São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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O caos organizador

Divulgação
Rapaz faz sexo com a mãe da namorada em cena do filme "Ken Park", de Larry Clark, em cartaz em São Paulo


EM ENTREVISTA EXCLUSIVA, GILLES LIPOVETSKY DIZ QUE A INTENSIFICAÇÃO DOS PILARES DA MODERNIDADE -INDIVÍDUO, MERCADO E TECNOLOGIA- ESTÁ LEVANDO A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA A UMA ESPIRAL VERTIGINOSA DE HARMONIA E HIPERCOMPETIÇÃO, RECATO E HIPERPORNOGRAFIA

Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!

Já se disse várias vezes que a pós-modernidade morreu, mas ninguém até agora havia afirmado de forma tão cabal que ela nem sequer existira. É justamente o que defende o filósofo Gilles Lipovetsky em seu novo livro, "Les Temps Hypermodernes" [Os Tempos Hipermodernos, ed. Grasset, 198 págs., 12 euros], que acaba de ser publicado na França.
Lipovetsky, 59, argumenta que, desde os anos 1950, o mundo vive uma intensificação jamais vista do tripé que sempre caracterizou a modernidade: o mercado, o indivíduo e a escalada técnico-científica. A partir dos anos 80, com o avanço brutal da globalização e das novas tecnologias de comunicação, esse fenômeno -que ele batizou de hipermodernidade- adquire uma velocidade espantosa, passando a interferir diretamente sobre comportamentos e modos de vida.
Mais do que um lance de retórica, o termo hipermodernidade define a situação paradoxal da sociedade contemporânea, dividida de modo quase esquizofrênico entre a cultura do excesso e o elogio da moderação. De um lado, diz Lipovetsky, "é preciso ser mais moderno que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda"; de outro, valorizam-se "a saúde, a prevenção, o equilíbrio, o retorno da moral ou das religiões orientais".
Esse convívio frenético de ordem e desordem -ou "caos organizador", como define Lipovetsky- que identifica a sociedade hipermoderna resulta, paradoxalmente, na fragilização do indivíduo, que vê ruir as antigas formas de coesão social -Estado, religião, partidos revolucionários.
Otimista -"isso hoje é um defeito"-, ele rebate visões apocalípticas sobre o futuro e diz que as crises sempre foram inerentes ao capitalismo -"é um sistema flexível, que aceita críticas e sabe se adaptar".
Na entrevista a seguir, concedida ao Mais! por telefone de Grenoble, onde leciona na universidade local, Lipovetsky comenta também "Metamorfoses da Cultura Liberal" (ed. Sulina, trad. Juremir Machado da Silva, 88 págs., R$ 22, tel. 0/xx/ 51/3311-4082), que está saindo no Brasil. O livro reúne três conferências dadas no Canadá, em que o pensador discute o estado da moral hoje, a cultura empresarial e a "onipotência" das mídias. Lipovetsky é também autor de "O Império do Efêmero", sobre moda, e "A Terceira Mulher", sobre feminismo (publicados pela Companhia das Letras).

A pós-modernidade foi apenas um sonho de uma noite de verão?
Eu fui um dos que popularizaram, logo após [Jean-François] Lyotard [1924-98], a noção de pós-modernidade. Ela correspondia a algo próximo do "vivido", porque se distanciava dos grandes discursos revolucionários, a política se tornava menos importante, a idéia de que viver com vista no futuro resultava em benefício para o tempo presente. Mas a conceitualização, a idéia de pós-modernidade -isto é, de algo que vem após a modernidade-, evidentemente não tem nenhum sentido, isso não foi exatamente um sonho, como você diz, mas um "conceito falso", porque nós nunca estivemos "além" da modernidade. Houve, isso sim, uma outra modernidade. O que se coloca em seu lugar a partir dos anos 1950, 60 não foi um "após" a modernidade, mas, sim, uma nova forma de modernidade, que já era o início da hipermodernidade.
Assim, há apenas a modernidade, que se inicia, grosso modo, no século 18 e se estende até anos 1950, 1960, quando a hipermodernidade ainda começava, intensificando-se de forma brutal nos anos 1980, por causa da globalização, do ultraliberalismo, das novas tecnologias de comunicação -a internet sobretudo. Na verdade, nunca fomos pós-modernos, mas apenas modernos, com tudo o que isso implica -totalitário, revolucionário, republicano, laico.

