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Um bárbaro no palácio
O BEST-SELLER DO TERROR FALA DE SEUS NOVOS LIVROS, DE SUA INSERÇÃO NO ESTABLISHMENT LITERÁRIO, FAZ CRÍTICAS A STANLEY KUBRICK E CONTA POR QUE ESCREVE TANTAS HISTÓRIAS COM CRIANÇAS
CHRISTOPHER LEHMANN-HAUPT
NATHANIEL RICH
Stephen King começou
esta entrevista no verão de 2001, dois anos
depois de ter sido
atingido por um furgão quando caminhava perto
de sua casa em Center Lovell,
no Maine (EUA). Ele teve sorte
de sobreviver ao acidente, em
que sofreu lacerações no couro
cabeludo, fraturas na perna e
no quadril direitos, e teve o
pulmão direito perfurado.
Quase três quilos de metal implantados em seu corpo durante a cirurgia inicial foram removidos pouco antes de o escritor conceder a entrevista, e
ele ainda sofria dores constantes.
Uma segunda sessão foi conduzida no início de 2006, em
sua residência de inverno na
Flórida, com King sentado nos
degraus à frente da casa.
Stephen King, 59, nasceu em
Portland, Maine. Seu primeiro
conto publicado, "I Was a Teenage Grave Robber", [Fui um
Ladrão de Sepulturas Juvenil]
saiu em 1965 num fanzine chamado "Comics Review".
Durante vários anos King se
esforçou para sustentar sua família jovem, lavando roupas de
cama de um motel numa lavanderia, lecionando inglês num
colégio e, de vez em quando,
vendendo contos a revistas
masculinas. Então, em 1974,
publicou "Carrie, a Estranha",
que em pouco tempo virou
best-seller. Desde então, o autor já vendeu mais de 300 milhões de livros.
Além de 43 romances, King
escreveu até hoje oito coletâneas de contos, 11 roteiros e
dois livros sobre a arte de escrever, e, com Stewart O'Nan, é
co-autor de "Faithful" [Público
Fiel], um relato do dia-a-dia da
temporada do Red Sox no campeonato de 2004. Praticamente todos os seus romances e a
maioria de seus contos foram
adaptados para o cinema ou a
TV. Embora tenha sido desprezado pelos críticos durante a
maior parte de sua carreira, há
pouco o autor foi escolhido para fazer a edição 2007 da "Best
American Short Stories" [compilação anual de contos dos
EUA, da Houghton Mifflin].
PERGUNTA - Que idade o sr. tinha
quando começou a escrever?
STEPHEN KING - Acredite se quiser, eu tinha 6 ou 7 anos. Copiava imagens de HQs, compondo
minhas próprias histórias. Me
lembro de faltar à escola porque estava com amidalite e ficar em casa, na cama, escrevendo. O cinema também foi uma
grande influência. Me recordo
de minha mãe me levar ao Radio City Music Hall para ver
"Bambi". O tamanho daquele
lugar, o incêndio na floresta no
filme -aquilo me deixou uma
impressão profunda. Quando
comecei, tendia a escrever em
imagens, porque isso era tudo o
que eu conhecia na época.
PERGUNTA - Quando o sr. começou
a ler ficção adulta?
KING - Eu devia ter 12 anos e
estudava numa escola de uma
sala só, na rua de casa. Não havia biblioteca na cidade, mas
toda semana o Estado mandava
uma grande perua verde, conhecida como "livromóvel".
Até então, tudo o que eu tinha lido eram as histórias sobre
Nancy Drew, os livros sobre os
Hardy Boys [ambas coleções
juvenis de mistério] e coisas do
gênero. Os primeiros livros foram os de Ed McBain sobre o
87º Distrito Policial. No primeiro, os policiais vão interrogar uma mulher num cortiço, e
ela está parada ali, de combinação. Os tiras a mandam vestir
alguma roupa, e ela segura o
seio através da combinação,
aperta na direção deles e fala:
"Na sua cara, "tira'!". Eu pensei:
"Uau!". Alguma coisa fez um
clique na minha cabeça. Pensei:
"Isso é real, poderia acontecer
de verdade". Foi o fim de toda a
ficção juvenil para mim.
PERGUNTA - Mas o sr. não leu exclusivamente ficção popular.
