São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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Um bárbaro no palácio

O BEST-SELLER DO TERROR FALA DE SEUS NOVOS LIVROS, DE SUA INSERÇÃO NO ESTABLISHMENT LITERÁRIO, FAZ CRÍTICAS A STANLEY KUBRICK E CONTA POR QUE ESCREVE TANTAS HISTÓRIAS COM CRIANÇAS

CHRISTOPHER LEHMANN-HAUPT
NATHANIEL RICH

Stephen King começou esta entrevista no verão de 2001, dois anos depois de ter sido atingido por um furgão quando caminhava perto de sua casa em Center Lovell, no Maine (EUA). Ele teve sorte de sobreviver ao acidente, em que sofreu lacerações no couro cabeludo, fraturas na perna e no quadril direitos, e teve o pulmão direito perfurado.
Quase três quilos de metal implantados em seu corpo durante a cirurgia inicial foram removidos pouco antes de o escritor conceder a entrevista, e ele ainda sofria dores constantes. Uma segunda sessão foi conduzida no início de 2006, em sua residência de inverno na Flórida, com King sentado nos degraus à frente da casa. Stephen King, 59, nasceu em Portland, Maine. Seu primeiro conto publicado, "I Was a Teenage Grave Robber", [Fui um Ladrão de Sepulturas Juvenil] saiu em 1965 num fanzine chamado "Comics Review".
Durante vários anos King se esforçou para sustentar sua família jovem, lavando roupas de cama de um motel numa lavanderia, lecionando inglês num colégio e, de vez em quando, vendendo contos a revistas masculinas. Então, em 1974, publicou "Carrie, a Estranha", que em pouco tempo virou best-seller. Desde então, o autor já vendeu mais de 300 milhões de livros.
Além de 43 romances, King escreveu até hoje oito coletâneas de contos, 11 roteiros e dois livros sobre a arte de escrever, e, com Stewart O'Nan, é co-autor de "Faithful" [Público Fiel], um relato do dia-a-dia da temporada do Red Sox no campeonato de 2004. Praticamente todos os seus romances e a maioria de seus contos foram adaptados para o cinema ou a TV. Embora tenha sido desprezado pelos críticos durante a maior parte de sua carreira, há pouco o autor foi escolhido para fazer a edição 2007 da "Best American Short Stories" [compilação anual de contos dos EUA, da Houghton Mifflin].

 

PERGUNTA - Que idade o sr. tinha quando começou a escrever?
STEPHEN KING
- Acredite se quiser, eu tinha 6 ou 7 anos. Copiava imagens de HQs, compondo minhas próprias histórias. Me lembro de faltar à escola porque estava com amidalite e ficar em casa, na cama, escrevendo. O cinema também foi uma grande influência. Me recordo de minha mãe me levar ao Radio City Music Hall para ver "Bambi". O tamanho daquele lugar, o incêndio na floresta no filme -aquilo me deixou uma impressão profunda. Quando comecei, tendia a escrever em imagens, porque isso era tudo o que eu conhecia na época.

PERGUNTA - Quando o sr. começou a ler ficção adulta?
KING
- Eu devia ter 12 anos e estudava numa escola de uma sala só, na rua de casa. Não havia biblioteca na cidade, mas toda semana o Estado mandava uma grande perua verde, conhecida como "livromóvel". Até então, tudo o que eu tinha lido eram as histórias sobre Nancy Drew, os livros sobre os Hardy Boys [ambas coleções juvenis de mistério] e coisas do gênero. Os primeiros livros foram os de Ed McBain sobre o 87º Distrito Policial. No primeiro, os policiais vão interrogar uma mulher num cortiço, e ela está parada ali, de combinação. Os tiras a mandam vestir alguma roupa, e ela segura o seio através da combinação, aperta na direção deles e fala: "Na sua cara, "tira'!". Eu pensei: "Uau!". Alguma coisa fez um clique na minha cabeça. Pensei: "Isso é real, poderia acontecer de verdade". Foi o fim de toda a ficção juvenil para mim.