A pós-modernidade foi então uma espécie de transição?
Sim, uma transição cultural, mas que não chegou a ser fundada conceitualmente, pois a idéia que se tinha de que se havia chegado ao fim da modernidade era uma idéia falsa. A modernidade se pôs em curso há muito tempo, e desde o século 16 já há sinais de seu advento. Mas é a partir do século 18 que se configuram os elementos constitutivos principais da modernidade, que são essencialmente três.
O primeiro é o indivíduo, isto é, uma sociedade que reconhece os direitos do homem, com seu correlato, que é a democracia. O segundo elemento é o mercado: Adam Smith, a "mão invisível", já no século 18. E o terceiro elemento é a dinâmica tecnocientífica. Esses três elementos constitutivos da modernidade nunca chegaram a ser destruídos -apenas contestados ou desenvolvidos. Ora, o que podemos observar hoje é a concentração e a radicalização dessas três lógicas.

Sua intensificação?
Exatamente, como a clonagem, a biotecnologia, a conquista do espaço, que transmite um sentimento de exacerbação, de intensificação da lógica tecnocientífica, que não tem limites. Ao lado disso, há também a consolidação dos princípios da modernidade, isto é, os direitos do homem.
E, em terceiro lugar, o domínio do mercado em escala mundial, e, ainda que ele tenha inimigos, como os movimentos antiglobalização que se reúnem em torno do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o problema é que eles não oferecem nenhum modelo alternativo. É preciso regular a globalização, mas a questão é que não há nenhum outro modelo, e é nesse sentido que podemos falar de hipermodernidade -trata-se, pois, de uma modernidade que não tem verdadeiramente nenhum modelo concorrente.

É nesse sentido que o sr. fala em seu livro de uma "cultura do excesso"?
A hipermodernidade é uma cultura paradoxal, que combina o excesso e a moderação. Excesso, porque a lógica hipermoderna não tem mais inimigos e tudo é mais rápido-não basta ser moderno, é preciso ser mais moderno que o moderno, é preciso ser mais jovem que o jovem, é preciso estar mais na moda que a própria moda... Tudo se torna "hiper": hipermercado, hiperclasse, hipercapitalismo, hiperpotência, hiperterrorismo, hipertexto...

... hiperpornografia...
Sim, ou hiperurbanismo -a cidade de São Paulo, por exemplo. Há um sentimento de excrescência, de ultrapassagem dos limites, em que as coisas caminham cada vez mais rapidamente porque os limites da tradição -Estado, religião- se perderam.
Mas, ao mesmo tempo, a sociedade hipermoderna valoriza princípios como a saúde, a prevenção, o equilíbrio, o retorno da moral ou de religiões orientais. Logo, existem comportamentos inteiramente excessivos, como a pornografia, em que absolutamente tudo é permitido, embora ao mesmo tempo a vida sexual seja muito moderada. Quando se observam as estatísticas sobre a vida sexual da população, ela não é de modo algum orgíaca ou permissiva -ao contrário, o número de parceiros que os indivíduos têm é, em termos relativos, bastante limitado.
Há naturalmente formas alternativas, mas são muito, muito limitadas -a população é basicamente conservadora em matéria sexual.
Um segundo exemplo: de um lado, há um gasto excessivo com saúde. Não sei quanto ao Brasil, onde há um grande custo social, mas, se você considerar a América do Norte ou a Europa Ocidental, há um crescimento exponencial e ilimitado de despesas -as pessoas cada vez mais vão ao médico, realizam exames médicos, gastam cada vez mais com remédios, numa verdadeira espiral.
Ao mesmo tempo, é preciso estar atento ao que se come -preferem-se hoje os produtos orgânicos-, as pessoas fazem ginástica para não engordar, bebem água mineral, ingere-se menos álcool, há uma verdadeira cruzada contra o tabaco e as drogas.
Logo, se de um lado há o excesso, de outro há a recomposição de uma certa ordem no comportamento, e é por isso que chamo a hipermodernidade de "caos organizador", uma "desordem organizada".


O grande problema da hipermodernidade não é tanto a disfuncionalidade, mas a fragilização dos indivíduos -suicídio, ansiedade, depressão, medo dos desastres ecológicos, medo dos pais, medo da Aids, medo de envelhecer, medo do desemprego; a modernidade tinha confiança no futuro; agora temos a dúvida


E por que isso ocorre?
Acredito que é porque existem normas contraditórias. De um lado, a hipermodernidade é a destruição de limites -é preciso ir sempre mais longe, conquistar sem cessar novos territórios, a ciência persegue a inovação a todo custo, as mídias se tornam cada vez mais radicais porque é preciso conquistar audiência-, mas ao mesmo tempo existem normas -como o respeito aos direitos do homem, os valores éticos, a saúde, o amor- que não deixaram de existir e que continuam a orientar o comportamento de grupos e indivíduos.
O apaixonante da hipermodernidade é que se trata dessa combinação um pouco contraditória entre normas ilimitadas completamente loucas e uma recomposição de princípios que vêm de muito longe.

