São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
Humanismo obstinado do autor ressurge em biografia e coletânea de ensaios
É preciso imaginar Camus feliz

JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha

Camus costumava lembrar, para se referir à natureza meio obstinada demais do romance clássico, para ele um modelo insuperável, a resposta do guarda que conduzia Luis 14 à forca, quando este lhe pediu um pequeno favor: "Não estou aqui para lhe prestar serviços, mas para conduzi-lo ao cadafalso". Olivier Todd também não presta serviços a Camus. Parece mesmo disposto, como o guarda de Luis 14, a reconduzir seu personagem não ao seu fim, mas a tudo o que fez dele o tema de uma polêmica que se estabeleceu meio estrondosamente a partir e durante os anos da Guerra Fria e saltou além da sua morte, num acidente de automóvel em 1960.
Os termos da polêmica sempre foram ardentes: de um lado um Camus filósofo de classes terminais, "santo leigo" tendo nas mãos não muito mais do que um "uma moral de Cruz Vermelha". De outro, um homem capaz de reafirmar contra "os maquiavelismos e o bezerro de ouro do realismo a existência do fato moral", e que talvez tenha tido razão cedo demais.
Para essa feição de "questão Camus" desta biografia pesou com certeza a própria posição de Olivier Todd no mundo jornalístico, ideológico e literário da França. Ele é autor de alguns romances, de uma biografia do compositor Jacques Brell (um tipo comoventemente camusiano), foi repórter no "Nouvel Observateur" e diretor de redação do "L' Express". A temível câmara de intensificação da realidade, para o bem e para o mal, que é o jornalismo cultural francês, com suas sentenças jubilatórias e crucificantes, sua profusão de criaturas aguerridamente de papel, não é portanto estranha a ele. Ao contrário, ele alimenta o seu livro com isso, diferentemente da outra biografia programaticamente inteira do autor de "O Mito de Sísifo", escrita por Herbert Lottman, de 1979, na qual o escritor fica seu tanto encoberto.
Mas a razão principal para a feição de apaixonada "bio-agonia" que tem o livro de Todd estava no próprio Camus. "Ele parecia trazer", lembra uma das inúmeras amigas, "sempre uma flecha enfiada no flanco e tanta dificuldade para nos suportar como para nos deixar, em não agir quanto em agir, em acreditar quanto em desesperar".
Não devia ser fácil ser Camus. Nascido num distrito operário de Constantino, na Argélia, filho de um adegueiro alsaciano e de uma camponesa espanhola, Camus via na sua origem uma paisagem moral e um programa de vida e de ação. "Fui colocado a meia distância entre a miséria e o Sol. A miséria me impede de acreditar que tudo está bem sob o Sol e na história, e o Sol me ensinou que a história não é tudo", escreveu no prefácio de "O Avesso e o Direito", seu primeiro livro, de 1935. O tom das cinco novelas-ensaios do livro já é soberbo e já é o de Camus -uma composição entre a recusa e aceitação jubilosa do real e dos homens.
Camus trabalhava então no "Alger Republicain" (alguns artigos ali publicados estão reproduzidos neste "A Inteligência e o Cadafalso", entre eles um sobre Melville, escritor que ele amava, e um esplêndido, que dá nome ao livro, sobre a natureza seca e ardente do romance clássico, "uma escola de vida porque uma escola de arte"). Publicaram também sua primeira peça de teatro -"Calígula"-, ligara-se ao Partido Comunista da Argélia, do qual se desligaria depois e para cujo marxismo pretendia levar a mediação solar da "mediterraneidade", e morava numa espécie de mínimo falanstério argelino, a "Maison Fichu", a que se chegava por "um caminho que começava nas oliveiras e terminava nas oliveiras".
