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Política miúda
É hora de tomar posição e passar a semear um novo campo onde a verdadeira política poderá ser jogada
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
T
udo parece indicar
que politicamente estamos amassando
barro sem dar um
passo adiante. Se os
fundamentos econômicos são
bons e a economia dá sinais de
estar prestes a levantar vôo,
não se tomam as grandes decisões políticas necessárias para
sustentar esse desenvolvimento. Elas são conhecidas de todos, o que me permite perguntar desde já por que não têm sido tomadas. Onde se encontra
esse déficit político? A despeito
de seus percalços, a democracia está bem instalada no Brasil, com eleições periódicas e
partidos reconhecidos etc. Haveria outras tarefas políticas
que não estariam sendo cumpridas ou caberia à própria dinâmica interna de nossa economia superar o ritmo moderado de nosso crescimento, cujos efeitos medíocres sobre
nossa escandalosa distribuição
de renda se fazem sentir a todo
momento? Em outras palavras,
feita a transição para a democracia, a responsabilidade de
nosso atraso caberia aos próprios agentes econômicos?
Não creio, como pensam alguns amigos, na irrelevância da
política na fase atual do desenvolvimento capitalista, mas
nem por isso desconheço o
atual divórcio entre ela e a atividade econômica. Mas ele me
parece muito diferente entre
nós e os países desenvolvidos.
Embora o atual desempenho
da democracia norte-americana não seja nada recomendável
-principalmente no que concerne à defesa dos direitos individuais, aos procedimentos
de representação e ao controle
do império- essas falhas não
têm efeitos imediatos no desempenho da economia. Isso é
impossível entre nós e na
maioria dos países emergentes,
que, como sempre, precisamos
ao mesmo tempo erguer instituições e sanar problemas que
geralmente aparecem quando
elas já estão prontas.
Relativamente bem estruturada, a economia norte-americana está relativamente protegida dos erros e das atrocidades
do governo Bush, quando não
ganha com eles.
Em contrapartida, as trapalhadas políticas de Lula, sua
prática de passar ao longo das
crises e de agir antes de tudo visando o cultivo de sua própria
imagem, enfraquece o poder de
decisão do Estado como um todo, abrindo espaço para as políticas mais desconcentradas.
Chegamos ao ponto de ter
hoje um ministério que não pode agir como ministério, isto é,
ter rumo e planejamento. Em
suma, se do ponto de vista
comparativo nossa democracia
funciona mais ou menos como
as outras, existe uma enorme
diferença entre esse funcionamento num país desenvolvido
e outro que precisa de boas políticas para se desenvolver. O
que está faltando?
A democracia evolui junto
com seu controle, a antidemocracia, como o denomina Pierre Rosanvallon num livro que
acaba de publicar ("La Contre-Démocratie - La Politique à l'Âge de la Défiance", A Contrademocracia - A Política na Era da
Desconfiança, Seuil). Numa
época como a nossa -de risco
no dizer de Ulrich Beck, ou da
desconfiança naquele de Rosanvallon- os procedimentos
formais da democracia são cotidianamente controlados por
poderes que dão conteúdo a essas formas, o poder de vigiar,
de denunciar, de anotar.
Embora os brasileiros sejam
um dos povos mais desconfiados do planeta (somente 2,8%
declaram que confiam geralmente nas pessoas, enquanto
esse índice alcança 66,5% na
Dinamarca), são fraquíssimas
nossas instituições controladoras. Por certo elas existem, como a Transparência Brasil, e,
particularmente agora, a rede
de informação e de protesto
que se tece na internet.
Mas em geral é pequeno o
peso político do terceiro setor,
das organizações não-governamentais, a despeito de seu bom
tamanho. Parece-me que isso
resulta de elas serem antes de
tudo reivindicativas, lutarem
por direitos e maior participação nos fundos públicos. Sob
esse aspecto, elas se infiltram
na política sem desempenhar
um papel político ativo, sobretudo, sem estar controlando o
procedimento democrático.
No fundo, não se elevam ao
plano político, gerir negativamente o Estado, força criadora
por sua negatividade, mas permanecem no nível da sociedade civil. E assim tendem a privilegiar a política a curto prazo,
sempre beirando a politicagem.
Daí meu entusiasmo com a
anticandidatura que um grupo
de deputados suprapartidários
lança para a presidência da Câmara. É uma reação que vem
do próprio Congresso, que não
se resume a declarações morais
altissonantes, que não propõe
uma reforma do sistema político em grande estilo, mas modestamente marca posição, recusa os acordos visando antes
de tudo a partilha do poder burocrático e topa até mesmo
perder para se fazer ouvir.
Chegamos assim a uma situação esdrúxula. Ganhar ou
perder faz parte do jogo político. É inútil jogar quando faltam
as condições de sucesso. Isto,
porém, somente vale quando a
própria atividade política está
prenhe de uma legitimidade
mínima, não mais quando essa
atividade deixa de ser controlada por seu contrário. Ora, as incríveis malandragens da última
legislatura afetaram a imagem
do Congresso como um todo.
Não creio que o cumprimento dos requisitos formais da
eleição e da diplomação baste
para compensar essa perda. A
nova legitimidade somente pode nascer do próprio exercício
das funções representativas.
Isto se torna impossível quando não se sabe mais quem é
quem, com a exceção, talvez,
dos ladrões contumazes que foram eleitos. Para jogar ao mar o
peso dessa "herança maldita", a
nova legislatura necessita mostrar a que vem, começar desde
logo delimitando o terreno onde poderá exercer suas funções
e demandar seus direitos.
É hora de tomar posição, deixar cair a máscara de funcionário do governo e de si próprio, e
passar a semear um novo campo onde a verdadeira política
poderá ser jogada. Daí a importância desse movimento suprapartidário. Reafirma que no
Congresso existe um movimento de moralização da política, uma resistência ao predomínio total do cinzento.
Em vez da grande política,
política miúda, mas política semeadora. Aliás, o mesmo esquema não poderia ser aplicado a outras esferas da política,
como aquela que hoje desgraça
a universidade?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia
do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve na seção "Autores".
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