PERGUNTA - Mas o sr. não leu exclusivamente ficção popular.
KING
- Lia livros de vários tipos. Li "O Chamado da Floresta" e "O Lobo do Mar" [livros juvenis de Jack London] em uma semana, "Peyton Place" [de Grace Metalious] na semana seguinte, e, uma semana depois, "O Homem no Terno de Flanela Cinza" [de Sloan Wilson]. Qualquer coisa que viesse à minha mente ou que chegasse às minhas mãos eu lia. Quando li "O Lobo do Mar", não entendi que era a crítica de Jack London a Nietzsche, e, quando li "McTeague" [de Frank Norris], eu não sabia que isso era naturalismo. Mas eu compreendi os livros em outro nível.

PERGUNTA - Em "On Writing" [Sobre a Escrita], o sr. menciona que a idéia de seu primeiro romance, "Carrie", surgiu quando fez a conexão entre dois temas não interligados: crueldade adolescente e telecinesia. Como conexões improváveis servem de ponto de partida?
KING
- Isso já aconteceu muitas vezes. Quando escrevi "Cujo" -sobre um cão raivoso-, estava com problemas em minha moto e ouvi falar de um lugar aonde poderia levá-la. O mecânico tinha uma casa de fazenda e uma oficina do outro lado da estrada. Levei minha moto lá, e, quando cheguei ao quintal em frente à oficina, ela morreu. E o maior São Bernardo que já vi na vida saiu da oficina e veio em minha direção.
Esse tipo de cachorro tem a aparência horrível. Tem aquela papada e os olhos remelentos. A impressão que dão é de não estarem bem de saúde. O cão começou a rosnar para mim, lá do fundo da garganta: "Aaarrrgh". Eu pesava uns 54 quilos, então devia ter no máximo uns quatro ou cinco quilos mais que o cachorro. O mecânico saiu da garagem e me disse "oh, esse é o Bowser", ou outro nome qualquer. Não era Cujo.
Ele disse: "Não se preocupe com ele. Ele faz isso com todo mundo". Então adiantei minha mão para fazer um carinho no cachorro, e o cachorro tentou me morder. O sujeito estava com uma daquelas chaves de soquete na mão e bateu forte sobre o traseiro do cão. Era uma ferramenta de aço. O som foi de um batedor de tapetes batendo num tapete. O cachorro apenas latiu uma vez e se sentou. E o mecânico me disse algo como: "Bowser não costuma fazer isso. Ele não deve ter gostado de sua cara".
Me recordo de como senti medo, não havia onde me esconder. Estava de moto, mas a moto tinha morrido, e eu não conseguiria correr mais rápido que o cachorro. Se o homem não estivesse lá com a ferramenta, se o cão decidisse me atacar... Mas aquilo não era uma história, era um pedaço... Duas semanas depois, estava pensando no Ford Pinto que minha mulher e eu tínhamos.
Havia alguma coisa errada nele: o carburador afogava, e não dava para dar a partida. Eu me preocupava com a idéia de que minha mulher pudesse ficar presa em algum lugar com aquele carro e pensei: "E se ela o levasse à oficina e não conseguisse dar partida -e se, em lugar de o cachorro ser apenas um cão de gênio ruim, ele fosse realmente louco?". Esse é um dos lugares em que a vida real interferiu na história. É sempre esse o caminho. Você vê alguma coisa, essa coisa faz um clique com outra, e isso rende uma história. Mas você nunca sabe o que vai acontecer.

PERGUNTA - "Cujo" é incomum pelo fato de o livro inteiro ser escrito num único capítulo. O sr. o planejou assim desde o começo?
KING
- Não, "Cujo" era um romance-padrão, em capítulos. Mas queria que fosse sentido como um tijolo que é atirado em você, atravessando sua janela. Sempre pensei que o tipo de livro que faço -e tenho ego suficiente para pensar que todo romancista deveria fazer o mesmo- deve ser uma espécie de agressão pessoal. Ele deve ser alguém avançando contra você do outro lado da mesa, agarrando-o, sacudindo-o. Ele deve incomodar. Deve perturbar. E não apenas porque você se enoja. Mas se eu recebo uma carta dizendo "não consegui jantar (depois de ler seu livro)", minha reação é: "Ótimo!".

