as pessoas que conseguiram os objetos. "Agora vou lhe explicar", disseram. "Essa foto, o senhor não pode mostrar na aldeia porque é a guerra em torno desse objeto. Essa outra, o senhor pode mostrar, o objeto foi vendido por um pai ou um filho." Explicaram-me toda a história da compra dos objetos que se encontravam na Europa e, ao mesmo tempo, me deram indicações precisas de localização.
Folha - Por que alguns se desfazem de seus objetos?
Martin -
Às vezes o filho prefere ter uma televisão ou um automóvel do que guardar uma estátua do ancestral de sua família, objeto que está lá há gerações. Então, ele pega a estátua e a vende para obter aquelas mercadorias. Mas na família acredita-se que o objeto foi roubado. Se se mostra uma foto do objeto para a família que foi roubada... bem, é o mesmo que exibir para você a foto de um objeto roubado da Bienal para saber o que você acha dele.
Folha - Um comerciante de arte pode ser tratado como um receptador e não como galerista de prestígio.
Martin -
A experiência de Jacques Kerchache é interessante. Disse que nas aldeias há antropólogos que nunca viram os objetos relevantes embora tenham passado 10 ou 20 anos estudando sua cultura -isso, porque não se deve mostrar nunca esses objetos a pessoas que te conhecem. Mas, um dia, alguém passa rapidamente e diz: "Quero comprar hoje teus objetos e amanhã estarei nos Estados Unidos" -às vezes, é assim que os objetos desaparecem dessa cultura. Dito de outro modo: você nunca vai conseguir os objetos preciosos das pessoas com as quais mantém relações. Mas, se se tratar de uma pessoa que veio de muito longe, que passará por ali rapidamente e que não será mais vista, talvez o indivíduo fique tentado a pegar o dinheiro em troca do objeto. Há pessoas que viveram numa cultura e não perceberam os objetos que foram vistos por alguém que passou rapidamente.
Folha - De qualquer modo, os comerciantes não levam em conta a cultura em sua globalidade e seu ponto de partida está inteiramente em oposição ao desses viajantes.
Martin -
Tento devolver um objeto a seu contexto, ver os lados estético, artístico e sobretudo a significação e também pôr as coisas em paralelo, porque estou convencido de que os objetos mais relevantes têm uma significação relevante na sociedade. Às vezes, tenta-se obter explicações extraordinárias sobre objetos que são horrendos. A cada um seu ofício, então. O historiador de arte vê a qualidade dos objetos, os antropólogos vêem a significação e algumas vezes dão como exemplo objetos que não são representativos. Creio que seja necessário uma dialética entre a forma e a significação.


Nelson Aguilar é crítico de artes plásticas; curador-geral da exposição "Brasil 500 Anos Artes Visuais" e professor de história da arte da Universidade Estadual de Campinas.



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