São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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Colisões cotidianas da poesia

Heitor Ferraz
especial para a Folha

Antes de morrer, o poeta italiano Eugenio Montale (1896-1981) deixou com sua amiga e musa Annalisa Cima dez envelopes, cada um contendo seis poemas manuscritos. Os envelopes deveriam ser abertos anualmente e o seu conteúdo publicado em pequenas doses. Entre eles, havia um outro, com mais 18 poemas. No total, 84 inéditos de um dos mais importantes poetas da Itália no século 20. Em 1996, centenário de nascimento de Montale, o conjunto foi reunido no livro "Diário Póstumo". Era uma obra poética que testemunhava entre outras coisas sua amizade com Annalisa, uma jovem poeta e artista plástica que ele conhecera em 1968 quando tinha 72 anos, e ela, 27. Esse delicado jogo empreendido por Montale chega agora ao Brasil, em bem cuidada tradução do poeta Ivo Barroso, tradutor de Rimbaud, Breton e de muitos outros escritores.
Sobre a origem dos poemas, Barroso conta na introdução do livro que Montale os concebeu "em casa de amigos, nas férias de verão passadas em Forte dei Marmi, de seus passeios e conversas". Foram "escritos ao acaso, às vezes no verso de envelopes ou de cartões-postais, às vezes em guardanapos de papel ou cardápios de restaurantes, enfim, em toda espécie de suporte gráfico que estivesse ao seu alcance no momento da composição". Essa simples informação biográfica é bastante importante para entender a poética empreendida por Montale nesse "Diário Póstumo". Ela aponta para uma poesia marcada pela experiência do presente, pelo registro de uma cena que acabou de acontecer ou, como ele mesmo escreveu num dos poemas, pelas "colisões cotidianas".
Alfredo Bosi, num ensaio dedicado ao poema "A Enguia", de Montale (incluído no livro "Céu, Inferno", Ed. Ática), diz que toda grande poesia "mergulha raízes na intuição da matéria e do tempo". Nesses poemas póstumos, essa característica de Montale aparece na sua frequente reflexão sobre a situação do homem no mundo moderno, porém ela aqui surge mediada pela sua relação afetuosa com Annalisa, que ora funciona como uma filha para ele, ora como musa. Dessa forma, os textos ganham um traço biográfico e circunstancial, algo que já esteve presente na grande poesia de Montale publicada em vida, como no seu primeiro livro, "Ossi di Seppia" (Ossos de Lula), de 1925 (alguns poemas desse livro podem ser lidos, em português, na antologia "Poesias", traduzida por Geraldo Holanda Cavalcanti e editada pela Record). O afeto pela jovem poeta revela-se nos diversos temas tratados por Montale e pelo tom entre irônico e tranquilo empregado em cada poema.

Armazém de experiências Nesse "diário", no qual a liberdade de expressão é extremamente necessária, Montale vai colecionando imagens cotidianas, desde o efeito da luz dos cabelos de Annalisa a cenas de um mundo "imerso na imundície". A voz do poeta chega timbrada pelo diálogo, como se ele mantivesse uma conversa por escrito com Annalisa e com seus leitores. Essa maneira de compor faz com que o leitor participe mais intimamente das questões que afligiam Montale em sua velhice, mesmo que surjam aqui e ali algumas referências que poderiam ser obscuras, de uma história extremamente pessoal (referências, porém, elucidadas pelas notas preparadas pelo editor italiano e também pelo tradutor brasileiro, que teve oportunidade de dirimir dúvidas com a própria inspiradora do poeta).
De certa maneira, essa proximidade faz com que o livro ganhe em calor. É uma voz mais velha, como um "armazém" (expressão que o poeta gostava de utilizar) de experiências que transitam livremente do passado para o presente sem que umas sufoquem as outras. Montale parece viver plenamente o presente, sem que o passado lhe chegue como algo estanque e que interrompa a circulação de novas experiências. Nesse ponto, é um livro de alguém que está no fim da vida, que percebe perplexo a falência do mundo moderno ("Tudo agora ruiu. Até o prodígio/ se esfarela. Os olhos estão cansados"), mas que não abre mão de uma atitude crítica e combativa, evitando o conformismo.
O primeiro poema do livro testemunha o momento em que Montale conheceu Annalisa. "Se a mosca te houvesse visto/ uma só vez que fosse/ quanto amor te teria/ dedicado" ("mosca", diz a nota, "era o apelido que Montale dava a Drusilla Tanzi, judia triestina que foi sua companheira a partir de 1938 e com quem se casou em 1963, pouco antes da morte desta"). Para ele, as recordações não surgem presentificadas, como uma nostalgia de tempos felizes, mas "conservadas/ e jamais consumidas", como escreve no poema "King of the Bay". Há uma sabedoria em preservá-las sem que elas virem uma espécie de âncora que o impeça de seguir o fluxo da vida. No poema "No Ano 2000", Montale, por exemplo, fala do computador, "que irá substituir a pena do poeta". E diz: "De minha parte, não sabendo/ usá-lo, me contentarei com os arquivos/ que se refiram às recordações/ para depois reuni-los ao acaso".
"Diário Póstumo" é um livro extremamente vivo, com uma poesia que se elabora em torno de reflexões líricas, nascidas do contato direto com os acontecimentos. Até mesmo o Nobel de Literatura, que Montale recebeu em 1975, é tema de uma dessas suas anotações poéticas. Ele, que dizia que o prêmio deveria ser recusado, não o recusou quando foi escolhido. E para sua "musa" se justificou dizendo: "Não esperes/ um gesto de coragem de um velhote". Mas, em outro poema ("Apenas um Vício"), ele arremata a idéia: "Ser poeta não é um título de glória./ Apenas um vício natural".


Diário Póstumo
208 págs., R$ 28,00
de Eugenio Montale. Trad. de Ivo Barroso. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 585-2000).



Heitor Ferraz é jornalista e poeta, autor de "Resumo do Dia" (Ateliê Editorial) e "A Mesma Noite" (7 Letras).


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