São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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A pior das circunstâncias

Em virtude desse "realismo" extremo, "The Worst-Case Scenario" é um livro ocidental por excelência; sua contrapartida oriental é o "chindogu", uma façanha espiritual do Japão, a arte de inventar objetos sublimes na acepção kantiana

Slavoj Zizek

Quando meu filho era pequeno, o objeto pelo qual mais tinha carinho era uma "faca de sobrevivência" cujo cabo continha uma bússola, um saquinho de pó para desinfetar água, um anzol e uma linha de pescar, além de outros itens análogos totalmente inúteis em nossa realidade social, mas perfeitamente adequados à fantasia sobrevivencialista de se encontrar sozinho na natureza selvagem. É essa mesma fantasia que talvez forneça a pista do sucesso do surpreendente best seller de Joshua Piven e David Borgenicht, "The Worst-Case Scenario Survival Handbook" (Manual de Sobrevivência na Pior das Circunstâncias, Chronicle Books, EUA).
Basta mencionar dois exemplos extremos: que fazer se um jacaré está com os dentes trincados em um de seus membros? (Resposta: estapeie-o ou esmurre-o nas ventas, porque jacarés reagem automaticamente a tanto abrindo a mandíbula.) Que fazer se topar com um leão que ameaça atacá-lo? (Resposta: tente parecer maior do que é abrindo bem o seu casaco.) A graça do livro, portanto, consiste na discrepância entre seu conteúdo enunciado e sua posição de enunciação: as situações que descreve são efetivamente sérias e as soluções, corretas -o único problema é: por que afinal o autor está nos dizendo tudo isso. Quem precisa desses conselhos?

Sobrevivencialismo A ironia subjacente é que, em nossa competitiva sociedade individualista, os conselhos mais inúteis são aqueles referentes à sobrevivência em situações físicas extremas -o que efetivamente se precisa é do exato contrário, o tipo de livros "Dale Carnegie", que nos dizem como persuadir (manipular) os outros: as situações que figuram no "The Worst-Case Scenario" carecem de qualquer dimensão simbólica, reduzem-nos a objeto -puro sobrevivencialismo. Em suma, "The Worst-Case Scenario" virou um best seller pela mesma razão que "The Perfect Storm" ("A Tormenta", Ediouro), de Sebastian Junger, virou um best seller, a história (e o filme, "Mar em Fúria", do diretor Wolfgang Petersen, de 2000) sobre a luta pela sobrevivência num barco pesqueiro apanhado na "tempestade do século", na costa oriental do Canadá em 1991: ambos encenam a fantasia do embate com uma ameaça natural em que a dimensão sociossimbólica é posta entre parênteses.
De certo modo, "A Tormenta" fornece até o secreto pano de fundo utópico de "The Worst-Case Scenario": é somente em tais situações extremas que uma autêntica comunidade intersubjetiva, unida pela solidariedade, pode emergir. Não esqueçamos que "A Tormenta" é, em última análise, um livro sobre a solidariedade de uma pequena coletividade operária! O apelo humorístico de "The Worst-Case Scenario" pode ser lido, pois, como um testemunho de nossa cabal alienação da natureza, exemplificada pela escassez de contato com os perigos da "vida real".
Todos conhecemos a usual crítica pragmático-utilitária à educação humanista abstrata: quem precisa de filosofia, citações em latim, literatura clássica? Melhor seria aprender a agir e a produzir na vida real... Ora, em "The Worst-Case Scenario" recebemos tais lições de vida real, com o resultado de que elas se parecem, curiosamente, com a inútil educação humanista clássica. Lembram-se das proverbiais cenas de adestramento de jovens alunos, o tédio mortal que lhes é infundido fazendo com que repitam mecanicamente uma fórmula qualquer, como a declinação dos verbos latinos?
Pois a contrapartida disso, no "The Worst-Case Scenario", seria forçar as crianças pequenas na escola primária a aprender de cor as respostas aos apuros descritos nesse livro, fazendo-os repetir após o professor: "Quando o jacaré morde sua perna, você lhe dá um murro no nariz! Quando você se defronta com um leão, abra bem o casaco!".
Em virtude desse "realismo" extremo, "The Worst-Case Scenario" é um livro ocidental por excelência; sua contrapartida oriental é o "chindogu", discutivelmente a maior façanha espiritual do Japão nas últimas décadas, a arte de inventar objetos que são sublimes na estrita acepção kantiana -praticamente inúteis em razão de sua excessiva utilidade (digamos, óculos dotados de minilimpadores de pára-brisa elétricos, de modo que sua visão permanecerá nítida mesmo se tiver de andar na chuva sem guarda-chuva; manteiga contida no bastão de batom, de modo que se pode carregá-la de cima para baixo e espalhá-la sem uso de faca). Ou seja, a fim de ser reconhecidos, os objetos "chindogu" têm de preencher dois requisitos básicos: há de ser possível construí-los realmente e eles têm de funcionar; simultaneamente, não devem ser "práticos", isto é, não seria factível lançá-los no mercado.
A comparação entre "The Worst-Case Scenario Survival Handbook" e o "chindogu" nos oferece uma percepção única da diferença entre o sublime oriental e o ocidental, uma percepção em muito superior aos tratados pseudofilosóficos da nova era. Em ambos os casos, o efeito do sublime reside no modo em que a inutilidade do produto é resultado da própria abordagem extremamente "realista" e pragmática.
Contudo, no caso do Ocidente, temos conselhos realistas, simples, para problemas (situações) que a maioria de nós jamais encontrará (quem de nós terá realmente de encarar sozinho um leão faminto?), ao passo que, no caso do Oriente, temos soluções complicadas, nada práticas, para os problemas que todos nós efetivamente encontramos (quem de nós não foi pego na chuva?).

Uma terceira via O sublime ocidental oferece uma solução prática para um problema que não surge, ao passo que o sublime oriental oferece uma solução inútil para um problema real comum. O lema subjacente ao sublime oriental é: "Para que simplificar, se podemos complicar?" -já não será discernível o princípio do "chindogu" naquilo que parece aos olhos ocidentais como a forma "pouco prática", canhestra, das colheres japonesas? O lema subjacente ao sublime ocidental é, pelo contrário: "Se os problemas não se ajustam ao modo como preferimos solucioná-los, que mudem os problemas, não o modo como costumamos solucioná-los!" -não será esse princípio discernível no sagrado princípio da burocracia, que precisa inventar problemas para justificar sua existência, que serve para solucioná-los?
Estamos então condenados a esse antagonismo entre Oriente e Ocidente? Talvez haja uma terceira via para gerar o efeito do sublime: elaborar respostas realistas/práticas para problemas que são não apenas raros, mas positivamente imaginários, espúrios. Digamos, escrever um livro "prático" sobre como reconhecer e combater vampiros, lobisomens, almas penadas e monstros similares, escrito de modo totalmente utilitário, terra-a-terra: como reconhecer um vampiro (ele evita o alho e a cruz; não é capaz de atravessar uma ponte à luz do dia...); como matá-lo (cravando uma estaca de madeira em seu peito durante o dia, enquanto ele dorme...).
Tal livro seria aceitável no Oriente assim como no Ocidente: não partilhamos a mesma realidade enquanto vivemos ilusões diversas; pelo contrário, vivemos em realidades sociais diversas enquanto partilhamos as mesmas ilusões.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor de cultura popular e de teoria lacaniana no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores" do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.





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