KING - Lia livros de vários tipos. Li "O Chamado da Floresta" e "O Lobo do Mar" [livros
juvenis de Jack London] em
uma semana, "Peyton Place"
[de Grace Metalious] na semana seguinte, e, uma semana depois, "O Homem no Terno de
Flanela Cinza" [de Sloan Wilson]. Qualquer coisa que viesse
à minha mente ou que chegasse
às minhas mãos eu lia. Quando
li "O Lobo do Mar", não entendi
que era a crítica de Jack London a Nietzsche, e, quando li
"McTeague" [de Frank Norris],
eu não sabia que isso era naturalismo. Mas eu compreendi os
livros em outro nível.
PERGUNTA - Em "On Writing" [Sobre a Escrita], o sr. menciona que a
idéia de seu primeiro romance, "Carrie", surgiu quando fez a conexão
entre dois temas não interligados:
crueldade adolescente e telecinesia.
Como conexões improváveis servem de ponto de partida?
KING - Isso já aconteceu muitas vezes. Quando escrevi "Cujo" -sobre um cão raivoso-,
estava com problemas em minha moto e ouvi falar de um lugar aonde poderia levá-la. O
mecânico tinha uma casa de fazenda e uma oficina do outro
lado da estrada. Levei minha
moto lá, e, quando cheguei ao
quintal em frente à oficina, ela
morreu. E o maior São Bernardo que já vi na vida saiu da oficina e veio em minha direção.
Esse tipo de cachorro tem a
aparência horrível. Tem aquela
papada e os olhos remelentos.
A impressão que dão é de não
estarem bem de saúde. O cão
começou a rosnar para mim, lá
do fundo da garganta:
"Aaarrrgh". Eu pesava uns 54
quilos, então devia ter no máximo uns quatro ou cinco quilos
mais que o cachorro. O mecânico saiu da garagem e me disse
"oh, esse é o Bowser", ou outro
nome qualquer. Não era Cujo.
Ele disse: "Não se preocupe
com ele. Ele faz isso com todo
mundo". Então adiantei minha
mão para fazer um carinho no
cachorro, e o cachorro tentou
me morder. O sujeito estava
com uma daquelas chaves de
soquete na mão e bateu forte
sobre o traseiro do cão. Era
uma ferramenta de aço. O som
foi de um batedor de tapetes
batendo num tapete. O cachorro apenas latiu uma vez e se
sentou. E o mecânico me disse
algo como: "Bowser não costuma fazer isso. Ele não deve ter
gostado de sua cara".
Me recordo de como senti
medo, não havia onde me esconder. Estava de moto, mas a
moto tinha morrido, e eu não
conseguiria correr mais rápido
que o cachorro. Se o homem
não estivesse lá com a ferramenta, se o cão decidisse me
atacar... Mas aquilo não era
uma história, era um pedaço...
Duas semanas depois, estava
pensando no Ford Pinto que
minha mulher e eu tínhamos.
Havia alguma coisa errada nele:
o carburador afogava, e não dava para dar a partida. Eu me
preocupava com a idéia de que
minha mulher pudesse ficar
presa em algum lugar com
aquele carro e pensei: "E se ela
o levasse à oficina e não conseguisse dar partida -e se, em lugar de o cachorro ser apenas
um cão de gênio ruim, ele fosse
realmente louco?". Esse é um
dos lugares em que a vida real
interferiu na história. É sempre
esse o caminho. Você vê alguma
coisa, essa coisa faz um clique
com outra, e isso rende uma
história. Mas você nunca sabe o
que vai acontecer.
PERGUNTA - "Cujo" é incomum pelo fato de o livro inteiro ser escrito
num único capítulo. O sr. o planejou
assim desde o começo?
KING - Não, "Cujo" era um romance-padrão, em capítulos.
Mas queria que fosse sentido
como um tijolo que é atirado
em você, atravessando sua janela. Sempre pensei que o tipo
de livro que faço -e tenho ego
suficiente para pensar que todo
romancista deveria fazer o
mesmo- deve ser uma espécie
de agressão pessoal. Ele deve
ser alguém avançando contra
você do outro lado da mesa, agarrando-o, sacudindo-o. Ele
deve incomodar. Deve perturbar. E não apenas porque você
se enoja. Mas se eu recebo uma
carta dizendo "não consegui
jantar (depois de ler seu livro)",
minha reação é: "Ótimo!".
PERGUNTA - Do que o sr. acha que
temos medo?
KING - Acho que não há nada
de que eu não tenha medo, em
algum nível. Mas do que nós,
como humanos, temos medo?
