São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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Política miúda

É hora de tomar posição e passar a semear um novo campo onde a verdadeira política poderá ser jogada

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA T udo parece indicar que politicamente estamos amassando barro sem dar um passo adiante. Se os fundamentos econômicos são bons e a economia dá sinais de estar prestes a levantar vôo, não se tomam as grandes decisões políticas necessárias para sustentar esse desenvolvimento. Elas são conhecidas de todos, o que me permite perguntar desde já por que não têm sido tomadas. Onde se encontra esse déficit político? A despeito de seus percalços, a democracia está bem instalada no Brasil, com eleições periódicas e partidos reconhecidos etc. Haveria outras tarefas políticas que não estariam sendo cumpridas ou caberia à própria dinâmica interna de nossa economia superar o ritmo moderado de nosso crescimento, cujos efeitos medíocres sobre nossa escandalosa distribuição de renda se fazem sentir a todo momento? Em outras palavras, feita a transição para a democracia, a responsabilidade de nosso atraso caberia aos próprios agentes econômicos? Não creio, como pensam alguns amigos, na irrelevância da política na fase atual do desenvolvimento capitalista, mas nem por isso desconheço o atual divórcio entre ela e a atividade econômica. Mas ele me parece muito diferente entre nós e os países desenvolvidos. Embora o atual desempenho da democracia norte-americana não seja nada recomendável -principalmente no que concerne à defesa dos direitos individuais, aos procedimentos de representação e ao controle do império- essas falhas não têm efeitos imediatos no desempenho da economia. Isso é impossível entre nós e na maioria dos países emergentes, que, como sempre, precisamos ao mesmo tempo erguer instituições e sanar problemas que geralmente aparecem quando elas já estão prontas. Relativamente bem estruturada, a economia norte-americana está relativamente protegida dos erros e das atrocidades do governo Bush, quando não ganha com eles. Em contrapartida, as trapalhadas políticas de Lula, sua prática de passar ao longo das crises e de agir antes de tudo visando o cultivo de sua própria imagem, enfraquece o poder de decisão do Estado como um todo, abrindo espaço para as políticas mais desconcentradas. Chegamos ao ponto de ter hoje um ministério que não pode agir como ministério, isto é, ter rumo e planejamento. Em suma, se do ponto de vista comparativo nossa democracia funciona mais ou menos como as outras, existe uma enorme diferença entre esse funcionamento num país desenvolvido e outro que precisa de boas políticas para se desenvolver. O que está faltando? A democracia evolui junto com seu controle, a antidemocracia, como o denomina Pierre Rosanvallon num livro que acaba de publicar ("La Contre-Démocratie - La Politique à l'Âge de la Défiance", A Contrademocracia - A Política na Era da Desconfiança, Seuil). Numa época como a nossa -de risco no dizer de Ulrich Beck, ou da desconfiança naquele de Rosanvallon- os procedimentos formais da democracia são cotidianamente controlados por poderes que dão conteúdo a essas formas, o poder de vigiar, de denunciar, de anotar. Embora os brasileiros sejam um dos povos mais desconfiados do planeta (somente 2,8% declaram que confiam geralmente nas pessoas, enquanto esse índice alcança 66,5% na Dinamarca), são fraquíssimas nossas instituições controladoras. Por certo elas existem, como a Transparência Brasil, e, particularmente agora, a rede de informação e de protesto que se tece na internet. Mas em geral é pequeno o peso político do terceiro setor, das organizações não-governamentais, a despeito de seu bom tamanho. Parece-me que isso resulta de elas serem antes de tudo reivindicativas, lutarem por direitos e maior participação nos fundos públicos. Sob esse aspecto, elas se infiltram na política sem desempenhar um papel político ativo, sobretudo, sem estar controlando o procedimento democrático. No fundo, não se elevam ao plano político, gerir negativamente o Estado, força criadora por sua negatividade, mas permanecem no nível da sociedade civil. E assim tendem a privilegiar a política a curto prazo, sempre beirando a politicagem. Daí meu entusiasmo com a anticandidatura que um grupo de deputados suprapartidários lança para a presidência da Câmara. É uma reação que vem do próprio Congresso, que não se resume a declarações morais altissonantes, que não propõe uma reforma do sistema político em grande estilo, mas modestamente marca posição, recusa os acordos visando antes de tudo a partilha do poder burocrático e topa até mesmo perder para se fazer ouvir. Chegamos assim a uma situação esdrúxula. Ganhar ou perder faz parte do jogo político. É inútil jogar quando faltam as condições de sucesso. Isto, porém, somente vale quando a própria atividade política está prenhe de uma legitimidade mínima, não mais quando essa atividade deixa de ser controlada por seu contrário. Ora, as incríveis malandragens da última legislatura afetaram a imagem do Congresso como um todo. Não creio que o cumprimento dos requisitos formais da eleição e da diplomação baste para compensar essa perda. A nova legitimidade somente pode nascer do próprio exercício das funções representativas. Isto se torna impossível quando não se sabe mais quem é quem, com a exceção, talvez, dos ladrões contumazes que foram eleitos. Para jogar ao mar o peso dessa "herança maldita", a nova legislatura necessita mostrar a que vem, começar desde logo delimitando o terreno onde poderá exercer suas funções e demandar seus direitos. É hora de tomar posição, deixar cair a máscara de funcionário do governo e de si próprio, e passar a semear um novo campo onde a verdadeira política poderá ser jogada. Daí a importância desse movimento suprapartidário. Reafirma que no Congresso existe um movimento de moralização da política, uma resistência ao predomínio total do cinzento. Em vez da grande política, política miúda, mas política semeadora. Aliás, o mesmo esquema não poderia ser aplicado a outras esferas da política, como aquela que hoje desgraça a universidade?


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve na seção "Autores".


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