São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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MADE IN USA
Relatório da ONU propõe como melhorar níveis de consumo da humanidade
Futuro chique, pobre e feliz

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha, em Nova York

Desde 1990 o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas publica regularmente um relatório sob o título "Human Development Report"; o de 1998 (Oxford University Press) é uma boa leitura de fim de ano. O relatório inventou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo o qual os países podem ser comparados e classificados.
O índice é computado de forma a levar em conta longevidade, nível de alfabetização e padrão de vida. Ele não leva em conta a divisão per capita do PIB nem a renda média. A idéia é que o desenvolvimento é uma questão de qualidade de vida: não é definido pela riqueza, nem mesmo se esta for distribuída de maneira equitativa.
Torna-se assim possível comparar a classificação dos diferentes países segundo o PIB per capita e segundo o índice de desenvolvimento. Descobre-se que, dos 174 países, 98 são mais desenvolvidos do que ricos. Ou seja, sabem traduzir sua (eventualmente bem modesta) prosperidade em melhorias na vida de seus cidadãos. Outros 73, ao contrário, são mais ricos do que desenvolvidos. O Brasil podia se dar pior: 62º colocado na classificação em desenvolvimento, ele é quase tão desenvolvido quanto rico (ou pobre), com apenas um ponto positivo de desenvolvimento acima de sua riqueza (é 63º em PIB per capita).
Previsivelmente, os regimes de inspiração socialista manifestam na comparação a sua nobreza: facilmente pobres, produzem um desenvolvimento acima do que o bolso pareceria permitir.
A coisa se verifica, aliás, em quase todos os países da ex-União Soviética. Com produto per capita pobre ou miserável, eles se classificam em desenvolvimento sempre acima de seus bolsos. Às vezes muito acima. A própria Rússia está cinco pontos mais desenvolvida do que rica (ou, deveríamos dizer, pobre). Em suma, 70 anos de socialismo real, sacrificando princípios básicos de vida democrática e entregando finalmente o país à máfia, parecem apesar de tudo ter deixado algum resto que não seja barbárie. Resta saber se estes restos serão mantidos ou irão declinando nos próximos anos.
A separação entre riqueza e desenvolvimento manifesta, no relatório, a ambição de oferecer um quadro fino e qualitativo, embora numérico, de nosso mundo.
Neste sentido vai a novidade deste ano, que é uma dupla medida da pobreza: Índice de Pobreza Humana 1 e 2. O primeiro mede a pobreza nos países em desenvolvimento levando em conta como variáveis a percentagem de pessoas que morrem antes dos 40 anos, a percentagem de adultos analfabetos e a privação econômica (falta de acesso a serviços de saúde e água encanada, número de crianças abaixo de cinco anos com peso inferior à norma). O segundo índice mede a pobreza nos países industrializados, considerando que a definição de privação varia segundo as condições socioeconômicas de uma comunidade. Neste caso, computam-se as mortes antes dos 60 anos, a alfabetização inadequada, a percentagem de pessoas com uma renda inferior a 50% da média e um desemprego superior a 12 meses.
Fato curioso, o relatório propõe também dois índices de desenvolvimento relativo às relações entre os gêneros -os quais medem a posição das mulheres na sociedade. A coisa é meritória, mas levanta uma questão. Se a igualdade entre os gêneros é um fator de desenvolvimento, então também deveriam ser os níveis de integração racial, de tolerância religiosa, de liberdade de pensamento etc.
A própria idéia de desenvolvimento é ocidental e moderna. É possível fazer a ginástica necessária para pensar e medir um "desenvolvimento" concreto, feito de formas básicas de bem-estar, sem levar em conta que normalmente nós (ocidentais e modernos) associamos desenvolvimento não só com pão e aspirina, mas também com democracia, liberdade etc. Graças a esta ginástica, o relatório pode negligenciar, por exemplo, o respeito ou não dos direitos humanos em sua classificação. Esta posição corresponde a uma idéia, também aceitável, segundo a qual nossos ideais democráticos não têm valor universal. Eles são próprios a uma época de nossa cultura. E não temos por que impô-los como elementos indispensáveis do desenvolvimento.
Muito bem: mas então por que manter a igualdade entre os gêneros como variável? Sua proposta não é também própria a esta época de nossa cultura?
O relatório termina com uma série de recomendações para a ação política. A proposta é de melhorar as condições de vida, portanto os níveis de consumo de mais de um bilhão de pobres. Existe uma certa sabedoria nesta perspectiva: uma espécie de aceitação (resignada?) da função do consumo como produtor ao mesmo tempo de coesão e diferenciação social. Em suma, foi-se a idéia de mudar o mundo transformando as relações produtivas. Parece mais abordável e eficiente nesta altura modificar o consumo.
O problema, em breve, é que fica bem complicado propor e inventar modelos de consumo que sejam equitativos. Acontece que o consumo se tornou tão importante justamente por ser o artifício encarregado de produzir e instituir diferenças. A afluência seria sem interesse se não houvesse algum tipo de pobreza (ou miséria). Para o que serviria o consumo, se não produzisse a inveja, que é a mola (espera-se) de nossos progressos? Para que os modelos de consumo mudassem, seria necessário vingar um novo estilo pelo qual consumir pouco e igualitariamente se tornasse "cool". Não é impossível. Afinal, algo disso já estava presente na contracultura dos anos 60 e arrisca voltar.
O novo modelo poderia ser o Kerala. Não esqueçam este nome: sobre este pequeno Estado do sudoeste da Índia (de novo a Índia, como nos anos 60) já existem quase 150 títulos disponíveis em língua inglesa. Assinalado por Amartya Sen, Nobel de Economia deste ano, o Kerala é o lugar idílico, onde o PIB per capita é de menos de US$ 1.000 (US$ 200 abaixo da média indiana), mas a esperança de vida é de 72 anos (quase um número de país industrializado), fertilidade e mortalidade infantil estão baixas etc. Tudo isso graças a uma administração comunista desde 1957. Distribuição, salário mínimo, reforma agrária etc. compensam uma antipatia do grande capital que condena o Estado a um desemprego de 25%.
Para começar a se informar sobre um possível futuro onde o chique poderia ser pobre e feliz, e também para não perder o novo modelo pós-Cuba, pós-Vietnã, pós-Iugoslávia etc., leiam sobre Kerala. No mínimo, o artigo "Pobre, mas Próspero", de Akash Apur, na revista "Atlantic Monthly" de setembro deste ano.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com



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