Do caos. Do "outsider". Temos
medo das mudanças. Temos
medo daquilo que perturba, e é
isso o que me interessa. Há
muita gente cujos escritos eu
realmente adoro. Um deles é o
poeta americano Philip Booth,
que escreve sobre a vida comum, diretamente, mas eu
simplesmente não consigo fazer isso.
Uma vez escrevi uma novela
intitulada "The Mist" [A Neblina]. É sobre uma neblina que
chega e cobre uma cidade, e a
história acompanha pessoas
que ficam presas num supermercado. Uma mulher está na
fila do caixa com uma caixa de
cogumelos. Quando ela vai à janela ver a neblina chegando, o
gerente pega a caixa dela. E ela
diz: "Devolva meus cogumelos". Temos pavor de coisas que
transtornem ou rompam com o
que prevemos. Temos medo de
que alguém roube nossos cogumelos na fila do caixa.
PERGUNTA - Esse medo é o tema
principal de sua ficção?
KING - Eu diria que o que eu faço é como uma rachadura no
espelho. Se você repassar meus
livros desde "Carrie", verá uma
observação da vida de classe
média americana comum, como ela é vivida no momento em
que cada livro foi escrito. Em
cada vida você chega a um ponto em que é obrigado a lidar
com algo inexplicável para você, quer seja um médico lhe dizendo que você tem câncer,
quer seja um trote telefônico.
Então, quer você fale de fantasmas, vampiros ou criminosos de guerra nazistas que moram na nossa rua, estará falando da mesma coisa: a intrusão
do extraordinário na vida ordinária e como a enfrentamos. O
que isso demonstra sobre nosso caráter e nossas interações
com os outros e a sociedade em
que vivemos me interessa muito mais que monstros, vampiros, espectros e fantasmas.
PERGUNTA - Ainda em "Sobre a Escrita", o sr. define a ficção popular
como aquela em que os leitores reconhecem aspectos de sua própria
vivência. Em seu trabalho, o sr. procura conscientemente captar um
momento específico no tempo?
KING - Não, mas não tento evitar. Veja o caso de "Cell" [Celular]. A idéia me veio da seguinte
maneira: saí de um hotel em
Nova York e vi uma mulher falando no celular. Pensei comigo: "E se ela recebesse pelo celular uma mensagem à qual não
pudesse resistir e fosse obrigada a sair matando pessoas até
que alguém a matasse?". Todas
as ramificações possíveis começaram a pulular na minha
cabeça como bolas de fliperama. Se todo mundo recebesse a
mesma mensagem, então todo
mundo que tivesse um telefone
celular enlouqueceria.
As pessoas normais veriam o
que estaria acontecendo, e a
primeira coisa que fariam seria
ligar para seus amigos e parentes em seus celulares. Então a
epidemia se espalharia como
sumagre venenoso. Mais tarde,
eu estava andando e vi um sujeito que parecia ser louco, gritando sozinho. Tive vontade de
atravessar a rua para me afastar
dele. Mas ele não era um mendigo -vestia terno. Então vi
que ele tinha um daqueles fones de ouvido e estava falando
no celular. Pensei: "Quero realmente escrever essa história".
Foi um conceito instantâneo.
PERGUNTA - Mesmo em seus livros
mais sobrenaturais, o horror é psicológico, certo? Não é um monstro
que surge detrás de um canto. Então
eles não poderiam todos ser caracterizados como livros internos?
KING - "Lisey's Story" [A História de Lisey], meu novo romance, é um livro interno, por
exemplo, porque é longo e tem
poucos personagens, mas um
livro como "Celular" é externo
porque há muitas pessoas nele.
"Jogo Perigoso" é o mais interno de todos os livros internos. É
sobre uma personagem só, algemada a sua cama, nua.
Todas as coisas pequenas se
tornam tão grandes -o copo
d'água, ela tentando fazer a prateleira acima da cama cair, para
que possa escapar.
Quando mergulhei nesse livro, me lembro de pensar que
Jessie teria sido uma espécie de
ginasta no colégio, e que, no final, simplesmente colocaria
seus pés atrás da cabeça, sobre
a cabeceira da cama, e acabaria
ficando em pé. Depois de escrever cerca de 40 páginas, disse a
mim mesmo: "Seria bom ver se
isso funciona". Chamei meu filho e o levei para nosso quarto.
Eu o amarrei à cama com lenços de cabeça. Minha mulher
entrou e disse: "O que você está
fazendo?". Falei: "Não se preocupe, estou fazendo uma experiência". Joe tentou fazer o que
eu tinha pensado, mas não conseguiu. Ele falou: "Minhas juntas não funcionam assim".
