São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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Così è (se vi pare) - II

CLAUDIO ABRAMO

- Alô! É do Comitê de Detroit? Aqui é Mr. Cash, assessor de Assuntos Especiais do candidato Rosebud. Queria falar com Mr. Garbage. É a propósito de uma concessão para a construção de um posto de gasolina perto da Crackpot Street... Sim... Sim... É o que queria dizer a ele. Então, está compreendido? Muito bem, adeus!
O jovem de fartos cabelos loiros, terno azul maravilha e gravata amarrada num nó gigantesco tira os óculos, fita uma longa lista de nomes à sua frente e faz nova ligação. O ar condicionado está no máximo. Lá fora, um frio terrível. Dentro do escritório, uma atmosfera de tranquila e confortável opulência.
- Alô, bom dia! Quero falar com Mrs. Flossie, presidente da Associação das Mulheres Ruivas da Costa Oeste. É ela? Muito bem, muito bem, aqui é Mr. Cash etc. etc. etc. Sim, vamos bem, com frio, suponho que aí esteja bem mais quente, ah ah ah. Mas vamos aos fatos, minha cara senhora. Sim, é sobre seu marido. Soubemos que ele acaba de ser nomeado presidente da Subcomissão de Aviamentos, Meios e Fins... Sim, queria lhe dar os parabéns, peço transmitir-lhe. A propósito, minha senhora, queria também anunciar-se que acabamos de enviar para a sua associação uma dotação especial que estava prevista em nosso orçamento, sob a rubrica de "Assistência a Representações Setoriais da Costa Oeste"... Sim, sim, adeus.
Outro olhar à longa lista, outra vez o telefone:
- Alô! É do Sindicato dos Descarregadores de Caixas de Banana do Porto de Nova York? Sim, quero falar com Mr. Volpe, presidente do Sindicato! Alô, ele está conversando com Mr. Gambino? Bem, bem, poderia ligar de novo, mas o sr. me fará o favor de lhe dar um recado... Diga-lhe que, a propósito daquela conversa que ele ficou de ter com o deputado, aquela conversa que Mr. Volpe ficou de fazer com ele, que diabo, que ele faça logo... Sim, sim, já estou mandando a ordem de pagamento.. Ela será feita através da Associação dos Puxadores de Carros, numa operação de estorno, sim, sim, mas preciso de uma resposta urgente, senão que diabo (impropério suprimido) vou dizer a Mr. Rosebud? Ele conta muito com o elevado espírito público do deputado, que diabo (impropério suprimido)! Adeus.
Entra uma secretária, loiríssima, de olhos azuis, pernas bem torneadas, previsíveis através da longa saia, e montada em tamancos de cinco andares. Mr. Cash lança-lhe um olhar experiente.
- Tome nota aí, gatinha. Ponha na lista, a mão mesmo, depois passamos tudo a máquina: US$ 10 mil para aqueles vigaristas de Chicago, a concessão para o cara de Detroit, mais US$ 5.000 para aquelas chatas da Costa Oeste, mais US$ 10 mil para aquele mafioso de Nova York e vamos em frente... A propósito, o que você vai fazer esta noite?
Sem esperar resposta, consulta a lista, faz nova ligação. E mais outra e mais outra. De vez em quando, considera a moça, dita números, sempre em milhares de dólares. Os dois comem no escritório mesmo: sanduíches, um gole de uísque, leite, um café aguado, mas quente. O trabalho atravessa a noite, vem a manhãzinha. A coluna de cifras sobre uma folha imaculada é impressionante. A soma é mais ainda.

- Alô! É o danado do Sharp Knife? Aqui é seu amigo Jack D. Kill, do Comitê de Verificação de Credenciais... Olhe aqui, seu (impropério suprimido), acabamos de descobrir, com os caras da comissão, você sabe, não todos, mas Dan Quick e Bob Gold, que o Rosebud tem que explicar porque deu aquele colar de pérolas para Mrs. Beast quando o marido dela era presidente daquela comissão, você sabe, não preciso dizer mais nada, afinal estamos aqui para zelar pelo interesse público... Sim, você não acha que foi uma coisa imoral? Você ainda tem dúvidas? Ora, meu caro, se fosse ainda para uma "bunny" do Hefner, ainda vai, mas aquela Beast, tenha paciência, assim é demais! Afinal, é preciso uma explicação para isso... Sim, pois é, é o que eu dizia aqui ao Quick e ao Gold, devemos levantar esse problema na Comissão... O nome do Rosebud não passa, se isso não ficar esclarecido... Pois é, que diabo!
No escritório pequeno, cheio de móveis, estantes, arquivos e cinzeiros, carregado de fumaça, o gorducho desliga o telefone, pisca um olho para Quick e Gold e sorri como um moleque que acabou de roubar a torta de cerejas.


