São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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+ sociedade

Um dos mais importantes escritores de ficção científica vivos fala de suas expectativas em relação ao futuro

Arthur Clarke em 2001

da "Salon"

Inclinando-se para a frente em sua cadeira de rodas, o homem de 83 anos fala para o gravador, em tom pretensamente sério: "Testando, um, dois, três. Testando. Este não é Arthur C. Clarke, este é seu clone".
Como tantas vezes acontece no caso dessa lenda viva da ficção científica, é uma fantasia que bem pode se realizar nos anos vindouros. A empresa Encounter 2001, sediada em Houston, EUA, tem seis mechas de seu cabelo fino e grisalho e vai lançar o DNA de Clarke ao espaço.
"Um dia, alguma supercivilização pode encontrar essa relíquia da espécie desaparecida e eu talvez exista em outro tempo", cogita ele; "te cuida, Stephen King".
Clarke é o romancista cuja visão inspirou a obra-prima de Stanley Kubrick, "2001 - Uma Odisséia no Espaço", e fez dela um sinônimo para os nossos maiores medos e esperanças para o futuro.
Trinta e três anos depois, à medida que a humanidade caminha para o novo milênio, ele acredita que sua visão de alienígenas, asteróides, computadores paranóicos e homens em Marte pode estar perto de se realizar.
Ainda que se locomova em uma cadeira de rodas devido a complicações advindas da poliomielite que contraiu no Sri Lanka nos anos 60, Clarke parece mais um soberano do que um enfermo, ao receber um visitante em sua casa, na cidade de Colombo, alguns dias antes da chegada de 2001. Descalço e vestindo uma camisa havaiana azul e sarongue cor de café, ele se mesclou à moda casual de sua terra adotiva no sul da Ásia.
Com seu adorado chihuahua caolho, Pepsi, aos seus pés, Arthur Charles Clarke é o perfeito adivinho-cientista-filósofo, assediado por jornalistas que querem suas reflexões sobre 2001 e feliz em atendê-los. 2001 pertence a ele e a Kubrick, já morto, da mesma forma que 1984 pertence a George Orwell, e ele sabe disso.
É difícil indicar outro autor cujos contos, ensaios e mais de 50 romances tenham combinado de maneira tão perfeita a fantasia futurista e a solidez da ciência, tecendo histórias aparentemente implausíveis sobre o espaço exterior que muitas vezes se revelaram notavelmente prescientes.
Em um artigo publicado pela revista "Wireless World", em 1945, ele imaginou que os satélites um dia revolucionariam as comunicações mundiais, retransmitindo mensagens ao mundo inteiro instantaneamente. A idéia era tão convincente que, quando os primeiros satélites foram lançados, nos anos 60, eles não puderam ser patenteados.
A obra de Clarke também previu os telefones celulares, estações espaciais, a ida do homem à Lua e a Internet. Não existe um Hilton na Lua, como em "2001", mas há um Hilton em Hanói (Vietnã), o que mostra o quanto é difícil prever o futuro. Surgindo no auge da Guerra Fria e do envolvimento norte-americano no Vietnã, o romance previa algo de igualmente improvável: astronautas russos e norte-americanos se comportando de maneira amistosa uns para com os outros.
Como Clarke o expressou em uma frase famosa: "Quando um estadista distinto, porém idoso, declara que alguma coisa é possível, ele está, com quase toda a certeza, certo. Quando declara que ela é impossível, está muito provavelmente errado".
Clarke escreveu "2001" em uma máquina de escrever. Agora, armado de meia dúzia de computadores, ele passa horas a cada dia se mantendo em contato com amigos, colegas e fãs por e-mail.
"Não sei onde metade dos meus amigos está, fisicamente, no planeta, e isso realmente não importa", diz ele. Sir Arthur O filho de fazendeiro inglês, que ainda mantém o sotaque de Somerset, agora é sir Arthur, tendo sido sagrado cavaleiro em 2000 por sua contribuição à literatura.
Ele se viciou em ficção científica depois de comprar suas primeiras cópias de uma revista norte-americana barata, "Amazing Stories", na Woolworth. Ele devorava os trabalhos dos escritores ingleses H.G. Wells e Olaf Stapledon e começou a escrever na adolescência para a revista de sua escola. Clarke a seguir foi trabalhar como escriturário no Departamento do Erário e Auditoria de Sua Majestade, em Londres, onde se integrou à Sociedade Interplanetária Britânica e escreveu seus primeiros artigos científicos e contos sobre viagens espaciais.
Servindo na Real Força Aérea britânica durante a Segunda Guerra Mundial, Clarke se tornou oficial especializado em radar e aprendeu matemática e eletrônica sozinho, concebendo suas primeiras teorias sobre satélites geoestacionários.
Depois da guerra, ele se formou em física e matemática no King's College, de Londres. Com a publicação de "The Exploration of Space", um trabalho de não-ficção, em 1951, e do romance "Childhood"s End" (Fim da Infância, ed. Amereon, EUA), hoje considerado um clássico, em 1953, a carreira de Clarke disparou.
Stanley Kubrick estava interessado em "A Sentinela", um conto escrito por Clarke em 1948 sobre a descoberta de um objeto alienígena na Lua -uma espécie de alarme contra ladrões, esperando para ser acionado pela chegada da humanidade. Disso emergiu o roteiro conjunto que escreveram para "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Clarke escreveu, simultaneamente, um romance homônimo, detalhando mais a história sobre uma tribo de macacos, um monólito negro misterioso, uma colônia na Lua, uma missão aos limites do Sistema Solar e um computador diabólico e de fala macia conhecido como Hal 9000.
Hal decide que, para cumprir a missão da nave, ele precisa impedir sua própria morte. Assim, ele calmamente apaga os astronautas um a um quando descobre que eles pretendem desligá-lo. Isso e a lobotomia que o astronauta Dave Bowman realiza no computador são duas das sequências mais memoráveis desse aclamado filme.