E, novamente, foi como aquilo de que eu estava falando, sobre a raiva em "Cujo". Eu disse:
"Jesus Cristo! Isso não vai funcionar!". E a única coisa possível nesse momento é fazer Jessie ter articulações ultraflexíveis, que se dobram nos dois
sentidos. Então você diz, "sim,
tudo bem, isso não vale".
PERGUNTA - O sr. já escreveu muito
sobre crianças. Por que isso?
KING - Por duas razões. Tive a
sorte de vender meus escritos
ainda bastante jovem, me casei
cedo e tive filhos quando era jovem. Tive a oportunidade de
observá-los num momento em
que muitas pessoas de minha
idade estavam dançando ao KC
and The Sunshine Band.
Criar as crianças foi bem
mais recompensador que a cultura pop dos anos 1970. Eu não
conhecia KC and The Sunshine
Band, mas conhecia meus filhos de cabo a rabo. Eu estava
em contato com a raiva e a
exaustão que você pode sentir.
Essas coisas entraram nos livros. O que entrou em muitos
dos livros recentes foi a dor,
pessoas que têm ferimentos,
porque isso é o que eu conheço
neste momento. Dentro de dez
anos talvez seja outra coisa, se
eu ainda estiver por aqui.
PERGUNTA - Coisas ruins acontecem com crianças em "O Cemitério". De onde isso surgiu?
KING - Esse livro foi muito pessoal. Tudo que há nele -até o
ponto em que o menininho é
morto na estrada- é verdade.
Nós nos mudamos para uma
casa ao lado da estrada. Os caminhões passavam e o velho do
outro lado da rua dizia: "É preciso prestar atenção quando estão na rua". Saíamos para o
campo. Empinávamos pipas.
Fomos lá de fato e vimos o cemitério de bichos de estimação.
Eu realmente encontrei o gatinho de minha filha, Smucky,
morto no meio da rua, atropelado. Nós o enterramos no cemitério de bichos de estimação,
e eu ouvi Naomi na garagem na
noite em que o enterramos.
Ela chorava e dizia: "Me devolva meu gato!". Simplesmente joguei isso diretamente no livro. E meu filho Owen realmente saiu correndo para a rua.
Ele era pequenino, devia ter 2
anos. Eu gritava "não faça isso!". E, é claro, ele corria mais
ainda e ria, porque é isso o que
fazem nessa idade. Corri atrás,
pulei sobre ele e o puxei para a
beira da estrada, e um caminhão passou a toda velocidade
ao lado dele. Tudo isso entrou
no livro.
Então você diz a si mesmo: "É
preciso ir um pouco além". Se
você vai tratar desse processo
de luto -o que acontece quando você perde um filho-, precisa levar até o fim. E eu o fiz. Sinto orgulho disso, porque fui até
o fim, mas ao final foi tão medonho, tão sinistro. Quero dizer,
no final desse livro não resta esperança alguma para ninguém.
PERGUNTA - "O Iluminado" também partiu da experiência pessoal?
O sr. se hospedou naquele hotel?
KING - Sim, o Stanley Hotel, em
Estes Park, Colorado. Minha
mulher e eu fomos lá em outubro. Era o último fim de semana da temporada, então o hotel
estava quase totalmente vazio.
Eu passei por aquela placa que
dizia "as estradas podem ser fechadas a partir de 1º de novembro" e pensei: "Uau, há uma
história a ser contada aqui".
PERGUNTA - Que achou da adaptação de Stanley Kubrick?
KING - Fria demais. Não há
senso nenhum de investimento
emocional dele na família. A
atuação de Shelley Duvall como
Wendy -bem, fale em insulto
às mulheres. Ela é basicamente
uma máquina de soltar gritos.
Não há senso do envolvimento
dela na dinâmica familiar. E
Kubrick parecia não fazer idéia
de que Jack Nicholson estava
representando o mesmo motociclista psicótico que já fizera
em todos aqueles filmes sobre
motoqueiros que ele fez -"Os
Demônios sobre Rodas", "The
Wild Ride" [Corrida Feroz],
"Rebeldia Violenta" e "Sem
Destino". O cara é louco. Então
onde está a tragédia, se o sujeito comparece a uma entrevista
para um emprego e já está maluco? Não, eu odiei o que Kubrick fez com "O Iluminado".
PERGUNTA - O sr. cooperou com o
diretor?