Tinha se separado da primeira mulher, Simone Hué, embora sua solicitude e ternura diante da exasperante morfinomania da moça só tivessem feito crescer. Iria se casar logo com Francine Faure, de Oran, estudante de matemática e da música de Bach, e com quem teve um casal de gêmeos, Jean e Catherine, já na França. Não se separaria nunca de Francine, mesmo com o desfile ondulante e diverso das mulheres na sua vida: a atriz espanhola Maria Casarès, Catherine Sellers, a dinamarquesa Mi, seus casos mais permanentes, além de inúmeras outras.
Com relação aos amores, Olivier Todd concede tudo a Camus, que gostava de citar a máxima do poeta René Char, seu amigo -"Curva-te apenas para amar"-, e nunca se obrigou a elaborar algo como a "Teoria da Necessidade e o Contingente", com que Sartre e Simone justificavam e legendavam os seus casos. Embora desde o fim da Segunda Guerra tivesse se estabelecido o rito de um almoço semanal de Sartre, Camus, Simone (que o retratou atravessadissimamente na personagem de Henri em "Os Mandarins", esse "E o Vento Levou" do mundo literário francês), com a publicação de "O Homem Revoltado", em 1952, a amizade ficou impossível.
O livro, no qual o tema da revolta metafísica, artística e histórica é compilado, como que desbasta um pouco a idolatria "gauchiste" em torno de escritores como Lautréamont, Breton, o próprio Rimbaud, algo insultante para a esquerda literária libertarista. Mais: denuncia o "cesarismo" que, como uma segunda natureza, via surgir nos regimes estabelecidos em nome do marxismo. Como se sabe, o episódio da polêmica Sartre-Camus, iniciado com a crítica impiedosa de Francis Jeanson ao livro, no "Temps Modernes", foi explosivo.
Foi com um irritante "Senhor diretor" que Camus começou a sua resposta a "Les Temps Modernes", como que se dirigindo ao diretor da revista como se fosse a "uma sopeira ou a um bandolim" e não o próprio Sartre. Dizia que estava cheio de "receber lições de eficácia de censores que nunca colocaram nada além de sua poltrona no sentido da história". A referência ao ex-companheiro de almoços era clara. A resposta de Sartre ficou célebre. Começava com um "Nossa amizade nunca foi fácil, mas sentirei falta dela" e receava que daquele jeito, com tanta severidade aplicada a homens que eram revolucionários de coração, Camus "se condenava a condenar Sísifo".
Olivier Todd se aplica em mostrar que não. Com os acontecimentos da Argélia, a partir de 1955, quando do lado da FLN (os militares argelinos da libertação) surgem as "strounga", as bombas de plástico, e do lado dos colonizadores, a tortura sistemática de argelinos por parte da OAS, Todd vê Camus falando como um Sísifo ainda muito vivo, e com uma voz cuja modulação é a única possível: "Somos os que se recusam a exercer e a experimentar o terror", disse Camus em Argel, em 1956. Sonhava com "uma utopia que não fosse ruinosa" -uma Argélia para os argelinos e para os franceses de lá (dos quais descendia e entre os quais sua mãe nunca deixou de viver). O que defendia não era muito diferente do que muitos anos depois Nadine Gordimer, por exemplo, pretendeu para a África do Sul.
Talvez ele tenha tido mesmo razão cedo demais. Queria como poucos transformar o mundo, mas sem que os homens fossem obrigados "a deixar as divindades entre as quais se criaram", ou "os valores sem os quais a vida não vale a pena ser vivida". Os seus eram esse humanismo obstinado e que não receia parar na frente do bezerro de ouro dos realismos políticos, uma certa composição entre recusa e consentimento, e entre a história, a política e a educação pelo Sol. Um programa e tanto era o seu. Como ele pedia para o seu Sísifo, é preciso imaginar Camus feliz.

AS OBRAS

Albert Camus - Uma Vida - Oliver Todd. Tradução de Monica Stahel. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 914 págs. R$ 60,00.

A Inteligência e o Cadafalso - Albert Camus. Tradução de Manuel da Costa Pinto e Cristina Murachco. Ed. Record. 144 págs. R$ 17,00.


José Maria Cançado é autor de "Os Sapatos de Orfeu", biografia de Carlos Drummond de Andrade.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.