Antes de terminar o charuto, telefone toca.
- Sim, é Jack D. Kill, sim sim, é do Comitê etc. etc. etc., onde diabo podia ser se o sr. discou este número?... Ah! O sr. está falando de um telefone público de Nova York? Muito bem, muito bem, eu sou um homem ocupado, estou tratando de impedir uma bandalheira... Afinal, esse Rosebud não pode andar por aí comprando consciências com colares de pérolas e outras coisas... Não é porque ele é dono de não sei quantos poços de petróleo... Como? O sr. é o representante de Mr. Cash, assessor etc. etc. etc. do próprio Mr. Rosebud? Muito bem, muito bem, mas o que quer o senhor? Ah, o colega Sharp Knife lhe telefonou? Mas eu sou um homem incorruptível, olhe lá... É por isso que o sr. está falando num telefone público?... Veja lá... Sim, sim, entendi. Bem, essas coisas, o sr. sabe, colares, esposas de altos funcionários, presentes, sim, sim, claro, tudo isso precisa ter uma explicação, deve ter, pode ter, certamente tem... Afinal, até mesmo o Tricky explicou aquela história das gravações. Quando? Na quinta-feira, às 10 da manhã? Muito bem, mas veja lá, nada de microfones ocultos, tenho alergia a microfones ocultos. Adeus, adeus!
O gordalhão volta-se para Quick e Gold e dá outra risada, como um moleque que acabou de roubar a torta de cereja e pôs a culpa na irmã de dois anos de idade.

O pianista toca de mansinho. O bar, elegante e escuro, está quase vazio. Numa mesa, um homem dialoga com seu quinto drinque. Tem as têmporas brancas, um ar de dignidade a serviço da sobrevivência. Visto de perto, revelará um brilho de sopitada cupidez nos olhos cor de cinza.
- Meu irmão é uma besta... Com todo aquele poder na Colina, não acerta uma... Mas acho que agora ele pode atender... Não custa nada... Tive um ano ruim, estou a zero, até aquela coisinha fofa da Teet me deixou... Afinal, que é um voto e uma palavrinha com os colegas, para ele? Pelo menos com os mais chegados... No fim das contas, Rosebud não é pior do que os outros, só porque tem dinheiro (quanto dinheiro, Deus meu!)... Não custa nada a eles... Um votinho, dois, três, e também deixar de criar caso, e eu entrava na Souls Amalgamated, como vice-presidente... um bom salário, que diabo...
O homem decide-se afinal, pede a um garçom que lhe traga o telefone de extensão e faz uma ligação interurbana. Fala durante 15 minutos, primeiro suplicante, depois veemente, a seguir caloroso. Quando termina, dá um suspiro, alisa uma dobra imaginária na lapela. E pede um champanha Roederer, rótulo dourado.

Tudo isso, é claro, parece um filme de segunda classe. Mas é uma caricatura do que talvez tenha acontecido com a não muito remota indicação, para uma alta posição, de conhecida personalidade de um rico e poderoso rincão.

E tudo isso poderia repetir-se numa grande cidade de um grande país, ainda mais próximo e ainda mais amigo. Pois os homens são iguais, em todas as partes, e as circunstâncias parecidas, embora os nomes sejam diferentes e as proporções bem mais modestas.
Mas, nada disso, terá notado o leitor mais experiente, e verdadeiro. Tudo e ficção.


Texto publicado na Folha em 30/3/75, na pág. 3
Così è (se vi pare)

