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MADE IN USA
Relatório da ONU propõe como melhorar níveis de consumo da humanidade
Futuro chique, pobre e feliz
CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha, em Nova York
Desde 1990 o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas
publica regularmente um relatório
sob o título "Human Development Report"; o de 1998 (Oxford
University Press) é uma boa leitura de fim de ano. O relatório inventou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo o
qual os países podem ser comparados e classificados.
O índice é computado de forma
a levar em conta longevidade, nível de alfabetização e padrão de vida. Ele não leva em conta a divisão
per capita do PIB nem a renda média. A idéia é que o desenvolvimento é uma questão de qualidade
de vida: não é definido pela riqueza, nem mesmo se esta for distribuída de maneira equitativa.
Torna-se assim possível comparar a classificação dos diferentes
países segundo o PIB per capita e
segundo o índice de desenvolvimento. Descobre-se que, dos 174
países, 98 são mais desenvolvidos
do que ricos. Ou seja, sabem traduzir sua (eventualmente bem
modesta) prosperidade em melhorias na vida de seus cidadãos.
Outros 73, ao contrário, são mais
ricos do que desenvolvidos. O Brasil podia se dar pior: 62º colocado
na classificação em desenvolvimento, ele é quase tão desenvolvido quanto rico (ou pobre), com
apenas um ponto positivo de desenvolvimento acima de sua riqueza (é 63º em PIB per capita).
Previsivelmente, os regimes de
inspiração socialista manifestam
na comparação a sua nobreza: facilmente pobres, produzem um
desenvolvimento acima do que o
bolso pareceria permitir.
A coisa se verifica, aliás, em quase todos os países da ex-União Soviética. Com produto per capita
pobre ou miserável, eles se classificam em desenvolvimento sempre
acima de seus bolsos. Às vezes
muito acima. A própria Rússia está cinco pontos mais desenvolvida
do que rica (ou, deveríamos dizer,
pobre). Em suma, 70 anos de socialismo real, sacrificando princípios básicos de vida democrática e
entregando finalmente o país à
máfia, parecem apesar de tudo ter
deixado algum resto que não seja
barbárie. Resta saber se estes restos serão mantidos ou irão declinando nos próximos anos.
A separação entre riqueza e desenvolvimento manifesta, no relatório, a ambição de oferecer um
quadro fino e qualitativo, embora
numérico, de nosso mundo.
Neste sentido vai a novidade
deste ano, que é uma dupla medida da pobreza: Índice de Pobreza
Humana 1 e 2. O primeiro mede a
pobreza nos países em desenvolvimento levando em conta como variáveis a percentagem de pessoas
que morrem antes dos 40 anos, a
percentagem de adultos analfabetos e a privação econômica (falta
de acesso a serviços de saúde e
água encanada, número de crianças abaixo de cinco anos com peso
inferior à norma). O segundo índice mede a pobreza nos países industrializados, considerando que
a definição de privação varia segundo as condições socioeconômicas de uma comunidade. Neste
caso, computam-se as mortes antes dos 60 anos, a alfabetização
inadequada, a percentagem de
pessoas com uma renda inferior a
50% da média e um desemprego
superior a 12 meses.
Fato curioso, o relatório propõe
também dois índices de desenvolvimento relativo às relações entre
os gêneros -os quais medem a
posição das mulheres na sociedade. A coisa é meritória, mas levanta uma questão. Se a igualdade entre os gêneros é um fator de desenvolvimento, então também deveriam ser os níveis de integração racial, de tolerância religiosa, de liberdade de pensamento etc.
A própria idéia de desenvolvimento é ocidental e moderna. É
possível fazer a ginástica necessária para pensar e medir um "desenvolvimento" concreto, feito
de formas básicas de bem-estar,
sem levar em conta que normalmente nós (ocidentais e modernos) associamos desenvolvimento
não só com pão e aspirina, mas
também com democracia, liberdade etc. Graças a esta ginástica, o
relatório pode negligenciar, por
exemplo, o respeito ou não dos direitos humanos em sua classificação. Esta posição corresponde a
uma idéia, também aceitável, segundo a qual nossos ideais democráticos não têm valor universal.
Eles são próprios a uma época de
nossa cultura. E não temos por
que impô-los como elementos indispensáveis do desenvolvimento.
Muito bem: mas então por que
manter a igualdade entre os gêneros como variável? Sua proposta
não é também própria a esta época
de nossa cultura?
O relatório termina com uma série de recomendações para a ação
política. A proposta é de melhorar
as condições de vida, portanto os
níveis de consumo de mais de um
bilhão de pobres. Existe uma certa
sabedoria nesta perspectiva: uma
espécie de aceitação (resignada?)
da função do consumo como produtor ao mesmo tempo de coesão
e diferenciação social. Em suma,
foi-se a idéia de mudar o mundo
transformando as relações produtivas. Parece mais abordável e eficiente nesta altura modificar o
consumo.
O problema, em breve, é que fica
bem complicado propor e inventar modelos de consumo que sejam equitativos. Acontece que o
consumo se tornou tão importante justamente por ser o artifício
encarregado de produzir e instituir diferenças. A afluência seria
sem interesse se não houvesse algum tipo de pobreza (ou miséria).
Para o que serviria o consumo, se
não produzisse a inveja, que é a
mola (espera-se) de nossos progressos? Para que os modelos de
consumo mudassem, seria necessário vingar um novo estilo pelo
qual consumir pouco e igualitariamente se tornasse "cool". Não é
impossível. Afinal, algo disso já estava presente na contracultura dos
anos 60 e arrisca voltar.
O novo modelo poderia ser o Kerala. Não esqueçam este nome: sobre este pequeno Estado do sudoeste da Índia (de novo a Índia,
como nos anos 60) já existem quase 150 títulos disponíveis em língua inglesa. Assinalado por
Amartya Sen, Nobel de Economia
deste ano, o Kerala é o lugar idílico, onde o PIB per capita é de menos de US$ 1.000 (US$ 200 abaixo
da média indiana), mas a esperança de vida é de 72 anos (quase um
número de país industrializado),
fertilidade e mortalidade infantil
estão baixas etc. Tudo isso graças a
uma administração comunista
desde 1957. Distribuição, salário
mínimo, reforma agrária etc.
compensam uma antipatia do
grande capital que condena o Estado a um desemprego de 25%.
Para começar a se informar sobre um possível futuro onde o chique poderia ser pobre e feliz, e
também para não perder o novo
modelo pós-Cuba, pós-Vietnã,
pós-Iugoslávia etc., leiam sobre
Kerala. No mínimo, o artigo "Pobre, mas Próspero", de Akash
Apur, na revista "Atlantic
Monthly" de setembro deste ano.
Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta,
autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do
Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com
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