São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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+3 questões Sobre rock

1. O rock de hoje vive do passado?
2. Ele sobreviverá à música eletrônica e à world music?
3. Como relacioná-lo à música popular?


Marcelo Nova
responde

1.
Eu diria que hoje ele vive de um passado. Um passado de 50 anos (para não falar de quando ele ainda não tinha sido batizado) que testemunhou o surgimento de uma música simples, de quatro ou cinco acordes, mas que, pelo talento de alguns e a genialidade de poucos, tem oferecido um espectro muito amplo e diversificado de estilos, indo do rockabilly ao grunge, do folk ao meta, do psicodélico ao punk. E essa contraposição de formas aparentemente distintas é que permitiu a sua evolução. Nem em seus sonhos mais selvagens Elvis Presley e Chuck Berry imaginaram que aquela música, que nos anos 50 servia para animar festinhas, desembocaria, por exemplo, no álbum "Time Out of Mind" (1997), de Bob Dylan, que contempla a proximidade da morte e a escassez do nosso tempo, com a densidade poética que, sempre peculiar a Dylan, parece ter se intensificado com o tempo.
2.
O rock tem sobrevivido durante 50 anos ao enorme contingente de incompetentes, aproveitadores, mercadores, comerciantes de mentalidade fenícia, músicos sem qualidade, compositores sem vocação, à voracidade e estultice da indústria do disco, à crítica imberbe e aos babacas de plantão. E tem seguido adiante graças àqueles que se sobrepõem à mediocridade, contrapondo-lhe criação, ousadia, talento, sugerindo outras hipóteses e contestando o que a maioria acredita. A música eletrônica, que vem sendo celebrada como o que há de mais "muderno", já era aceita quase 30 anos atrás pelo grupo alemão Kraftwerk, aliás com mais impacto e originalidade do que toda essa "sampleria" que grassa por aí.
Quanto à world music, disse-me um auto-intitulado expert tratar-se de música de pesquisa e laboratório. Bom, aí eu já não entendo, pois só faço laboratório quando mando minhas fezes para exame.
3.
O rock é música popular. No Brasil surgiram nos anos 80 os assim chamados grupos de rock brasileiro (a maioria era pop infantilóide, mas isso é outro papo) que, graças aos modismos patrocinados pela indústria fonográfica, tiveram seus anos de grande vendagem e glória antes de serem deletados pela lambada, que foi trocada pelo brega, que foi substituído pelo sertanejo, que foi escanteado pelo axé, que cedeu ao pagode, que deu para todo mundo e que deu no que deu. Fui atingido pelo bólido do "rock and roll" aos oito anos, quando meu pai me deu um disco de Little Richard. Não entendi uma só palavra, mas adorei mesmo assim. Logo, minha atração por ele foi instintiva, não intelectual, o que me livrou desde cedo da obrigação xenófoba de pôr sanfona, zabumba, bandolim, cavaquinho, cuíca e reco-reco na minha música, embora já tenha utilizado um ou outro desses instrumentos nas minhas canções.

Tom Zé
responde

1.
Um dia o fogo chama pela água e se lhe apresentam lágrimas.
É sobre o rock. Tento explicar: no verão, para o taoísmo, o órgão é o coração/, a cor é o vermelho/, a emoção é a alegria/, o elemento é o fogo/ e o próprio fogo gera a água/ para consumir-se e apagar-se.
Foi assim que eu me encontrei com o rock, esse fogo, essa alegria...
Flashback: em algum tempo remoto, os tambores bateram nas Áfricas. No mundo civilizado, Beethoven fazia a orquestra toda percutir repetidamente, como um tambor, no final de uma sinfonia, para afirmar a tonalidade. Depois, em 1913, Stravinsky pôs esse tambor beethoveniano em contratempos os mais inesperados e absurdos para a "Sagração da Primavera" -véspera do verão.
Um dia, em 1956, eu vi as fortes pancadas de Beethoven e Stravinsky desembocarem num violento verão e num enganador 4/4 que continha, no início de uma simples música popular, um 3/8, um 1/8, quiálteras e et céteras, todos contidos e camuflados no 4/4. Era fogo, alegria e verão.
Sentado no cinema Excelsior, na Bahia, eu assistia à introdução do filme "No Balanço das Horas". Bill Halley tocava "Rock around the Clock". Impossível não chorar. Impossível ver a prova cabal de que Newton tivesse razão sobre Copérnico e Ptolomeu, ver uma tese tão grande como aquela resumida numa canção, sem chorar.
Os blocos musicais que Beethoven usara em tempos fortes, transformando a orquestra num tambor primevo, Stravinsky os extremou em compassos irregulares e complexos. Agora, ali, em "Rock around the Clock", eram mais violentos por serem a base dos compassos de uma prosaica canção popular.
Bill Halley os colocava em contratempos -infernais para a cabeça dos músicos da época. Naquele momento, tive a exata sensação de que as forças estavam soltas, de que o grande bloco de massa que é a Terra não tinha nada para se apoiar a não ser a própria queda no espaço e o conjunto inseguro dos astros, todos viajando numa aparente desordem extremamente perigosa. Era, de uma só vez, verão, sangue, fogo, medo, lágrima e alegria. Era o rock.
Quando um gênero musical nasce, é assim.
2.
Sobreviverá, aleijado, à música eletrônica e à world music.
3.
Um dia ele se relacionou com a música popular como fogo. Hoje não pode nem ser chamado de água -elemento muito nobre.

Marcelo Nova
É cantor e compositor. Em março, lançará "Tijolo na Vidraça" (gravadora Som Livre), caixa com quatro CDs que faz a retrospectiva de sua carreira e inclui músicas inéditas.

Tom Zé
É cantor e compositor. Acaba de lançar o CD "Jogos de Armar -Faça Você Mesmo" (gravadora Trama), que traz, entre outras, a música inédita "A Chegada de Raul Seixas e Lampião no FMI".



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