Sobre a grande mesa de mogno, à direita do ocupante, um busto de bronze, com matizes dourados, onde as mãos acariciaram mais detidamente o rosto: Napoleão; sobre uma pilha de papéis, à esquerda, um livro luxuosamente encadernado; as "Antimemórias", de André Malraux; na parede do fundo, iluminada, uma gravura antiga: Savonarola; e solitária, dominando toda a parede oposta, escura e sombria, mal esbatida pela luz, uma máscara mortuária: Maquiavel.
O cenário, como se percebe, é imaginário. Não existem máscaras mortuárias de Maquiavel assim à solta pelo mundo, a ninguém ocorrerá a idéia de pregar à parede uma reprodução do difícil monge italiano. Só resta o busto de Napoleão, ao alcance da vaidade e da ambição de qualquer um.
Cenário é uma palavra que economistas (técnicos cuja ascendência fugaz costuma anteceder as tempestades) e sociólogos (especialistas em diagnosticar o que todo mundo já sabe) roubaram do teatro. É empregada hoje, amplamente, quando se pretende, a pretexto de traçar uma projeção do futuro, fazer uma análise do presente. Assim, a palavra serve para imaginar uma situação que se define, em seus contornos, como "se non vera", "ben trovata".
O cenário, pois, está montado. À mesa, um perfil que outrora foi de ave, mas que os anos e a fartura benfazeja arredondaram, corta a sala em dois: óculos pesados, para ler e para vislumbrar, no horizonte, os arautos da borrasca ou os portadores de boas novas. Uma ambição frustrada pelo temperamento e uma inteligência reduzida pela paixão. À máquina, um artigo pela metade, sobre um tema qualquer. Pois qualquer argumento ou qualquer assunto serve para o momento. Foi escrevendo-os, numa produção prodigiosamente copiosa, que o autor chegou a influir tão poderosamente na vida de seu país. Foi com eles, e com o verbo fácil, que derrubou presidentes, um após outro. O que importa no caso não é sobre o que escreve, mas o que está escrevendo. Longos artigos, nos quais por vezes brota o antigo sestro, a antiga chama, para logo depois apagar-se. É o velho leão -não tão velho que não lhe restem alguns anos para fulguração na paisagem política, tornada pobre e sáfara, e da qual foi alijado pelo descontrole verbal. Inveterado semeador de ventos, colhido pela tempestade, arribou numa praia, náufrago, mas com boa saúde, fortalecida por um longo repouso.
Perigoso para os adversários, amigo difícil, problemático, mas sempre um bom aliado para as refregas, as lutas, os embates. Ei-lo, à espera do momento em que poderá voltar a brilhar na área de sua predileção. Com a ordem de castigo já vencida, mas impedido de voltar nas condições atuais, aceita a partida que as circunstâncias, ainda precárias, lhe oferecem. Quem com ele se engaja corre alguns riscos, produzidos pela paixão, por vezes mais forte do que a razão. Assim foi e assim será.
Do outro lado da linha (ele no momento empunhava um telefone) uma voz, em muito semelhante à dele, naquela solidariedade nascida das batalhas comuns e alimentadas na derrota. Essa voz fala por várias bocas, seu pensamento se externa num martelar diário, matutino; a voz é rouca pela repetição dos temas, quer ser firme para não revelar as contradições. Quer ser forte para não mostrar a hesitação.
É fácil imaginar o diálogo. A voz cedeu em alguns temas, no diálogo com outros interlocutores. Concordou em abaixar o tom em certos casos, em amenizar os termos, trocou, sem alarde a inspiração da Musa pela expressão mais prudente. Já fez as concessões aconselhadas pela estratégia e permitidas pela habilidade. O primeiro lance já foi dado. Ceder no circunstancial, para dar um passo à frente no fundamental. Um passo atrás, dois à frente. O importante não é o detalhe, é o geral; projetar de novo no campo político o homem que está sentado à máquina. A folha será concluída, irá ao seu destino, para ser divulgada pela voz. O nome do autor já volta a ser dissociado do sobrenome, quando nele se fale, bem no carinhoso hábito brasileiro. O polemista está de volta, disponível, presto e disposto.
Para a voz, o que importa é que ele desempenhará os seu papel. É a Rainha do tabuleiro de xadrez. Entre ele e a voz, arma-se o dispositivo de ofensiva. Trata-se de voltar ao pleno exercício político, obliterados os limites nos quais estava confinado. Com ele, se pode executar uma manobra de largo alcance. A missão é clara: a volta à liderança política, no momento em que os dois campos se fitam com desconfiança e nervosismo crescentes. Ele tem aí a sua função. Abrirá, com a voz, um caminho entre os dois campos. Não importa se, depois, ele e a voz possam discordar. Por ora, ambições e desejos se combinam.