KING - Não. Meu roteiro de "O
Iluminado" virou a base para a
minissérie. Duvido que Kubrick o tenha lido antes de fazer
seu filme. Ele sabia o que queria
fazer com a história e contratou
a romancista Diane Johnson
para escrever o esboço do roteiro baseado no que ele queria
ressaltar. Então ele próprio o
refez. Fiquei realmente decepcionado. É muito bonito de se
olhar: sets maravilhosos, todas
aquelas tomadas com "steadicam". Eu dizia que o filme era
um Cadillac sem motor.
Não se pode fazer nada com
ele a não ser admirá-lo como
escultura. Foi embora seu objetivo primordial, que é contar
uma história. A diferença básica que revela tudo o que se precisa saber é o final. Perto dele,
Jack Torrance diz a seu filho
que o ama e depois explode o
hotel. É um clímax de muita
paixão. No filme de Kubrick,
ele morre congelado.
PERGUNTA - Seus novos livros, "Celular" e "A História de Lisey" foram
escritos ao mesmo tempo?
KING - Sim, durante algum
tempo. Eu tinha terminado um
primeiro esboço de "Lisey", então o revisava à noite
e trabalhava em "Celular" durante o dia. Eu costumava trabalhar assim quando bebia. Durante o dia eu trabalhava sobre
o que era novo e fresco, e estava
totalmente sóbrio. Boa parte do
tempo, estava de ressaca, mas
sóbrio. À noite eu já estava bêbado, e era então que revisava.
Era divertido, e durante muito
tempo isso pareceu funcionar
bem para mim, mas não consigo mais trabalhar assim.
PERGUNTA - Quem edita seus livros? Até que ponto são editados?
KING - Se você tem popularidade suficiente, lhe dão toda a liberdade que quiser. Darão corda suficiente para se enforcar
na Times Square se você quiser,
e eu já fiz isso. Especialmente
na época em que me drogava e
bebia o tempo todo, fazia o que
bem entendesse. E isso incluía
mandar editores se f...
PERGUNTA - Se "Celular" é "entretenimento", quais de seus livros o sr.
enquadraria na outra categoria?
KING - Eles deveriam ser todos
entretenimento. Esse é o "x" do
problema. Se um romance não
é entretenimento, então, para
mim, não é um livro bem-sucedido. Mas, se você quiser falar
de romances que operam em
mais de um nível, eu diria "Misery" [no cinema, "Louca Obsessão"], "Eclipse Total" e "A
Coisa". Quando comecei a trabalhar sobre "A Coisa", que vai
e volta entre as vidas dos personagens quando crianças e como
adultos, percebi que estava escrevendo sobre a maneira como usamos nossa imaginação
em fases diferentes da vida.
Amo esse livro, e ele é um daqueles que não param de vender. As pessoas realmente reagem a ele. Recebo muitas cartas
de pessoas que dizem que desejariam que o livro continuasse.
E eu digo: "Meu Deus, ele já é
tão longo do jeito que é".
Acho que "A Coisa" é o mais
dickensiano de meus livros, devido a sua gama larga de personagens e histórias interligadas.
O romance dá conta de muita
complexidade de uma maneira
destituída de esforço que eu
muitas vezes desejaria poder
redescobrir. "A História de Lisey" é assim. É muito longo.
Tem uma série de histórias interligadas que parecem se entremear sem esforço. Mas me
sinto tímido ao falar sobre isso,
porque tenho medo de que as
pessoas dêem risada: "Veja só
esse bárbaro tentando fazer de
conta que merece um lugar no
palácio". Sempre que esse assunto vem à tona, eu disfarço.
PERGUNTA - Quando aceitou o troféu National Book Award de Contribuição Distinta às Letras Americanas, o sr. fez um discurso em defesa
da ficção popular e citou vários autores que considerou insuficientemente apreciados pelo establishment literário. Então Shirley Hazzard, a vencedora daquele ano na
categoria ficção [por "O Grande Incêndio", Cia. das Letras], subiu ao
palco e desancou seu argumento
sem meias palavras.
KING - O que Hazzard disse foi:
"Não acho que precisemos de
uma lista de leituras recomendadas vinda de você". Se eu tivesse tido a oportunidade de
replicar, teria dito: "Com todo o
respeito devido, precisamos,
sim". Acho que, de certo modo,
Shirley comprovou o que eu
disse. Os guardiões da idéia da
literatura séria têm uma lista
de autores autorizados a entrar, e freqüentemente demais
essa lista é tirada de pessoas
que conhecem outras pessoas,
que freqüentaram determinadas escolas, que ascenderam
passando por determinados canais da literatura. Isso é uma
idéia ruim -é algo que limita o
crescimento da literatura.
