São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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+ História

O helenista resistente

Vernant compreendeu a civilização grega como testemunho de uma sociedade criada por uma relação entre iguais

PHILIPPE-JEAN CATINCHI

M orto na última terça-feira, aos 93 anos, em Sèvres, perto de Paris, o historiador Jean-Pierre Vernant foi responsável por alterar a maneira pela qual o homem e o mundo da Grécia antiga são conhecidos hoje.
Pesquisador da Escola Prática de Altos Estudos e do Collège de France, Vernant nasceu em Provins, em 4 de janeiro de 1914, e ficou órfão quando tinha apenas oito anos.
Desde o início a vida de Vernant parecia transcorrer sob o signo da fraternidade. Seu irmão, seus primos e primas, fizeram de sua infância uma brincadeira constante no jardim da família. Os estudos em Paris não mudaram essa situação, a não ser pela ampliação do círculo "fraterno" ao incluir militantes antifascistas que combateram a seu lado no Quartier Latin contra os militantes da organização fascista Action Française, a partir de 1934, e, posteriormente, os comunistas, com os quais compartilhava uma violenta rejeição ao nacionalismo.
Se seu irmão Jacques sempre se manteve distante de uma adesão formal, "Jipé" era um homem engajado, manteve-se membro do Partido Comunista Francês até 1970, criticando de dentro o dogmatismo que arruinou a generosa filosofia do ideal comunista. Em 1948, "refugiou-se" nas terras da Grécia antiga, para melhor preservar esse espaço de liberdade e essa margem de manobra intelectual recusada aos intelectuais que faziam parte do partido.
Em sua tentativa de "se fazer grego em meu íntimo", adotando as formas de pensar e a sensibilidade dos antigos, ele conseguiu reter as lições das quais se tornou transmissor infatigável: a exigência de uma completa liberdade de espírito, desprovida de qualquer forma de dogma ou proibição; o credo na participação do indivíduo em uma comunidade de iguais; a fascinação pela beleza do mundo. Para esses embates, que começou a travar aos 20 anos, ele se preparava com aplicação de atleta. Na adolescência sempre se dedicou ao atletismo, à natação e a expedições distantes realizadas a pé em busca de antigüidades gregas.
Dada sua vontade de encontrar os helenos, o contexto político lhe importava mais do que o contato físico com o berço da civilização ocidental. De fato, foi como antropólogo que ele percorreu essas terras que lhe eram novas, mas cuja força ele continuava a sentir e cuja memória ainda o deslumbrava.
Desmobilizados em Narbonne em 1940, os irmãos Vernant, exercitando um ativismo que começou pela distribuição de panfletos que eles mesmos imprimiam, reencontraram sua vocação inicial: o ensino. Foi lá que Jean-Pierre veio a conhecer Ignace Meyerson, inventor da psicologia histórica. Vernant se alistou -como o professor- no Exército Secreto, no qual trabalhou pela libertação da França ocupada.
Depois, os mesmos elos o levaram a realizar trabalhos em equipe, com Jean Bottéro e Elena Cassin, Jacques Gernet e Luc Brisson, visitando a Mesopotâmia, a China, Roma e o Egito, e retornando à Grécia, em nome de uma preocupação: as ciências comparadas.
A partir do começo dos anos 1960, o grupo de amigos se reunia uma ou duas vezes por mês, em uma sala do Museu Guimet. Lá, debatiam grandes problemas: o poder, a guerra, Deus, e os presentes expunham sucintamente a maneira pela qual essas questões eram analisadas em seus campos de estudo. Depois de dois ou três anos dessa prática, todos estavam convencidos de que seria bom institucionalizar a aventura. Le Centre, que Vidal-Naquet entregou à direção do influente Louis Gernet, pai da antropologia histórica, nasceu em 1964.
Além dessas aventuras coletivas, Vernant, cujo renome internacional se estabeleceu muito antes que ele recebesse a suprema distinção -a medalha de ouro do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica, na sigla em francês) em 1964- foi defensor encarniçado do idioma grego. Sempre mobilizado em defesa das línguas antigas, cuja morte programada, ao serem transformadas em disciplinas escolares optativas, o alarmava, o filósofo via nelas mais que um jogo de erudição: ele considerava o problema da dívida que temos para com as origens. "Nosso mundo só pode ser compreendido se pesquisarmos como foi fabricado".
Com seus conceitos difundidos por intermédio dos mundos romano e árabe, a civilização grega é parte essencial do cadinho mediterrâneo, matriz da humanidade, da qual Vernant tentou compreender o que "é preciso preservar ainda hoje", aquilo que merece ser transmitido às futuras gerações, como testemunho de uma sociedade criada por relação entre os iguais. Foi essa a missão que Vernant escolheu, e executou impecavelmente.


Este texto foi publicado no "Monde"
Tradução de Paulo Migliacci


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