PERGUNTA - Do que o sr. acha que temos medo?
KING
- Acho que não há nada de que eu não tenha medo, em algum nível. Mas do que nós, como humanos, temos medo? Do caos. Do "outsider". Temos medo das mudanças. Temos medo daquilo que perturba, e é isso o que me interessa. Há muita gente cujos escritos eu realmente adoro. Um deles é o poeta americano Philip Booth, que escreve sobre a vida comum, diretamente, mas eu simplesmente não consigo fazer isso. Uma vez escrevi uma novela intitulada "The Mist" [A Neblina]. É sobre uma neblina que chega e cobre uma cidade, e a história acompanha pessoas que ficam presas num supermercado. Uma mulher está na fila do caixa com uma caixa de cogumelos. Quando ela vai à janela ver a neblina chegando, o gerente pega a caixa dela. E ela diz: "Devolva meus cogumelos". Temos pavor de coisas que transtornem ou rompam com o que prevemos. Temos medo de que alguém roube nossos cogumelos na fila do caixa.

PERGUNTA - Esse medo é o tema principal de sua ficção?
KING
- Eu diria que o que eu faço é como uma rachadura no espelho. Se você repassar meus livros desde "Carrie", verá uma observação da vida de classe média americana comum, como ela é vivida no momento em que cada livro foi escrito. Em cada vida você chega a um ponto em que é obrigado a lidar com algo inexplicável para você, quer seja um médico lhe dizendo que você tem câncer, quer seja um trote telefônico. Então, quer você fale de fantasmas, vampiros ou criminosos de guerra nazistas que moram na nossa rua, estará falando da mesma coisa: a intrusão do extraordinário na vida ordinária e como a enfrentamos. O que isso demonstra sobre nosso caráter e nossas interações com os outros e a sociedade em que vivemos me interessa muito mais que monstros, vampiros, espectros e fantasmas.

PERGUNTA - Ainda em "Sobre a Escrita", o sr. define a ficção popular como aquela em que os leitores reconhecem aspectos de sua própria vivência. Em seu trabalho, o sr. procura conscientemente captar um momento específico no tempo?
KING
- Não, mas não tento evitar. Veja o caso de "Cell" [Celular]. A idéia me veio da seguinte maneira: saí de um hotel em Nova York e vi uma mulher falando no celular. Pensei comigo: "E se ela recebesse pelo celular uma mensagem à qual não pudesse resistir e fosse obrigada a sair matando pessoas até que alguém a matasse?". Todas as ramificações possíveis começaram a pulular na minha cabeça como bolas de fliperama. Se todo mundo recebesse a mesma mensagem, então todo mundo que tivesse um telefone celular enlouqueceria. As pessoas normais veriam o que estaria acontecendo, e a primeira coisa que fariam seria ligar para seus amigos e parentes em seus celulares. Então a epidemia se espalharia como sumagre venenoso. Mais tarde, eu estava andando e vi um sujeito que parecia ser louco, gritando sozinho. Tive vontade de atravessar a rua para me afastar dele. Mas ele não era um mendigo -vestia terno. Então vi que ele tinha um daqueles fones de ouvido e estava falando no celular. Pensei: "Quero realmente escrever essa história". Foi um conceito instantâneo.

PERGUNTA - Mesmo em seus livros mais sobrenaturais, o horror é psicológico, certo? Não é um monstro que surge detrás de um canto. Então eles não poderiam todos ser caracterizados como livros internos?
KING
- "Lisey's Story" [A História de Lisey], meu novo romance, é um livro interno, por exemplo, porque é longo e tem poucos personagens, mas um livro como "Celular" é externo porque há muitas pessoas nele. "Jogo Perigoso" é o mais interno de todos os livros internos. É sobre uma personagem só, algemada a sua cama, nua. Todas as coisas pequenas se tornam tão grandes -o copo d'água, ela tentando fazer a prateleira acima da cama cair, para que possa escapar. Quando mergulhei nesse livro, me lembro de pensar que Jessie teria sido uma espécie de ginasta no colégio, e que, no final, simplesmente colocaria seus pés atrás da cabeça, sobre a cabeceira da cama, e acabaria ficando em pé. Depois de escrever cerca de 40 páginas, disse a mim mesmo: "Seria bom ver se isso funciona". Chamei meu filho e o levei para nosso quarto. Eu o amarrei à cama com lenços de cabeça. Minha mulher entrou e disse: "O que você está fazendo?". Falei: "Não se preocupe, estou fazendo uma experiência". Joe tentou fazer o que eu tinha pensado, mas não conseguiu. Ele falou: "Minhas juntas não funcionam assim". E, novamente, foi como aquilo de que eu estava falando, sobre a raiva em "Cujo". Eu disse: "Jesus Cristo! Isso não vai funcionar!". E a única coisa possível nesse momento é fazer Jessie ter articulações ultraflexíveis, que se dobram nos dois sentidos. Então você diz, "sim, tudo bem, isso não vale".