Vivemos um momento crítico para as letras americanas,
porque elas estão sob o ataque
de tantos outros meios de comunicação: a TV, o cinema, a
internet e todas as maneiras de
que dispomos para obter entradas não impressas para alimentar nossa imaginação. Quando
alguém como Shirley Hazzard
diz que não precisa de uma lista
de leituras, a porta se fecha sobre escritores como George Pelecanos [de "Preto no Branco"]
ou Dennis Lehane ["Sobre Meninos e Lobos"]. Quando isso
acontece, toda uma área da
imaginação se perde.
Quando se fecha a porta à ficção popular séria, fecha-se a
porta a pessoas que são consideradas romancistas sérias. Se
você faz isso, está dizendo a
elas: "Você escreve ficção popular e acessível por conta e risco próprios". Por isso não existem muitos escritores que correriam o risco que Philip Roth
correu quando escreveu "Complô Contra a América" [Cia. das
Letras]. Escrever esse livro foi
um risco para ele, porque é um
romance acessível que pode ser
lido como entretenimento. É
envolvente em nível narrativo.
PERGUNTA - Existe realmente uma
diferença, então, entre a ficção popular séria e a ficção literária?
KING - O teste de verdade
acontece quando você se pergunta se um livro o envolve no
nível emocional. E, a partir do
momento em que essas alavancas são acionadas, muitos dos
críticos sérios começam a abanar a cabeça e dizer "não". Para
mim, isso remete à idéia que
têm muitas pessoas que ganham a vida analisando literatura, que dizem: "Se deixarmos
a ralé entrar, ela verá que qualquer pessoa é capaz de fazer isso, que isso é acessível a qualquer um. E, nesse caso, o que
nós estamos fazendo aqui?".
PERGUNTA - Sente que sua reputação o encerrou em um estereótipo?
KING - Se você quer perguntar
se eu me sinto fechado dentro
de uma caixa, não podendo ir
para onde quero -nem um
pouco. Outras pessoas pregam
rótulos em mim, como o mestre do horror, o mestre do medo, o mestre do suspense, o
mestre do asco. Mas eu nunca
disse "isto é o que eu faço".
Realmente me classificaram
como escritor de horror, mas
consegui fazer coisas de vários
tipos dentro desse enquadramento. Apenas uma vez em minha carreira senti que isso era
um peso, e foi quando fiz um livro intitulado "Trocas Macabras". Eu estava num momento
sensível, de qualquer maneira,
porque era a primeira coisa que
eu escrevia desde os 16 anos
sem beber ou me drogar. Estava totalmente limpo, com exceção dos cigarros. Quando terminei o livro, pensei: "Isso é
bom. Finalmente escrevi algo
realmente divertido". Achei
que tinha feito uma sátira da
"Reagan-economia" na América dos anos 1980. Você sabe
-as pessoas se dispõem a comprar e vender qualquer coisa,
até suas almas. Sempre enxerguei Leland Gaunt, o comerciante que compra almas, como
o Ronald Reagan arquetípico:
carismático, um pouco idoso,
alguém que só vende porcarias,
mas porcarias reluzentes.
PERGUNTA - Agora que está editando a edição 2007 de "Best American
Short Stories", o sr. está analisando
contos do tipo de revistas especializadas que lia quando era garoto?
KING - Sim, ando lendo todas
as revistas de fantasia e ficção
científica, especialmente a
"Ellery Queen Mystery Magazine" e a "Alfred Hitchcock
Mystery Magazine", para saber
o que há aí fora. A "Alfred
Hitchcock" antigamente tinha
qualidade literária, mas foi subordinada à empresa que é dona da "Ellery Queen" e a qualidade dos contos decaiu. Editar
a "Best American" é um projeto
bom, mas é assustador, porque
há tanta coisa aí fora. O que me
assombra é pensar: o que será
que estamos deixando de ver?
PERGUNTA - Faz sete anos desde o
acidente. O sr. ainda sente dor?
