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+(L)ivros
Cultura do
crioulo doido
Dois estudos discutem as relações entre literatura e gêneros musicais como tango e samba
LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Por quais motivos a
malandragem permanece como um
traço distintivo de
nossa cultura?", pergunta Giovanna Dealtry, autora de "No Fio da Navalha - Visões da Malandragem na Literatura e no Samba".
Em seu estudo, ela descortina fatos e personagens da cultura brasileira e, mais especificamente, do Rio de Janeiro do
início do século 20, como se
fosse uma mascarada, vista como um jogo de esconde-esconde social.
Mostra como o samba, de
símbolo de malandragem -negativo-, se torna um de nossos
"símbolos nacionais".
Ao buscar a genealogia do
compositor de samba carioca, o
livro nos faz mergulhar na própria construção de suas estratégias de identidade mutante,
em que ser "malandro" é uma
ferramenta de sobrevivência.
Eram compositores que não
queriam ser confundidos com
malandros ligados à marginalidade, que queriam reconhecimento e espaço social, mas que
ao mesmo tempo se serviam de
uma certa mitologia desse universo como distintivo de promoção social.
O negro e a cidade
A famosa polêmica entre
Noel Rosa e Wilson Batista é
um dos exemplos aparentes
desse processo de tensão no estabelecimento do espaço social
do sambista.
O compositor que passava a
ganhar a vida com o samba, e
que tinha em Sinhô um de seus
exemplos mais conhecidos,
transitava entre dois mundos
na sociedade carioca, modulando sua atuação segundo a situação. Isso possibilitou que atravessasse fendas de classe, estabelecendo novas pontes e possibilidades.
Em "No Fio da Navalha" fica
claro como o índio, símbolo de
preguiça e desajuste ao mundo
civilizado, à época vai sendo
afastado do imaginário de um
Brasil positivista. Já em 1888,
havia a "proibição das fantasias
de índios durante o Carnaval da
belle époque".
O Estado precisava transformar o negro liberto em operário padrão. Nesse contexto,
uma série de perseguições contra a sua cultura se operou, como a proibição da prática da capoeira.
Giovanna Dealtry nos faz
percorrer os meandros desse
processo de transformação e
assimilação do negro no contexto da cidade.
Estudando a literatura carioca do maldito Antonio Fraga
em "Desabrigo", de cujas personagens as gírias "espelham os
sambistas da Cidade Nova", e
recorrendo a Luiz Edmundo e
João do Rio, cronistas essenciais do Rio de Janeiro dos
"tempos dos vice-reis" e do início do século 20, tem-se uma
dimensão retrospectiva das negociações sociais que se operaram e que hoje ocorrem, só que
na ponta do fuzil.
Com fluidez e sem afetação
acadêmica, "No Fio da Navalha" acompanha, em paralelo,
as dimensões mais mundanas
do universo do Rio de Janeiro,
ao lado de uma reflexão mais
profunda num âmbito socioantropológico.
Modernidade primitiva
Já "Modernidades Primitivas - Tango, Samba e Nação", da
argentina Florencia Garramuño, busca, por meio do estudo
do tango e do samba, investigar
o "paradoxo de modernidade
primitiva" e os sentidos culturais que dele emergem.
Sentidos culturais cambiantes na formação dos conceitos
fundadores do que se compõe
uma identidade nacional levam
a autora a tecer paralelos entre
a trajetória do tango na Argentina e a do samba por aqui.
Trata também de suas relações com a literatura de vanguarda do início do século 20.
À raiz negra, ora exaltada
(por Jorge Luis Borges, por
exemplo) e ora contestada,
num processo de aburguesamento e domesticação do tango -à maneira do samba-,
"acompanham e registram, como fiéis termômetros, a civilização e a modernização das
culturas argentina e brasileira", segundo Garramuño.
Discussões similares sobre a
genealogia dos estilos, entre
outras, mostram trajetórias
próximas no período do estabelecimento do tango e do
samba em suas respectivas culturas urbanas.
O maior mérito do livro e sua
originalidade é apresentar os
elementos culturais e as negociações sociais envolvidas sem
perder de vista especificidades,
buscando uma verdade totalizadora e teórica.
Tecidos sociais
Se muitos elementos os aproximam, como suas origens, há
outros tantos que os distinguem. Tangueiros e sambistas
transitavam entre os tecidos
sociais, e nesse trânsito traficavam símbolos, gírias, hábitos e
comportamentos próprios.
Seguindo a máxima do Velho
Guerreiro, Chacrinha, não vinham para explicar, mas "para
confundir".
LIVIO TRAGTENBERG é compositor e criador da
Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo.
NO FIO DA NAVALHA - VISÕES DA MALANDRAGEM NA
LITERATURA E NO SAMBA
Autor: Giovanna Dealtry
Editora: Casa da Palavra (tel. 0/ xx/
21/ 2222-3167)
Quanto: R$ 32 (208 págs.)
MODERNIDADES PRIMITIVAS -
TANGO, SAMBA E NAÇÃO
Autor: Florencia Garramuño
Tradução:
Rômulo Monte Alto
Editora: UFMG (tel. 0/ xx/31/ 3409-4650)
Quanto: R$ 43 (224 págs.)
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