São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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NOVOS AUTORES

Elaboração da transparência

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

"Surtos Urbanos", livro de contos de Vera Albers, possui uma textura e uma transparência trabalhada que lembram a da seda: leveza, sutileza, abordagens indiretas, sugestões, suavidade.
Apesar de ser ainda um segundo livro (o primeiro é de 81), não há dúvidas de que inexiste, nele, qualquer traço de inocência autoral. Ao contrário: estamos diante de uma coletânea que expressa maturidade, conhecimento do ofício de elaborar ficção e, ainda, um quê de memorialística paulistana (num certo sentido, assumidamente "uspiana"), que só o acúmulo de muitos anos -ou uma experiência equivalente- pode proporcionar.
O tributo à tradição de uma família de figuras femininas ilustres é também um traço evidente, em particular na linhagem de Clarice Lispector e de Katherine Mansfield. Albers produz um intimismo feminino que não exclui os homens, mas lhes dá um tratamento claramente distanciado.
Os 18 contos aqui reunidos dividem-se, basicamente, em três tipos, conforme seus protagonistas: os da adolescência, os da maturidade (conturbada) e os de traço social/regionalista. É sem dúvida nos da segunda categoria que encontramos uma autora vigorosa, senhora de seu passado. Aqui estão os enredos mais interessantes do livro.
Em "Tentativas", por exemplo, Albers relata a estranha história de uma mulher que, do dia para a noite, mordida, como ela diz, "pelo demo da emulação & aventura", resolve trabalhar como corretora de imóveis e não é aceita pela imobiliária.
A mesma elegante esquisitice aparece no conto "Doutor Fortuna", um velho ginecologista com "inclinações" para a psicologia, com quem a narradora (mais uma vez o foco em primeira pessoa) se envolve de maneira inusitada.
Dá-se nos contos do primeiro tipo -os da adolescência-, porém, a presença de um estilo mais refinado, próximo, às vezes, de uma prosa poética, na qual o obscuro tem a função de fazer brotar o sonho do leitor. Aqui, as meninas-moças são comumente golpeadas, vítimas de sua situação transitória de vida. E talvez não seja por acaso que a narrativa seca de antes ceda lugar, agora, ao tom nebuloso. Pois não é a adolescência um tempo de trevas?
Leia este parágrafo de "Parque Dom Pedro": "Passavam-lhe pelos olhos cerrados os laivos cor-de-rosa dos lírios desfolhados (o pai teimava em cultivá-los, apesar das taturanas) e, pelo nariz, o perfume anêmico do jasmim celeste, que não tinha perfume".
Os últimos quatro contos -"Relato de Ismerina", "No Cocoruto da Serra", "Adrián León en América" e "A República" -dão a impressão de ser depoimentos, mais do que obra ficcional. Destoam do restante; cumprem seu papel, como certas "histórias reais", mas não trazem a riqueza autoral, literária, dos precedentes.
O melhor de Vera Albers está no trato do passado, numa espécie de jogo de tempo e visão, em que a autora monta o tabuleiro -assim escreve a narradora de "Anapla Kilala": "Depois dizem que a memória retém as imagens privilegiadas. Então, de mim ela zomba: dissipa a contingência em benefício do pretexto"- e o leitor se obriga a lançar os dados.



A OBRA

Surtos Urbanos - Vera Albers. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/816-6777). 96 págs. R$ 15,00.





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