KING - O tempo inteiro. Mas
não tomo mais nada contra a
dor. Dois anos atrás tive que ser
internado com pneumonia,
passei por outra cirurgia, e depois disso as coisas chegaram a
um ponto em que me dei conta
de que não poderia continuar a
tomar remédios para sempre,
senão teria que carregá-los ao
atacado. Eu tomava analgésicos
havia cinco anos. Já estava viciado. Se você os usa para a dor
e não como droga, não é tão difícil parar. O problema é que
você tem que se acostumar a viver sem isso. Você passa pelo
processo doloroso de retirada
das drogas. É principalmente
uma questão de sofrer insônia.
Mas, depois de algum tempo,
seu corpo diz "Ah, legal!".
PERGUNTA - E ainda fuma cigarros?
KING - Três por dia, nunca
quando escrevo. Como são só
três, têm um sabor ótimo. Meu
médico diz: "Sabe, se vai fumar
três, poderia igualmente fumar
30", mas não faço isso. Abandonei o álcool, o Valium [marca de
sedativo], a cocaína. São as coisas das quais eu era dependente. A única coisa que não consegui largar foi o cigarro. Fumo
um pela manhã, um à noite, um
à tarde. Curto muito meus cigarros. Não deveria, eu sei. "Fumar, ruim! Saúde, bom!" Mas
adoro relaxar com um bom livro e um cigarro. Em outra noite, voltei de um jogo de beisebol
-os Red Sox ganharam- e estava deitado na cama, lendo
"The Quiet American" [O Americano Tranqüilo], de Graham
Greene. É um livro fantástico,
maravilhoso. Fumando um cigarro, pensei: "Quem tem mais
sorte do que eu?".
Os cigarros, todas essas substâncias criadoras de vício, fazem parte do lado negativo daquilo que fazemos. Acho que
faz parte da coisa obsessiva que
leva você a ser escritor, que leva
você a querer anotar tudo. Bebida, cigarro, drogas.
PERGUNTA - O sr. ainda vai às reuniões da Alcoólicos Anônimos?
KING - Sim, procuro ir regularmente.
PERGUNTA - O sr. já fez terapia de
algum tipo?
KING - Quando estava deixando as drogas e o álcool, fui a um
terapeuta para ver se conseguia
encontrar uma maneira de superar essa ausência em minha
vida. Mas, se está falando de
psicoterapia de verdade, tenho
medo de que isso fure o fundo
de meu balde, e tudo saia pelo
lado errado. Não sei se isso iria
exatamente me destruir como
escritor, mas acho que acabaria
com muito do material bom.
PERGUNTA - Quando está escrevendo, o sr. pensa de onde suas criações estão vindo?
KING - De vez em quando alguma coisa se declara de maneira
tão evidente que é inescapável.
Veja o caso da enfermeira psicótica em "Louca Obsessão",
que escrevi quando passava por
uma fase difícil com as drogas.
Eu conhecia o assunto sobre o
qual estava escrevendo. Nunca
houve dúvida a respeito. Annie
era meu problema de drogas e
era minha fã número um. Meu
Deus, ela não queria ir embora
nunca. Ao mesmo tempo, havia
um lado cômico naquilo tudo.
Muitas vezes essas coisas
aparecem. Me recordo de trabalhar sobre o final de "A Casa
Negra", o livro que escrevi com
Peter Straub, e chegar a uma
cena em que um dos personagens está falando de nunca poder voltar a esse plano de existência -a vida americana no
ano 2001 ou 2002- porque, se
isso acontecesse, essa pessoa
iria adoecer e morrer. Pensei
que era uma maneira elegante
de descrever de onde eu estava
vindo naquele momento. Sentia dor física boa parte do tempo, mas, quando estava escrevendo, me sentia ótimo, porque
estava... onde quer que se esteja
ao criar essas coisas. Quando
vou a esse lugar, deixo de ter
muita consciência física de
meu corpo. Eu pensava: "Isso é
uma analogia bastante boa do
estado criativo. É um lugar para
onde ir e se sentir bem".
PERGUNTA - Em que ponto do processo de escrever o sr. sabe se vão
entrar elementos fantásticos?
KING - Esses elementos não
aparecem porque quero que
apareçam. Não os obrigo a passar pela porta. Eles vêm, simplesmente; a questão é que adoro isso. "Duma Key", que estou
escrevendo agora, é sobre um
sujeito chamado Edgar Freemantle, que sofre um acidente
e perde um braço. Imediatamente comecei a pensar: "talvez exista alguma sintomatologia paranormal com membros
perdidos". Sei que pessoas que
perdem membros têm sensações fantasmas até muito tempo depois do acidente.