Muda o cenário. A sala é outra, outros são os adornos. Sobre a mesa, de produção industrial, um busto de terracota pintada em amarelo: Abraham Lincoln; um livro, solitário: "Como Fazer Amigos e Depois Destruí-los", de Dale Carneggie; um grande tinteiro, rococó, para recados e cartas, quando úteis; à parede, em frente, um quadro numa moldura dourada: o retrato do próprio ocupante da mesa.
É claro que o cenário é também inventado. Não há bustos em terracota do grande norte-americano e ainda mais pintados de amarelo; Carneggie nunca escreveu tal livro.
O perfil, indefinido, curva-se sobre um papel. Ele não escreve, desenha planos, envia, às vezes, mensagens a amigos e antigos correligionários. Conserva o poder de entender as situações imediatamente, num refulgir de pensamento, mesmo sem decifrá-las. O instinto nele supera a tudo o mais. Age com a rapidez de um raio. Tem o sentido de oportunidade, como só outro teve mais do que ele em toda a historia local. Começou num bairro, venceu a cidade, dobrou o Estado, conquistou o país e depois perdeu-se numa aventura que falhou, num momento de inspiração canhestra.
Está também de quarentena, depois do término do período de castigo. Espera sua vez. Não tem o benefício de proximidades com a voz, que com ele já queimou os dedos. Está igualmente disponível para as partidas e os lances. Mas vislumbra uma possibilidade: tem um grande poder catalisador. E uma grande vantagem, até sobre o homem de perfil de ave: não lhe tolhe os movimentos qualquer inflexibilidade programática. Qualquer modelo é bom. Está pronto para servir, se convocado. Não tendo a voz, estende a mão ao telefone. Vai entender-se com o homem de perfil de ave. No tabuleiro, poderá vir a desempenhar o papel do bispo, ou do cavalo. Não importa se depois haverá o atrito com o outro, como já houve antes. Por ora, interesses e ambições, táticas e manobras correm paralelas. Manda mensageiros e recebe respostas. Está prestes a entrar no campo, na nesga que começa a se abrir entre as duas áreas que se defrontam. Por ora, com um apetite voraz, sente-se ainda limitado.

Novo cenário. Não há mesa nesta outra sala. À parede, uma grande fotografia; uma cidade moderníssima, num grande vale. Ao canto, uma vitrola antiga, um disco: uma valsa medieval. Numa cadeira desenhada por Frank Lloyd Wright, um homem, os pés fora do sapato, o perfil esmaecido pela cidade. Também este cenário é fruto da imaginação. Não há cidade moderníssima construída em vales, não existem valsas medievais, o grande arquiteto norte-americano jamais desenhou cadeiras.
Mas os pensamentos que lhe ardem no cérebro são os mesmos. Combatido pelos dois homens precedentes, foi, durante quatro anos, alvo da virulência da voz. Mas a ambição é a mesma, o desejo idêntico. A leitura dos números e das estatísticas excita-lhe a imaginação. Com tudo isso, construiria mil cidades, não uma. Também de quarentena, deixou no povo que governou uma imagem simpática, um apelido carinhoso e familiar, o ar sorridente do homem que nunca soube dizer não. Não há enterro concorrido e cerimônia a ser fotografada que não conte com sua presença. Não tem faixas próprias. Surgiu como um meteoro, e como um meteoro fez subir o desbalanço entre o que a Nação tinha e o que podia gastar. Foi generoso com os adversários. É de conversa fácil. Criou a imagem do avanço temerário, a que os técnicos, como é de seu hábito, deram um nome técnico.
Não odiou, e portanto não é odiado. Não tem inimigos -e os amigos fazem-se na hora. Em sua vida, foi levando, como diz o povo. Vê, também ele, mesmo sem mesa, sem livros e sem bustos, que existe uma brecha naquele terreno onde os adversários se miram. Pode servir a um ou ao outro. Seu castigo terminou. Está, também ele, disponível, aceso, aprestado. Não tem contato com a voz, nem com o homem do perfil indefinido, nem com o de perfil de ave. Mas sabe que existe um lugar para ele nessa partida. Pode servir de torre, ou de bispo. Espera seu momento, com a antecipação tranquila dos que sabem perder e perdoar até as vitórias. Talvez, pensa, entre os dois e a voz, possa esgueirar-se, como solução conciliatória, que não fere ninguém. Quem sabe, um dia, naquela cidade moderníssima, toda branca, de cimento e vidro, refulgente sob o sol, ele voltará a dançar suas valsas.

Nada disso, terá notado o leitor mais experiente, é verdadeiro. As personagens não existem, nem existe a voz. Tudo é ficção.


Texto publicado na Folha em 13/3/75, na pág. 3


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