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+ História
O helenista resistente
Vernant compreendeu a civilização grega como testemunho de uma sociedade criada por uma relação entre iguais
PHILIPPE-JEAN CATINCHI
M
orto na última
terça-feira, aos
93 anos, em Sèvres, perto de
Paris, o historiador Jean-Pierre Vernant foi
responsável por alterar a maneira pela qual o homem e o
mundo da Grécia antiga são conhecidos hoje.
Pesquisador da Escola Prática de Altos Estudos e do Collège de France, Vernant nasceu
em Provins, em 4 de janeiro de
1914, e ficou órfão quando tinha apenas oito anos.
Desde o início a vida de Vernant parecia transcorrer sob o
signo da fraternidade. Seu irmão, seus primos e primas, fizeram de sua infância uma
brincadeira constante no jardim da família. Os estudos em
Paris não mudaram essa situação, a não ser pela ampliação
do círculo "fraterno" ao incluir
militantes antifascistas que
combateram a seu lado no
Quartier Latin contra os militantes da organização fascista
Action Française, a partir de
1934, e, posteriormente, os comunistas, com os quais compartilhava uma violenta rejeição ao nacionalismo.
Se seu irmão Jacques sempre
se manteve distante de uma
adesão formal, "Jipé" era um
homem engajado, manteve-se
membro do Partido Comunista
Francês até 1970, criticando de
dentro o dogmatismo que arruinou a generosa filosofia do
ideal comunista. Em 1948, "refugiou-se" nas terras da Grécia
antiga, para melhor preservar
esse espaço de liberdade e essa
margem de manobra intelectual recusada aos intelectuais
que faziam parte do partido.
Em sua tentativa de "se fazer
grego em meu íntimo", adotando as formas de pensar e a sensibilidade dos antigos, ele conseguiu reter as lições das quais
se tornou transmissor infatigável: a exigência de uma completa liberdade de espírito, desprovida de qualquer forma de
dogma ou proibição; o credo na
participação do indivíduo em
uma comunidade de iguais; a
fascinação pela beleza do mundo. Para esses embates, que começou a travar aos 20 anos, ele
se preparava com aplicação de
atleta. Na adolescência sempre
se dedicou ao atletismo, à natação e a expedições distantes
realizadas a pé em busca de antigüidades gregas.
Dada sua vontade de encontrar os helenos, o contexto político lhe importava mais do
que o contato físico com o berço da civilização ocidental. De
fato, foi como antropólogo que
ele percorreu essas terras que
lhe eram novas, mas cuja força
ele continuava a sentir e cuja
memória ainda o deslumbrava.
Desmobilizados em Narbonne em 1940, os irmãos Vernant,
exercitando um ativismo que
começou pela distribuição de
panfletos que eles mesmos imprimiam, reencontraram sua
vocação inicial: o ensino. Foi lá
que Jean-Pierre veio a conhecer Ignace Meyerson, inventor
da psicologia histórica. Vernant se alistou -como o professor- no Exército Secreto,
no qual trabalhou pela libertação da França ocupada.
Depois, os mesmos elos o levaram a realizar trabalhos em
equipe, com Jean Bottéro e
Elena Cassin, Jacques Gernet e
Luc Brisson, visitando a Mesopotâmia, a China, Roma e o
Egito, e retornando à Grécia,
em nome de uma preocupação:
as ciências comparadas.
A partir do começo dos anos
1960, o grupo de amigos se reunia uma ou duas vezes por mês,
em uma sala do Museu Guimet.
Lá, debatiam grandes problemas: o poder, a guerra, Deus, e
os presentes expunham sucintamente a maneira pela qual
essas questões eram analisadas
em seus campos de estudo. Depois de dois ou três anos dessa
prática, todos estavam convencidos de que seria bom institucionalizar a aventura. Le Centre, que Vidal-Naquet entregou
à direção do influente Louis
Gernet, pai da antropologia
histórica, nasceu em 1964.
Além dessas aventuras coletivas, Vernant, cujo renome internacional se estabeleceu
muito antes que ele recebesse a
suprema distinção -a medalha
de ouro do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica,
na sigla em francês) em 1964-
foi defensor encarniçado do
idioma grego. Sempre mobilizado em defesa das línguas antigas, cuja morte programada,
ao serem transformadas em
disciplinas escolares optativas,
o alarmava, o filósofo via nelas
mais que um jogo de erudição:
ele considerava o problema da
dívida que temos para com as
origens. "Nosso mundo só pode
ser compreendido se pesquisarmos como foi fabricado".
Com seus conceitos difundidos por intermédio dos mundos romano e árabe, a civilização grega é parte essencial do
cadinho mediterrâneo, matriz
da humanidade, da qual Vernant tentou compreender o
que "é preciso preservar ainda
hoje", aquilo que merece ser
transmitido às futuras gerações, como testemunho de
uma sociedade criada por relação entre os iguais. Foi essa a
missão que Vernant escolheu, e
executou impecavelmente.
Este texto foi publicado no "Monde"
Tradução de Paulo Migliacci
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