Marte ou Lua? Sinto que deveríamos nos estabelecer na Lua e cometer nossos erros, porque ela fica apenas a dois dias de distância, diz Clarke; se algo der errado em Marte, a viagem demora nove meses

O filme e o romance saíram um ano antes que Neil Armstrong desse aquele salto gigantesco para a humanidade, em 1969. Anos antes, Clarke previra que a chegada do homem à Lua se daria por volta de 1970.

Colônia espacial Ele acredita que uma colônia espacial na Lua ou em Marte não seja uma viagem. É apenas de uma questão de dinheiro e de onde começar.
"Marte ou a Lua? Sinto que deveríamos nos estabelecer na Lua e cometer nossos erros, porque ela fica apenas a dois dias de distância", diz Clarke. "Se algo der errado em Marte, a viagem demora nove meses."
Clarke também acredita que computadores com a consciência de Hal não estão muito distantes.
"Há um sentimento generalizado de que a inteligência dos computadores excederá a dos seres humanos em 2010 ou 2020", diz Clarke. "A próxima questão é saber quando veremos os primeiros computadores conscientes. Quando o primeiro computador dirá "penso, logo existo'?"
Isso deveria assustar os simples mortais? Sim, diz Clarke, se os computadores desenvolverem a capacidade de se defender contra a desativação.
"Se algum dia houver uma guerra entre homem e máquina", diz, "posso adivinhar que lado a começará".
Ele levanta a sobrancelha e aponta para si mesmo.
Embora "2001" lidasse com a inteligência artificial em estado de descontrole, Clarke jamais aderiu ao coro catastrófico sobre o chamado bug do milênio. Ele dá às pessoas comuns o crédito por terem tomado as precauções necessárias.
Depois de "2001", ele escreveu "2010 -Odisséia Dois", e "2061 - Odisséia Três". Aos 80 anos, veio "3001 - A Odisséia Final". Haverá um "4001 - A Odisséia Completamente Final"? "Não, não. Não tenho mais a energia ou a atenção necessária para completar coisa alguma dessa dimensão", insiste Clarke. "Tenho projetos demais em minha agenda, de qualquer maneira."
Kubrick morreu em março de 1999, aos 70 anos, mas Clarke mantém um ritmo que poderia parecer ameaçador para um octogenário que é incapaz de caminhar sem ajuda e precisa fazer pausas para respirar.
Ao longo dos próximos seis meses, documentários de televisão, prêmios, palestras, inaugurações e dezenas de entrevistas estão marcados. E ele ainda encontra energia para jogar pingue-pongue quase toda a noite no Clube de Natação de Colombo. "Apoiando-me na mesa, consigo derrotar a maioria deles", diz.
Clarke se apaixonou por essa ilha tropical ao largo da costa sul da Índia durante uma expedição de mergulho em 1956 e nunca mais a abandonou.
A vida entre os budistas não o tornou mais inclinado à reencarnação.
Um dos temas que permeiam os romances de Clarke é a evolução do espírito humano e o desejo inato do homem de expandir seu alcance. Mas ele não vê a religião como resposta. Clarke classifica a religião como uma "doença de infância", e em "3001" ela se tornou um tabu, um produto da ignorância inicial do homem que provocou muito ódio e derramamento de sangue.
"Uma das minhas objeções à religião é que ela inibe a busca por Deus, se existe um Deus", diz. "Tenho a mente aberta sobre o assunto, essa discussão de se existe ou não algo por trás do Universo. E simpatizo bastante com as visões de que poderia haver."

Vida inteligente Clarke diz que sua última ambição é determinar se existe vida inteligente lá fora. "Parece realmente incrível que não haja", diz ele. "Ninguém sabe, mas creio que a descoberta acontecerá nesse século, à medida que a nossa tecnologia se desenvolver. À medida que os nossos instrumentos se tornarem mais e mais sensíveis, poderemos detectar planetas com oxigênio."
Infelizmente, a descoberta talvez não venha durante a vida dele, ainda que Clarke tenha dito certa feita ao âncora de telejornal Walter Cronkite, quando narraram juntos a alunissagem da Apolo 11, há 31 anos, que ele tinha "a firme intenção" de ir à Lua antes de morrer.
Ele se arrepende de nunca tê-lo feito? "Sim, mas sinto que já fui para o espaço tantas vezes, agora", diz. Clarke dá de ombros e sorri. "Sabe, estive lá, já vi tudo." Boa parte do trabalho dele trata da imortalidade e do ímpeto humano de propagação e sobrevivência.
No entanto Clarke, casado e divorciado muito tempo atrás, diz que ele não se arrepende de não ter filhos para perpetuar seu espírito ou genes.
"Tive toda a diversão e nenhuma das responsabilidades", diz ele, se referindo às três jovens cujo crescimento acompanhou. São filhas de seu sócio de negócios no Sri Lanka e da mulher australiana deste, que moram com ele em sua mansão de dois andares em Colombo e cuidam de sua saúde e da escola de mergulho que dirigem juntos.
"Esses são meus filhos também, creio", diz Clarke apontando para suas estantes lotadas de centenas de edições de "2001 -Uma Odisséia no Espaço", em dezenas de idiomas. Para não falar de suas seis mechas de cabelo.

Tradução de Paulo Migliacci.


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