PERGUNTA - O sr. já escreveu muito sobre crianças. Por que isso?
KING
- Por duas razões. Tive a sorte de vender meus escritos ainda bastante jovem, me casei cedo e tive filhos quando era jovem. Tive a oportunidade de observá-los num momento em que muitas pessoas de minha idade estavam dançando ao KC and The Sunshine Band. Criar as crianças foi bem mais recompensador que a cultura pop dos anos 1970. Eu não conhecia KC and The Sunshine Band, mas conhecia meus filhos de cabo a rabo. Eu estava em contato com a raiva e a exaustão que você pode sentir. Essas coisas entraram nos livros. O que entrou em muitos dos livros recentes foi a dor, pessoas que têm ferimentos, porque isso é o que eu conheço neste momento. Dentro de dez anos talvez seja outra coisa, se eu ainda estiver por aqui.

PERGUNTA - Coisas ruins acontecem com crianças em "O Cemitério". De onde isso surgiu?
KING
- Esse livro foi muito pessoal. Tudo que há nele -até o ponto em que o menininho é morto na estrada- é verdade. Nós nos mudamos para uma casa ao lado da estrada. Os caminhões passavam e o velho do outro lado da rua dizia: "É preciso prestar atenção quando estão na rua". Saíamos para o campo. Empinávamos pipas. Fomos lá de fato e vimos o cemitério de bichos de estimação. Eu realmente encontrei o gatinho de minha filha, Smucky, morto no meio da rua, atropelado. Nós o enterramos no cemitério de bichos de estimação, e eu ouvi Naomi na garagem na noite em que o enterramos. Ela chorava e dizia: "Me devolva meu gato!". Simplesmente joguei isso diretamente no livro. E meu filho Owen realmente saiu correndo para a rua. Ele era pequenino, devia ter 2 anos. Eu gritava "não faça isso!". E, é claro, ele corria mais ainda e ria, porque é isso o que fazem nessa idade. Corri atrás, pulei sobre ele e o puxei para a beira da estrada, e um caminhão passou a toda velocidade ao lado dele. Tudo isso entrou no livro. Então você diz a si mesmo: "É preciso ir um pouco além". Se você vai tratar desse processo de luto -o que acontece quando você perde um filho-, precisa levar até o fim. E eu o fiz. Sinto orgulho disso, porque fui até o fim, mas ao final foi tão medonho, tão sinistro. Quero dizer, no final desse livro não resta esperança alguma para ninguém.

PERGUNTA - "O Iluminado" também partiu da experiência pessoal? O sr. se hospedou naquele hotel?
KING
- Sim, o Stanley Hotel, em Estes Park, Colorado. Minha mulher e eu fomos lá em outubro. Era o último fim de semana da temporada, então o hotel estava quase totalmente vazio. Eu passei por aquela placa que dizia "as estradas podem ser fechadas a partir de 1º de novembro" e pensei: "Uau, há uma história a ser contada aqui".

PERGUNTA - Que achou da adaptação de Stanley Kubrick?
KING
- Fria demais. Não há senso nenhum de investimento emocional dele na família. A atuação de Shelley Duvall como Wendy -bem, fale em insulto às mulheres. Ela é basicamente uma máquina de soltar gritos. Não há senso do envolvimento dela na dinâmica familiar. E Kubrick parecia não fazer idéia de que Jack Nicholson estava representando o mesmo motociclista psicótico que já fizera em todos aqueles filmes sobre motoqueiros que ele fez -"Os Demônios sobre Rodas", "The Wild Ride" [Corrida Feroz], "Rebeldia Violenta" e "Sem Destino". O cara é louco. Então onde está a tragédia, se o sujeito comparece a uma entrevista para um emprego e já está maluco? Não, eu odiei o que Kubrick fez com "O Iluminado".

