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LIVROS
Humanismo obstinado do autor ressurge em biografia e coletânea de ensaios
É preciso imaginar Camus feliz
JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha
Camus costumava lembrar, para
se referir à natureza meio obstinada demais do romance clássico,
para ele um modelo insuperável, a
resposta do guarda que conduzia
Luis 14 à forca, quando este lhe pediu um pequeno favor: "Não estou aqui para lhe prestar serviços,
mas para conduzi-lo ao cadafalso". Olivier Todd também não
presta serviços a Camus. Parece
mesmo disposto, como o guarda
de Luis 14, a reconduzir seu personagem não ao seu fim, mas a tudo
o que fez dele o tema de uma polêmica que se estabeleceu meio estrondosamente a partir e durante
os anos da Guerra Fria e saltou
além da sua morte, num acidente
de automóvel em 1960.
Os termos da polêmica sempre
foram ardentes: de um lado um
Camus filósofo de classes terminais, "santo leigo" tendo nas
mãos não muito mais do que um
"uma moral de Cruz Vermelha".
De outro, um homem capaz de
reafirmar contra "os maquiavelismos e o bezerro de ouro do realismo a existência do fato moral",
e que talvez tenha tido razão cedo
demais.
Para essa feição de "questão Camus" desta biografia pesou com
certeza a própria posição de Olivier Todd no mundo jornalístico,
ideológico e literário da França.
Ele é autor de alguns romances, de
uma biografia do compositor Jacques Brell (um tipo comoventemente camusiano), foi repórter no
"Nouvel Observateur" e diretor
de redação do "L' Express". A temível câmara de intensificação da
realidade, para o bem e para o
mal, que é o jornalismo cultural
francês, com suas sentenças jubilatórias e crucificantes, sua profusão de criaturas aguerridamente
de papel, não é portanto estranha
a ele. Ao contrário, ele alimenta o
seu livro com isso, diferentemente
da outra biografia programaticamente inteira do autor de "O Mito
de Sísifo", escrita por Herbert
Lottman, de 1979, na qual o escritor fica seu tanto encoberto.
Mas a razão principal para a feição de apaixonada "bio-agonia"
que tem o livro de Todd estava no
próprio Camus. "Ele parecia trazer", lembra uma das inúmeras
amigas, "sempre uma flecha enfiada no flanco e tanta dificuldade
para nos suportar como para nos
deixar, em não agir quanto em
agir, em acreditar quanto em desesperar".
Não devia ser fácil ser Camus.
Nascido num distrito operário de
Constantino, na Argélia, filho de
um adegueiro alsaciano e de uma
camponesa espanhola, Camus via
na sua origem uma paisagem moral e um programa de vida e de
ação. "Fui colocado a meia distância entre a miséria e o Sol. A
miséria me impede de acreditar
que tudo está bem sob o Sol e na
história, e o Sol me ensinou que a
história não é tudo", escreveu no
prefácio de "O Avesso e o Direito", seu primeiro livro, de 1935. O
tom das cinco novelas-ensaios do
livro já é soberbo e já é o de Camus
-uma composição entre a recusa
e aceitação jubilosa do real e dos
homens.
Camus trabalhava então no "Alger Republicain" (alguns artigos
ali publicados estão reproduzidos
neste "A Inteligência e o Cadafalso", entre eles um sobre Melville,
escritor que ele amava, e um esplêndido, que dá nome ao livro,
sobre a natureza seca e ardente do
romance clássico, "uma escola de
vida porque uma escola de arte").
Publicaram também sua primeira
peça de teatro -"Calígula"-,
ligara-se ao Partido Comunista da
Argélia, do qual se desligaria depois e para cujo marxismo pretendia levar a mediação solar da
"mediterraneidade", e morava
numa espécie de mínimo falanstério argelino, a "Maison Fichu", a
que se chegava por "um caminho
que começava nas oliveiras e terminava nas oliveiras".
Tinha se separado da primeira
mulher, Simone Hué, embora sua
solicitude e ternura diante da
exasperante morfinomania da
moça só tivessem feito crescer. Iria
se casar logo com Francine Faure,
de Oran, estudante de matemática
e da música de Bach, e com quem
teve um casal de gêmeos, Jean e
Catherine, já na França. Não se separaria nunca de Francine, mesmo com o desfile ondulante e diverso das mulheres na sua vida: a
atriz espanhola Maria Casarès, Catherine Sellers, a dinamarquesa
Mi, seus casos mais permanentes,
além de inúmeras outras.
