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Uma ética da revolta
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
Quando Albert Camus publicou
"O Homem Revoltado", em
1951, Francis Jeanson e Jean Paul
Sartre desancaram o livro e seu
autor nas páginas da revista francesa "Temps Modernes".
Os supostos "defeitos" do texto
camusiano apontados por Jeanson (subjetivismo, maleabilidade
do pensamento) e Sartre (incompetência filosófica, erudição duvidosa) são justamente os pontos de
que parte Manuel da Costa Pinto
para mostrar a filiação dos escritos
não-ficcionais de Camus à linhagem do ensaísmo francês, de raiz
montaigniana.
Mais que isso: "Albert Camus -
Um Elogio do Ensaio" mostra como a natureza lábil e movediça do
ensaio adequa-se à perfeição à disposição intelectual e ética de Camus, para quem a condição trágica do homem provém, por um lado, da contradição entre seu desejo de clareza e a opacidade do
mundo e, por outro, do conflito
entre sua vontade de permanecer e
a consciência de sua finitude.
"Só sei que nada sei" era, segundo dizem, o moto de Sócrates.
Se fosse possível reduzir a uma
frase o pensamento de Camus, talvez ela fosse: "Só sei que não é
possível saber". Pascal, três séculos antes, teria dito mais ou menos
a mesma coisa, mas acrescentando: "E por isso creio cegamente".
Já Camus, se fosse acrescentar algo, provavelmente diria: "É por
isso me revolto".
Da gênese do sentimento do absurdo à configuração de uma ética
da revolta, o pensamento de Camus, como nos mostra Costa Pinto, é de uma coerência ímpar, que
se manifesta tanto em suas obras
de ficção como nos ensaios "filosóficos" e nos textos de crítica literária. Vista em conjunto, a obra
de Camus é um pensamento em
contínua construção, em que ficção e ensaio dialogam e se iluminam reciprocamente.
Os próprios romances camusianos são qualificados por Costa
Pinto de "ficção "moraliste'",
pelo "controle do escritor sobre o
sentido de suas representações",
visando à expressão de uma "certa concepção do homem".
Mas estamos colocando o carro
na frente dos bois. Antes de debruçar-se sobre a obra de Camus,
o livro de Manuel da Costa Pinto
trata de desenhar a gênese e os traços definidores do ensaísmo francês, distinguindo-o, por exemplo,
do "familiar essay" inglês e da
"prosa doutrinal" portuguesa.
Analisando a literatura de autores como Montaigne, Pascal, La
Rochefoucault e Chamfort, Costa
Pinto busca a estratégia de enunciação que os aproxima, para além
da diversidade dos temas e estilos.
O que há em comum entre esses
autores tão diversos é, primeiro,
uma postura essencialmente antidogmática, um ceticismo diante
da possibilidade de "penetrarmos
a identidade das coisas", um afastamento dos grandes sistemas explicativos da natureza e da vida.
Mas há também uma proximidade quanto à forma literária, argutamente sintetizada por Manuel
da Costa Pinto: "Subjetividade
como horizonte de representação,
pensamento por imagens e, como
consequência, oscilação constante
entre reflexão e escrita ficcional".
Abandonada a pretensão a uma
ontologia, o ensaísmo limita-se a
uma observação da experiência
humana fortemente marcada pelo
ponto de vista do observador. Recorrendo à narratividade e à construção de imagens, recusando os
conceitos abstratos, o ensaio se
configura como um gênero em
que "a produção de sentido e de
referentes é homóloga ao processo
de criação literária".
Não por acaso, o ensaio clássico
francês, que tem origem em Montaigne, surgiu no ocaso do Renascimento e floresceu no século 17,
numa espécie de interregno entre
o domínio da escolástica medieval
e o império da razão iluminista.
Em outras palavras: no hiato entre
as certezas da fé e as certezas da
ciência.
Em lugar dos sistemas fechados
de explicação do mundo, o ensaísmo introduz o pensamento em
movimento, e sua própria forma
literária reflete essa percepção do
fragmentário e do transitório.
É por essa vereda que Camus se
aventura, na contracorrente das
filosofias totalizantes, antecipando a operação de desmonte dos
grandes edifícios teóricos que caracterizaria a melhor produção intelectual da segunda metade do século.
Escrito com elegância, clareza e
um mal escondido talento literário, "Albert Camus - Um Elogio
do Ensaio", que surgiu da tese de
mestrado em teoria literária de seu
jovem autor, é um trabalho pleno
de lucidez e paixão sobre uma das
obras mais lúcidas e apaixonadas
de nosso tempo.
A OBRA
Albert Camus - Um Elogio
do Ensaio - Manuel da Costa
Pinto. Ateliê Editorial (r. Manoel
Pereira Leite, 15, CEP
06700-000, Cotia, SP, tel.
011/7922-9666). 199 págs. R$
23,00.
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