PERGUNTA - O sr. cooperou com o diretor?
KING
- Não. Meu roteiro de "O Iluminado" virou a base para a minissérie. Duvido que Kubrick o tenha lido antes de fazer seu filme. Ele sabia o que queria fazer com a história e contratou a romancista Diane Johnson para escrever o esboço do roteiro baseado no que ele queria ressaltar. Então ele próprio o refez. Fiquei realmente decepcionado. É muito bonito de se olhar: sets maravilhosos, todas aquelas tomadas com "steadicam". Eu dizia que o filme era um Cadillac sem motor. Não se pode fazer nada com ele a não ser admirá-lo como escultura. Foi embora seu objetivo primordial, que é contar uma história. A diferença básica que revela tudo o que se precisa saber é o final. Perto dele, Jack Torrance diz a seu filho que o ama e depois explode o hotel. É um clímax de muita paixão. No filme de Kubrick, ele morre congelado.

PERGUNTA - Seus novos livros, "Celular" e "A História de Lisey" foram escritos ao mesmo tempo?
KING
- Sim, durante algum tempo. Eu tinha terminado um primeiro esboço de "Lisey", então o revisava à noite e trabalhava em "Celular" durante o dia. Eu costumava trabalhar assim quando bebia. Durante o dia eu trabalhava sobre o que era novo e fresco, e estava totalmente sóbrio. Boa parte do tempo, estava de ressaca, mas sóbrio. À noite eu já estava bêbado, e era então que revisava. Era divertido, e durante muito tempo isso pareceu funcionar bem para mim, mas não consigo mais trabalhar assim.

PERGUNTA - Quem edita seus livros? Até que ponto são editados?
KING
- Se você tem popularidade suficiente, lhe dão toda a liberdade que quiser. Darão corda suficiente para se enforcar na Times Square se você quiser, e eu já fiz isso. Especialmente na época em que me drogava e bebia o tempo todo, fazia o que bem entendesse. E isso incluía mandar editores se f...

PERGUNTA - Se "Celular" é "entretenimento", quais de seus livros o sr. enquadraria na outra categoria?
KING
- Eles deveriam ser todos entretenimento. Esse é o "x" do problema. Se um romance não é entretenimento, então, para mim, não é um livro bem-sucedido. Mas, se você quiser falar de romances que operam em mais de um nível, eu diria "Misery" [no cinema, "Louca Obsessão"], "Eclipse Total" e "A Coisa". Quando comecei a trabalhar sobre "A Coisa", que vai e volta entre as vidas dos personagens quando crianças e como adultos, percebi que estava escrevendo sobre a maneira como usamos nossa imaginação em fases diferentes da vida. Amo esse livro, e ele é um daqueles que não param de vender. As pessoas realmente reagem a ele. Recebo muitas cartas de pessoas que dizem que desejariam que o livro continuasse. E eu digo: "Meu Deus, ele já é tão longo do jeito que é". Acho que "A Coisa" é o mais dickensiano de meus livros, devido a sua gama larga de personagens e histórias interligadas. O romance dá conta de muita complexidade de uma maneira destituída de esforço que eu muitas vezes desejaria poder redescobrir. "A História de Lisey" é assim. É muito longo. Tem uma série de histórias interligadas que parecem se entremear sem esforço. Mas me sinto tímido ao falar sobre isso, porque tenho medo de que as pessoas dêem risada: "Veja só esse bárbaro tentando fazer de conta que merece um lugar no palácio". Sempre que esse assunto vem à tona, eu disfarço.

