|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(c)ultura
Uma descoberta literária
Encontrado nos EUA diário escrito por fazendeiro escravocrata no século 19
que inspirou personagens e situações de obras de Faulkner
PATRICIA COHEN
O clímax do romance de William
Faulkner "Desça,
Moisés", de 1942,
acontece quando
Isaac McCaslin finalmente resolve abrir os livros de contabilidade, com capas de couro, da
fazenda de seu avô, com "suas
capas rachadas e marcadas" e
"páginas amareladas rabiscadas em tinta esmaecida" -provas de que sua família fora proprietária de escravos.
Acaba de ser descoberto algo
que parece ser o documento no
qual Faulkner se inspirou para
descrever aquele livro-caixa e
também fonte de inúmeros nomes, incidentes e detalhes que
povoam seu fictício condado de
Yoknapatawpha.
O manuscrito original, um
diário que data da metade do
século 19, foi escrito por Francis Terry Leak, um fazendeiro
rico do Mississippi [onde o romancista nasceu, em 1897] cujo
bisneto Edgar Wiggin Francisco Jr. foi amigo de Faulkner
desde a infância dos dois.
O filho de Francisco, Edgar
Wiggin Francisco 3º, hoje com
79 anos, recorda as visitas frequentes de Faulkner à casa da
fazenda da família em Holly
Springs, Mississippi, nos anos
1930, dizendo que o escritor
era fascinado pelos vários volumes do diário.
Francisco disse que os via
nas mãos de Faulkner e se recorda de que este "vivia fazendo anotações copiosas".
Processo criativo
Especialistas estão espantados e intrigados não apenas
com este vislumbre do processo de trabalho de Faulkner,
mas também com o material
que pode ter inspirado o autor
premiado com o Nobel de Literatura, em 1949.
"Acho que é uma das descobertas literárias mais sensacionais das últimas décadas", disse
John Lowe, professor de inglês
na Universidade do Estado de
Louisiana que está escrevendo
um livro sobre Faulkner.
Sally Wolff-King, estudiosa
da literatura sulina na Universidade Emory [em Atlanta] e a
pessoa que trouxe à tona a ligação entre o escritor e o diário,
descreveu a descoberta como
"um achado literário do tipo
que só se faz uma vez na vida".
"O diário e várias histórias de
família parecem ter dado o tom
filosófico e temático de algumas das obras mais importantes de Faulkner", acrescentou.
Os nomes de escravos que
pertenceram a Leak -Caruthers, Moses, Isaac, Sam, Toney, Mollie, Edmund e Worsham- aparecem todos em
"Desça, Moisés".
Outros nomes registrados,
como Candis (Candace, no livro) e Ben, aparecem em "O
Som e a Fúria" [1929, Cosac
Naify], enquanto Old Rose,
Henry, Ellen e Milly são personagens de "Absalão, Absalão!"
[1936, a ser editado neste ano
pela editora Cosac Naify].
Estudiosos de Faulkner
acharam especialmente fascinante sua decisão de dar nomes
de escravos a seus personagens
brancos. A professora Wolff-King disse acreditar que o escritor "estivesse tentando recriar as vidas dos escravos e
lhes dar uma voz".
O valor dos escravos
A professora Wolff-King vinha trabalhando em um livro
sobre pessoas que conheceram
Faulkner e acabou entrando
em contato com Francisco porque ele foi aluno na Universidade Emory.
Quando visitou sua casa, em
Atlanta, a mulher dele sugeriu
que mostrasse à professora
uma cópia datilografada do livro-caixa original.
Ela incluía um fac-símile de
uma página que trazia uma lista
dos valores em dólares pagos
por escravos individuais.
"Naquele momento, me dei
conta de que aquele diário pode
ter influenciado o livro-caixa e
o registro da venda de escravos
vistos em "Desça, Moisés", e que
também era provável que tivesse sido fonte importante de boa
parte da obra de Faulkner", disse Wolff-King, que estuda o escritor há 30 anos.
Uma prévia curta de sua descoberta está na edição do outono de 2009 do "The Southern
Literary Journal".
Passado no presente
Wolff-King argumenta que
elementos e termos do diário
aparecem repetidas vezes na
obra de Faulkner, incluindo o
tique-taque de um relógio com
que Quentin Compson é obcecado em "O Som e a Fúria".
Embora os peritos literários
tenham sido pegos de surpresa
com essa descoberta, Faulkner,
mais que ninguém, teria compreendido como o passado é capaz de intrometer-se no presente, de modo imprevisível.
A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Clara Allain .
Texto Anterior: +(a)utores: Corpos fechados Próximo Texto: +(L)ivros: Cultura do crioulo doido Índice
|