São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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História de uma paranóia

Luis Bueno
especial para a Folha

Quem toma nas mãos a primeira edição do romance "O Agressor", de Rosário Fusco (1910-1977), saída em 1943, se depara com uma lista de obras que o autor pretendia ainda publicar. Entre elas se encontra a "História Subterrânea da Literatura Brasileira", um estudo sobre os esquecidos da nossa história literária.
Se agora, quando o romance é relançado, alguém se dispusesse a fazer uma obra desse tipo, teria que incluir um capítulo sobre o próprio Rosário Fusco. E justo ele, que entrou para a história da literatura brasileira ainda adolescente, como a alma de uma das mais importantes revistas modernistas, a "Verde", editada entre 1927 e 1929 na cidade mineira de Cataguases.
Nesse seu início de carreira literária, ele era poeta e eficaz agitador cultural, capaz de atrair para a revista colaborações do primeiro time do modernismo brasileiro e até de outros países. Na década de 30, já vivendo no Rio de Janeiro, dedicou-se à crítica e, se foi o conservador que encontrou uma ligação duvidosa entre a riqueza da literatura brasileira daqueles anos e a atuação política de Getúlio Vargas, foi também o ousado que apontou certos limites da obra de José Lins do Rego, o grande romancista brasileiro aos olhos da época, emitindo um juízo que posteriormente vários outros críticos acabariam confirmando.
Somente na década de 40 Rosário Fusco se encaminharia para o romance, que se tornaria sua principal forma de expressão. "O Agressor" é sua estréia nesse gênero e, pode-se dizer, conta a história de uma paranóia. David, guarda-livros de uma loja de chapéus no Rio de Janeiro, vê-se perseguido, vítima de uma enorme conspiração que envolveria, entre outros, seu patrão, seus companheiros de pensão e os moradores de um prédio vizinho. Uma hora ouve misteriosos miados de gato, que não sabe ao certo se não seriam na verdade gemidos de gente, outra se encontra com corretores de seguro que lhe parecem policiais. É um clima em que até mesmo as cinco velas colocadas sobre um bolo de aniversário se convertem em um enigma que leva David a inquirir várias pessoas até se dar conta de que cada uma poderia corresponder a nove anos: como ele tem 45 anos, ficaria provado que as velas não só tinham um significado específico como diziam respeito diretamente a ele.
Um dos efeitos dessa paranóia é criar um estranho ambiente urbano. O Rio é ao mesmo tempo a grande cidade em que ninguém se conhece e o lugar em que todos os rostos são familiares, são a face do perseguidor, da ameaça que se encontra nos lugares mais conhecidos. O telefone esconde o rosto de quem fala e pode se converter sem dificuldade num veículo de comunicação com criaturas que já não pertencem a este mundo. Tudo pode ser uma outra coisa, muito mais grave e importante do que aparenta ser.
Antonio Candido apontou com muita precisão o quanto o romance de Rosário Fusco deve a "O Processo", de Franz Kafka (1883-1924). Há, no entanto, uma diferença fundamental entre os dois livros que garante para "O Agressor" um evidente espírito de experimentação. Kafka prefere uma prosa que busca a neutralidade, direta, impessoal, vinda de um narrador quase transparente, que põe cara a cara o leitor e o que é contado. No livro do escritor mineiro, o descompasso que existe entre o personagem principal e a realidade que o rodeia é intensificado por uma discreta participação do narrador. Ao mesmo tempo em que acompanha o olhar de seu personagem principal, vai fugindo dele, aqui e ali, com o uso de certas expressões em itálico e com a revelação de algum elemento que está além desse olhar. Esse procedimento cria uma espécie de dissonância que atravessa o livro todo, incomodando e, ao mesmo tempo, intrigando o leitor.
Assim, o olhar de David acaba se constituindo num elemento desorganizador que vai contaminando de dúvida toda a narrativa, de tal forma que o leitor tem diante de si uma história linear que, filtrada pela paranóia do guarda-livros, vai sendo despedaçada e reconstruída todo o tempo. O aspecto fragmentário que o livro tem acaba sendo, ele também, mera aparência. A leitura passa a ser aqui um contínuo e desafiador exercício de montagem de uma série de acontecimentos banais, cotidianos, que ganham subitamente caráter de fatos decisivos. Tudo se encaminha para um final igualmente banal, a agressão sugerida no título, mas que, por resultar de um complexo acúmulo de enganos e vaivéns, se converte num grande acontecimento. Num tempo como o nosso, em que a violência virou prato trivial, tanto na vida social quanto na ficção, a ponto de nem incomodar mais muita gente, "O Agressor" ganha em significado. O ato de agressão que encerra o livro arranca e expõe todo o horror que há na prática da violência, mesmo quando ela parece sem importância, quando parece até justificável dadas as circunstâncias em que ocorre.
Depois do verdadeiro boom que o romance tinha vivido na década de 30, os primeiros anos da década de 40 indicavam uma triste calmaria. A partir de 1943, no entanto, lançamentos fundamentais renovam o romance brasileiro -é quando surge Clarice Lispector, por exemplo. "O Agressor" teve seu papel nesse momento rico em que nossa ficção procurava novos rumos. Por sua trama montada com a habilidade de um mestre e conduzida de forma marcadamente pessoal, só fez confirmar o elogio que, em 1940, Mário de Andrade fez a Rosário Fusco quando disse que ele "conservou a posse das suas asas, esse primeiro e primordial respeito da inteligência". E conservou-a mesmo no subterrâneo.



O Agressor
158 págs., R$ 17,00
de Rosário Fusco. Ed. Ao Livro Técnico (r. Sá Freire, 40, CEP 20930-430, RJ, 0/xx/21/ 580-1168).





Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.



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