PERGUNTA - Quando aceitou o troféu National Book Award de Contribuição Distinta às Letras Americanas, o sr. fez um discurso em defesa da ficção popular e citou vários autores que considerou insuficientemente apreciados pelo establishment literário. Então Shirley Hazzard, a vencedora daquele ano na categoria ficção [por "O Grande Incêndio", Cia. das Letras], subiu ao palco e desancou seu argumento sem meias palavras.
KING
- O que Hazzard disse foi: "Não acho que precisemos de uma lista de leituras recomendadas vinda de você". Se eu tivesse tido a oportunidade de replicar, teria dito: "Com todo o respeito devido, precisamos, sim". Acho que, de certo modo, Shirley comprovou o que eu disse. Os guardiões da idéia da literatura séria têm uma lista de autores autorizados a entrar, e freqüentemente demais essa lista é tirada de pessoas que conhecem outras pessoas, que freqüentaram determinadas escolas, que ascenderam passando por determinados canais da literatura. Isso é uma idéia ruim -é algo que limita o crescimento da literatura. Vivemos um momento crítico para as letras americanas, porque elas estão sob o ataque de tantos outros meios de comunicação: a TV, o cinema, a internet e todas as maneiras de que dispomos para obter entradas não impressas para alimentar nossa imaginação. Quando alguém como Shirley Hazzard diz que não precisa de uma lista de leituras, a porta se fecha sobre escritores como George Pelecanos [de "Preto no Branco"] ou Dennis Lehane ["Sobre Meninos e Lobos"]. Quando isso acontece, toda uma área da imaginação se perde. Quando se fecha a porta à ficção popular séria, fecha-se a porta a pessoas que são consideradas romancistas sérias. Se você faz isso, está dizendo a elas: "Você escreve ficção popular e acessível por conta e risco próprios". Por isso não existem muitos escritores que correriam o risco que Philip Roth correu quando escreveu "Complô Contra a América" [Cia. das Letras]. Escrever esse livro foi um risco para ele, porque é um romance acessível que pode ser lido como entretenimento. É envolvente em nível narrativo.

PERGUNTA - Existe realmente uma diferença, então, entre a ficção popular séria e a ficção literária?
KING
- O teste de verdade acontece quando você se pergunta se um livro o envolve no nível emocional. E, a partir do momento em que essas alavancas são acionadas, muitos dos críticos sérios começam a abanar a cabeça e dizer "não". Para mim, isso remete à idéia que têm muitas pessoas que ganham a vida analisando literatura, que dizem: "Se deixarmos a ralé entrar, ela verá que qualquer pessoa é capaz de fazer isso, que isso é acessível a qualquer um. E, nesse caso, o que nós estamos fazendo aqui?".

PERGUNTA - Sente que sua reputação o encerrou em um estereótipo?
KING
- Se você quer perguntar se eu me sinto fechado dentro de uma caixa, não podendo ir para onde quero -nem um pouco. Outras pessoas pregam rótulos em mim, como o mestre do horror, o mestre do medo, o mestre do suspense, o mestre do asco. Mas eu nunca disse "isto é o que eu faço". Realmente me classificaram como escritor de horror, mas consegui fazer coisas de vários tipos dentro desse enquadramento. Apenas uma vez em minha carreira senti que isso era um peso, e foi quando fiz um livro intitulado "Trocas Macabras". Eu estava num momento sensível, de qualquer maneira, porque era a primeira coisa que eu escrevia desde os 16 anos sem beber ou me drogar. Estava totalmente limpo, com exceção dos cigarros. Quando terminei o livro, pensei: "Isso é bom. Finalmente escrevi algo realmente divertido". Achei que tinha feito uma sátira da "Reagan-economia" na América dos anos 1980. Você sabe -as pessoas se dispõem a comprar e vender qualquer coisa, até suas almas. Sempre enxerguei Leland Gaunt, o comerciante que compra almas, como o Ronald Reagan arquetípico: carismático, um pouco idoso, alguém que só vende porcarias, mas porcarias reluzentes.

PERGUNTA - Agora que está editando a edição 2007 de "Best American Short Stories", o sr. está analisando contos do tipo de revistas especializadas que lia quando era garoto?
KING
- Sim, ando lendo todas as revistas de fantasia e ficção científica, especialmente a "Ellery Queen Mystery Magazine" e a "Alfred Hitchcock Mystery Magazine", para saber o que há aí fora. A "Alfred Hitchcock" antigamente tinha qualidade literária, mas foi subordinada à empresa que é dona da "Ellery Queen" e a qualidade dos contos decaiu. Editar a "Best American" é um projeto bom, mas é assustador, porque há tanta coisa aí fora. O que me assombra é pensar: o que será que estamos deixando de ver?

PERGUNTA - Faz sete anos desde o acidente. O sr. ainda sente dor?
KING
- O tempo inteiro. Mas não tomo mais nada contra a dor. Dois anos atrás tive que ser internado com pneumonia, passei por outra cirurgia, e depois disso as coisas chegaram a um ponto em que me dei conta de que não poderia continuar a tomar remédios para sempre, senão teria que carregá-los ao atacado. Eu tomava analgésicos havia cinco anos. Já estava viciado. Se você os usa para a dor e não como droga, não é tão difícil parar. O problema é que você tem que se acostumar a viver sem isso. Você passa pelo processo doloroso de retirada das drogas. É principalmente uma questão de sofrer insônia.
Mas, depois de algum tempo, seu corpo diz "Ah, legal!".