Com relação aos amores, Olivier
Todd concede tudo a Camus, que
gostava de citar a máxima do poeta René Char, seu amigo -"Curva-te apenas para amar"-, e
nunca se obrigou a elaborar algo
como a "Teoria da Necessidade e
o Contingente", com que Sartre e
Simone justificavam e legendavam
os seus casos. Embora desde o fim
da Segunda Guerra tivesse se estabelecido o rito de um almoço semanal de Sartre, Camus, Simone
(que o retratou atravessadissimamente na personagem de Henri
em "Os Mandarins", esse "E o
Vento Levou" do mundo literário
francês), com a publicação de "O
Homem Revoltado", em 1952, a
amizade ficou impossível.
O livro, no qual o tema da revolta metafísica, artística e histórica é
compilado, como que desbasta
um pouco a idolatria "gauchiste"
em torno de escritores como Lautréamont, Breton, o próprio Rimbaud, algo insultante para a esquerda literária libertarista. Mais:
denuncia o "cesarismo" que, como uma segunda natureza, via
surgir nos regimes estabelecidos
em nome do marxismo. Como se
sabe, o episódio da polêmica Sartre-Camus, iniciado com a crítica
impiedosa de Francis Jeanson ao
livro, no "Temps Modernes", foi
explosivo.
Foi com um irritante "Senhor
diretor" que Camus começou a
sua resposta a "Les Temps Modernes", como que se dirigindo
ao diretor da revista como se fosse
a "uma sopeira ou a um bandolim" e não o próprio Sartre. Dizia
que estava cheio de "receber lições de eficácia de censores que
nunca colocaram nada além de
sua poltrona no sentido da história". A referência ao ex-companheiro de almoços era clara. A resposta de Sartre ficou célebre. Começava com um "Nossa amizade
nunca foi fácil, mas sentirei falta
dela" e receava que daquele jeito,
com tanta severidade aplicada a
homens que eram revolucionários
de coração, Camus "se condenava
a condenar Sísifo".
Olivier Todd se aplica em mostrar que não. Com os acontecimentos da Argélia, a partir de
1955, quando do lado da FLN (os
militares argelinos da libertação)
surgem as "strounga", as bombas de plástico, e do lado dos colonizadores, a tortura sistemática de
argelinos por parte da OAS, Todd
vê Camus falando como um Sísifo
ainda muito vivo, e com uma voz
cuja modulação é a única possível:
"Somos os que se recusam a exercer e a experimentar o terror",
disse Camus em Argel, em 1956.
Sonhava com "uma utopia que
não fosse ruinosa" -uma Argélia
para os argelinos e para os franceses de lá (dos quais descendia e entre os quais sua mãe nunca deixou
de viver). O que defendia não era
muito diferente do que muitos
anos depois Nadine Gordimer,
por exemplo, pretendeu para a
África do Sul.
Talvez ele tenha tido mesmo razão cedo demais. Queria como
poucos transformar o mundo,
mas sem que os homens fossem
obrigados "a deixar as divindades
entre as quais se criaram", ou "os
valores sem os quais a vida não vale a pena ser vivida". Os seus eram
esse humanismo obstinado e que
não receia parar na frente do bezerro de ouro dos realismos políticos, uma certa composição entre
recusa e consentimento, e entre a
história, a política e a educação pelo Sol. Um programa e tanto era o
seu. Como ele pedia para o seu Sísifo, é preciso imaginar Camus feliz.
AS OBRAS
Albert Camus - Uma Vida -
Oliver Todd. Tradução de Monica Stahel. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel.
021/585-2000). 914 págs. R$
60,00.
A Inteligência e o Cadafalso
- Albert Camus. Tradução de Manuel da Costa Pinto e Cristina
Murachco. Ed. Record. 144 págs.
R$ 17,00.
José Maria Cançado é autor de "Os Sapatos de
Orfeu", biografia de Carlos Drummond de Andrade.
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