Então procurei "membros
fantasmas" no Google para saber por quanto tempo dura a
sensação. Adoro o Google. Descobri que existem milhares de
casos registrados, e o melhor
deles -o que coloquei no livro- é o de um sujeito que perdeu a mão numa máquina empacotadora. Ele pegou a mão,
embrulhou num lenço, levou
para casa e colocou num vidro
com álcool. Ele guardou o vidro
em seu porão. Dois anos se passaram. O sujeito estava ótimo.
Um dia, no inverno, ele sente
um frio no final do braço, no lugar onde sua mão ficava antigamente. Ele liga para o médico e
diz: "A mão não está mais ali,
mas sinto um frio terrível no
fim do meu braço". O médico
pergunta: "O que você fez com a
mão?". Ele diz: "Pus num vidro,
está no porão". O médico fala:
"Vá lá e veja como ela está". O
sujeito desce ao porão. O vidro
está em uma prateleira. A janela tinha se quebrado, e o vento
gelado está soprando diretamente sobre a mão. Ele põe o
vidro ao lado do aquecedor e fica bem de novo. Essa é uma história verídica, aparentemente.
PERGUNTA - Recentemente, sobretudo em "A História de Lisey", parece que o sr. vem partindo de uma
personagem, em vez de partir de
uma situação. Acha que anda fazendo alguma coisa diferente?
KING - Pode estar acontecendo
uma mudança. Não foi o caso
de "Celular", com certeza, mas
"Celular" era uma idéia antiga.
"Lisey", por outro lado, é sobre
a personagem. Tive a idéia há
três ou quatro anos, após meu
acidente. Pensei que já tinha
melhorado, mas a parte inferior de meu pulmão ainda estava toda amassada. Tive pneumonia, e acabaram por tirar
meu pulmão totalmente do
peito para fazer reparos. Cheguei mesmo perto de morrer.
Durante esse período, minha
mulher decidiu reformar minha sala de trabalho. Quando
voltei do hospital, tudo tinha sido tirado de lugar, e me senti
como um fantasma. Pensei:
"Talvez eu tenha morrido. É assim que o escritório ficaria depois de eu morrer". E comecei a
escrever a história sobre um escritor famoso que morreu, e sobre sua mulher, Lisey, que tenta seguir com sua vida.
"Lisey" criou asas e decolou
por conta própria. Em algum
momento, deixou de ser especificamente sobre o luto dessa
mulher e começou a ser um livro sobre a maneira como escondemos as coisas. De lá, saltou para a idéia de que a repressão é criação, porque, quando
reprimimos, inventamos histórias para substituir o passado.
PERGUNTA - Agora que o sr. foi publicado na "New Yorker" e agraciado com o National Book Award e outros troféus, parece bastante claro
que está sendo levado mais a sério
do que era no início da carreira. Ainda tem um forte sentimento de ser
excluído do establishment literário?
KING - Isso mudou muito. Sabe
o que acontece? Se você possui
um pouco de talento, emprega-o ao máximo e não desiste nem
se vende, então passa a ser levado mais a sério. Pessoas que
cresceram lendo seus livros se
tornam parte do establishment
literário e o vêem como parte
da paisagem que já estava ali
quando chegaram.
Sob alguns aspectos, você recebe um tratamento mais justo.
Quando Martin Levin, do "New
York Times", escreveu uma resenha de "A Dança da Morte",
disse que era "o romance-praga
vai ao diabo" e o descreveu como "filho de "O Bebê de Rosemary'". Pensei: "Trabalhei três
anos para vir esse sujeito dizer
isso". Sempre tive consciência
do lugar que ocupo como escritor. Nunca tentei ser pretensioso ou me colocar no nível de autores superiores a mim. Sou sério com o que faço, mas nunca
quis indicar a ninguém que sou
melhor do que sou.
Outra coisa é que você vai envelhecendo. Tenho quase 60
anos. Posso ter mais dez anos
criativos pela frente, talvez 15.
Digo a mim mesmo: "Tenho esse tempo; será que consigo fazer algo ainda melhor?" Não
preciso do dinheiro, nem de outro filme baseado em meus livros, nem escrever mais um roteiro. Não preciso de outra casa
grande e feia -já tenho esta.
Gostaria de escrever um livro
melhor que "A História de Lisey", mas não sei se conseguirei. Gostaria de não me repetir.
Gostaria de não fazer um trabalho pobre. Mas gostaria de continuar. Rejeito a idéia de que já
explorei toda a sala.
A íntegra desta entrevista foi publicada na "Paris Review".
Tradução de Clara Allain.
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