PERGUNTA - E ainda fuma cigarros?
KING
- Três por dia, nunca quando escrevo. Como são só três, têm um sabor ótimo. Meu médico diz: "Sabe, se vai fumar três, poderia igualmente fumar 30", mas não faço isso. Abandonei o álcool, o Valium [marca de sedativo], a cocaína. São as coisas das quais eu era dependente. A única coisa que não consegui largar foi o cigarro. Fumo um pela manhã, um à noite, um à tarde. Curto muito meus cigarros. Não deveria, eu sei. "Fumar, ruim! Saúde, bom!" Mas adoro relaxar com um bom livro e um cigarro. Em outra noite, voltei de um jogo de beisebol -os Red Sox ganharam- e estava deitado na cama, lendo "The Quiet American" [O Americano Tranqüilo], de Graham Greene. É um livro fantástico, maravilhoso. Fumando um cigarro, pensei: "Quem tem mais sorte do que eu?".
Os cigarros, todas essas substâncias criadoras de vício, fazem parte do lado negativo daquilo que fazemos. Acho que faz parte da coisa obsessiva que leva você a ser escritor, que leva você a querer anotar tudo. Bebida, cigarro, drogas.

PERGUNTA - O sr. ainda vai às reuniões da Alcoólicos Anônimos?
KING
- Sim, procuro ir regularmente.

PERGUNTA - O sr. já fez terapia de algum tipo?
KING
- Quando estava deixando as drogas e o álcool, fui a um terapeuta para ver se conseguia encontrar uma maneira de superar essa ausência em minha vida. Mas, se está falando de psicoterapia de verdade, tenho medo de que isso fure o fundo de meu balde, e tudo saia pelo lado errado. Não sei se isso iria exatamente me destruir como escritor, mas acho que acabaria com muito do material bom.

PERGUNTA - Quando está escrevendo, o sr. pensa de onde suas criações estão vindo?
KING
- De vez em quando alguma coisa se declara de maneira tão evidente que é inescapável. Veja o caso da enfermeira psicótica em "Louca Obsessão", que escrevi quando passava por uma fase difícil com as drogas. Eu conhecia o assunto sobre o qual estava escrevendo. Nunca houve dúvida a respeito. Annie era meu problema de drogas e era minha fã número um. Meu Deus, ela não queria ir embora nunca. Ao mesmo tempo, havia um lado cômico naquilo tudo. Muitas vezes essas coisas aparecem. Me recordo de trabalhar sobre o final de "A Casa Negra", o livro que escrevi com Peter Straub, e chegar a uma cena em que um dos personagens está falando de nunca poder voltar a esse plano de existência -a vida americana no ano 2001 ou 2002- porque, se isso acontecesse, essa pessoa iria adoecer e morrer. Pensei que era uma maneira elegante de descrever de onde eu estava vindo naquele momento. Sentia dor física boa parte do tempo, mas, quando estava escrevendo, me sentia ótimo, porque estava... onde quer que se esteja ao criar essas coisas. Quando vou a esse lugar, deixo de ter muita consciência física de meu corpo. Eu pensava: "Isso é uma analogia bastante boa do estado criativo. É um lugar para onde ir e se sentir bem".

