São Paulo, domingo, 14 de fevereiro de 2010

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+(c)ultura

Uma descoberta literária

Encontrado nos EUA diário escrito por fazendeiro escravocrata no século 19 que inspirou personagens e situações de obras de Faulkner

PATRICIA COHEN

O clímax do romance de William Faulkner "Desça, Moisés", de 1942, acontece quando Isaac McCaslin finalmente resolve abrir os livros de contabilidade, com capas de couro, da fazenda de seu avô, com "suas capas rachadas e marcadas" e "páginas amareladas rabiscadas em tinta esmaecida" -provas de que sua família fora proprietária de escravos.
Acaba de ser descoberto algo que parece ser o documento no qual Faulkner se inspirou para descrever aquele livro-caixa e também fonte de inúmeros nomes, incidentes e detalhes que povoam seu fictício condado de Yoknapatawpha.
O manuscrito original, um diário que data da metade do século 19, foi escrito por Francis Terry Leak, um fazendeiro rico do Mississippi [onde o romancista nasceu, em 1897] cujo bisneto Edgar Wiggin Francisco Jr. foi amigo de Faulkner desde a infância dos dois.
O filho de Francisco, Edgar Wiggin Francisco 3º, hoje com 79 anos, recorda as visitas frequentes de Faulkner à casa da fazenda da família em Holly Springs, Mississippi, nos anos 1930, dizendo que o escritor era fascinado pelos vários volumes do diário.
Francisco disse que os via nas mãos de Faulkner e se recorda de que este "vivia fazendo anotações copiosas".

Processo criativo
Especialistas estão espantados e intrigados não apenas com este vislumbre do processo de trabalho de Faulkner, mas também com o material que pode ter inspirado o autor premiado com o Nobel de Literatura, em 1949.
"Acho que é uma das descobertas literárias mais sensacionais das últimas décadas", disse John Lowe, professor de inglês na Universidade do Estado de Louisiana que está escrevendo um livro sobre Faulkner.
Sally Wolff-King, estudiosa da literatura sulina na Universidade Emory [em Atlanta] e a pessoa que trouxe à tona a ligação entre o escritor e o diário, descreveu a descoberta como "um achado literário do tipo que só se faz uma vez na vida".
"O diário e várias histórias de família parecem ter dado o tom filosófico e temático de algumas das obras mais importantes de Faulkner", acrescentou. Os nomes de escravos que pertenceram a Leak -Caruthers, Moses, Isaac, Sam, Toney, Mollie, Edmund e Worsham- aparecem todos em "Desça, Moisés".
Outros nomes registrados, como Candis (Candace, no livro) e Ben, aparecem em "O Som e a Fúria" [1929, Cosac Naify], enquanto Old Rose, Henry, Ellen e Milly são personagens de "Absalão, Absalão!" [1936, a ser editado neste ano pela editora Cosac Naify].
Estudiosos de Faulkner acharam especialmente fascinante sua decisão de dar nomes de escravos a seus personagens brancos. A professora Wolff-King disse acreditar que o escritor "estivesse tentando recriar as vidas dos escravos e lhes dar uma voz".

O valor dos escravos
A professora Wolff-King vinha trabalhando em um livro sobre pessoas que conheceram Faulkner e acabou entrando em contato com Francisco porque ele foi aluno na Universidade Emory.
Quando visitou sua casa, em Atlanta, a mulher dele sugeriu que mostrasse à professora uma cópia datilografada do livro-caixa original.
Ela incluía um fac-símile de uma página que trazia uma lista dos valores em dólares pagos por escravos individuais.
"Naquele momento, me dei conta de que aquele diário pode ter influenciado o livro-caixa e o registro da venda de escravos vistos em "Desça, Moisés", e que também era provável que tivesse sido fonte importante de boa parte da obra de Faulkner", disse Wolff-King, que estuda o escritor há 30 anos.
Uma prévia curta de sua descoberta está na edição do outono de 2009 do "The Southern Literary Journal".

Passado no presente
Wolff-King argumenta que elementos e termos do diário aparecem repetidas vezes na obra de Faulkner, incluindo o tique-taque de um relógio com que Quentin Compson é obcecado em "O Som e a Fúria".
Embora os peritos literários tenham sido pegos de surpresa com essa descoberta, Faulkner, mais que ninguém, teria compreendido como o passado é capaz de intrometer-se no presente, de modo imprevisível.


A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Clara Allain .


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