PERGUNTA - Em que ponto do processo de escrever o sr. sabe se vão entrar elementos fantásticos?
KING
- Esses elementos não aparecem porque quero que apareçam. Não os obrigo a passar pela porta. Eles vêm, simplesmente; a questão é que adoro isso. "Duma Key", que estou escrevendo agora, é sobre um sujeito chamado Edgar Freemantle, que sofre um acidente e perde um braço. Imediatamente comecei a pensar: "talvez exista alguma sintomatologia paranormal com membros perdidos". Sei que pessoas que perdem membros têm sensações fantasmas até muito tempo depois do acidente. Então procurei "membros fantasmas" no Google para saber por quanto tempo dura a sensação. Adoro o Google. Descobri que existem milhares de casos registrados, e o melhor deles -o que coloquei no livro- é o de um sujeito que perdeu a mão numa máquina empacotadora. Ele pegou a mão, embrulhou num lenço, levou para casa e colocou num vidro com álcool. Ele guardou o vidro em seu porão. Dois anos se passaram. O sujeito estava ótimo. Um dia, no inverno, ele sente um frio no final do braço, no lugar onde sua mão ficava antigamente. Ele liga para o médico e diz: "A mão não está mais ali, mas sinto um frio terrível no fim do meu braço". O médico pergunta: "O que você fez com a mão?". Ele diz: "Pus num vidro, está no porão". O médico fala: "Vá lá e veja como ela está". O sujeito desce ao porão. O vidro está em uma prateleira. A janela tinha se quebrado, e o vento gelado está soprando diretamente sobre a mão. Ele põe o vidro ao lado do aquecedor e fica bem de novo. Essa é uma história verídica, aparentemente.

PERGUNTA - Recentemente, sobretudo em "A História de Lisey", parece que o sr. vem partindo de uma personagem, em vez de partir de uma situação. Acha que anda fazendo alguma coisa diferente?
KING
- Pode estar acontecendo uma mudança. Não foi o caso de "Celular", com certeza, mas "Celular" era uma idéia antiga. "Lisey", por outro lado, é sobre a personagem. Tive a idéia há três ou quatro anos, após meu acidente. Pensei que já tinha melhorado, mas a parte inferior de meu pulmão ainda estava toda amassada. Tive pneumonia, e acabaram por tirar meu pulmão totalmente do peito para fazer reparos. Cheguei mesmo perto de morrer. Durante esse período, minha mulher decidiu reformar minha sala de trabalho. Quando voltei do hospital, tudo tinha sido tirado de lugar, e me senti como um fantasma. Pensei: "Talvez eu tenha morrido. É assim que o escritório ficaria depois de eu morrer". E comecei a escrever a história sobre um escritor famoso que morreu, e sobre sua mulher, Lisey, que tenta seguir com sua vida. "Lisey" criou asas e decolou por conta própria. Em algum momento, deixou de ser especificamente sobre o luto dessa mulher e começou a ser um livro sobre a maneira como escondemos as coisas. De lá, saltou para a idéia de que a repressão é criação, porque, quando reprimimos, inventamos histórias para substituir o passado.

PERGUNTA - Agora que o sr. foi publicado na "New Yorker" e agraciado com o National Book Award e outros troféus, parece bastante claro que está sendo levado mais a sério do que era no início da carreira. Ainda tem um forte sentimento de ser excluído do establishment literário?
KING
- Isso mudou muito. Sabe o que acontece? Se você possui um pouco de talento, emprega-o ao máximo e não desiste nem se vende, então passa a ser levado mais a sério. Pessoas que cresceram lendo seus livros se tornam parte do establishment literário e o vêem como parte da paisagem que já estava ali quando chegaram. Sob alguns aspectos, você recebe um tratamento mais justo. Quando Martin Levin, do "New York Times", escreveu uma resenha de "A Dança da Morte", disse que era "o romance-praga vai ao diabo" e o descreveu como "filho de "O Bebê de Rosemary'". Pensei: "Trabalhei três anos para vir esse sujeito dizer isso". Sempre tive consciência do lugar que ocupo como escritor. Nunca tentei ser pretensioso ou me colocar no nível de autores superiores a mim. Sou sério com o que faço, mas nunca quis indicar a ninguém que sou melhor do que sou. Outra coisa é que você vai envelhecendo. Tenho quase 60 anos. Posso ter mais dez anos criativos pela frente, talvez 15. Digo a mim mesmo: "Tenho esse tempo; será que consigo fazer algo ainda melhor?" Não preciso do dinheiro, nem de outro filme baseado em meus livros, nem escrever mais um roteiro. Não preciso de outra casa grande e feia -já tenho esta. Gostaria de escrever um livro melhor que "A História de Lisey", mas não sei se conseguirei. Gostaria de não me repetir. Gostaria de não fazer um trabalho pobre. Mas gostaria de continuar. Rejeito a idéia de que já explorei toda a sala.


A íntegra desta entrevista foi publicada na "Paris Review". Tradução de Clara Allain.


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