Os "adultescentes" também são um sintoma desse excesso hipermoderno?
Sim, a chamada síndrome de Peter Pan, os adultos que não querem envelhecer, é também uma forma de excesso. Pode-se muito facilmente se divertir com esse comportamento e denunciar uma infantilização da população, mas de forma alguma estou seguro disso, não vejo a questão dessa forma.

O sr. é mais otimista?
É verdade, e isso hoje é um defeito [risos]. Mas trata-se simplesmente de considerar que as coisas não são completamente negativas. As mesmas pessoas que se comportam como crianças adultas ou adultos crianças são pessoas que também podem ser responsáveis. Trata-se talvez de uma forma de hedonismo, mas não de pessoas que, necessariamente, não têm nenhum senso de responsabilidade.

Um hedonismo hipermoderno?
Sim, um hedonismo que significa que não se precisa renunciar a prazeres do tempo da infância, um hedonismo que talvez seja a expressão de uma sociedade que se torna cada vez mais difícil...

Mas que, contudo, não está à beira do precipício, como diriam os marxistas ortodoxos?
Não, sou mais otimista. Acredito que haja dificuldades, mas desconfio bastante das visões apocalípticas da sociedade, pois desde Marx se anuncia que o capitalismo está à beira do precipício. Em seguida o trotskismo desenvolveu essa tese da crise insuperável do capitalismo. E isso não é exato porque o capitalismo é um sistema flexível, que sabe se adaptar. Há crises, sem dúvida, pois o capitalismo só caminha com crises, elas são inerentes ao seu funcionamento, mas sua força está em que ele, de certa maneira, aceita sua contestação e, portanto, é capaz de se corrigir.

Vivemos hoje em uma sociedade esquizofrênica, em que, como o sr. diz em seu livro, "no universo funcional da técnica crescem os comportamentos disfuncionais"?
Sim, uma sociedade esquizofrênica em que convivem, de um lado, uma sociedade hiperfuncional, funcionalidade da técnica, da ciência, que trabalha cada vez mais critérios mensuráveis, de eficácia e operacionalidade. Paralelamente, assiste-se à ascensão de comportamentos disfuncionais, e os dois existem juntos.
A disfuncionalidade é uma forma de patologia, é uma patologia que cresce na sociedade -vê-se o retorno de crenças esotéricas, arcaicas, a prática e o estudo da magia retorna às universidades, tem-se uma espiral muito importante de ansiedade, de depressão, de todas as formas de criminalidade, como os crimes em série.
Logo, tem-se de um lado uma sociedade em que cada vez mais impera a ordem e, de outro, a desordem -no fundo, um quadro de patologia e caos.

Essa disfuncionalidade é um contrapeso ou uma conseqüência da tecnociência?
Uma conseqüência, mas certamente não uma conseqüência direta da tecnociência, mas, sim, da hiperindividualização. Pois as sociedades anteriores eram sociedades de tradição, em que os indivíduos eram enquadrados, ora pela família, ora pela região, ora pela igreja -por todo um dispositivo que dava força aos indivíduos. Já a sociedade de mercado, juntamente com a liberação dos costumes, fez tudo isso em pedaços, e o indivíduo se encontra subitamente só, não tem mais nenhuma força exterior a ele.
Isso Durkheim já havia analisado no século 19 [em "O Suicídio", ed. Martins Fontes], quando explicou o aumento das taxas de suicídio -e não por causa da técnica, mas porque os indivíduos estavam perdidos e não dispunham mais de nenhuma socialização forte. Dito de outra maneira, o grande problema da hipermodernidade não é tanto a disfuncionalidade, mas a fragilização dos indivíduos -suicídio, ansiedade, depressão, medo dos desastres ecológicos, medo dos pais, medo da Aids, medo de envelhecer, medo do desemprego, do futuro.
A modernidade tinha confiança no futuro, havia a idéia de progresso incessante; agora temos a dúvida, não confiamos mais no progresso automático em direção ao melhor.
Uma sociedade complexa e paradoxal porque se, de um lado, se estimula o prazer -o hedonismo, o consumo, as férias, a moda-, de outro, é uma sociedade que produz muita ansiedade e psicopatologias.

O que irá substituir o espírito de tradição -a igreja, a nação, os partidos revolucionários- como contrapeso para o indivíduo?
Não estou certo de que iremos encontrar algum contrapeso. A religião, por exemplo, sofreu uma individualização. Assim como no Brasil, onde o sentimento religioso se recompõe, se reconstitui, nos EUA, que são uma hiperpotência, o sentimento religioso é muito ativo, mas em ambos não funciona mais como antigamente. Então, não creio que haja equivalentes da tradição como era entendida.

O sr. vê então uma espécie de interiorização das antigas formas de coesão social?
Sim, um pouco, mas ao mesmo tempo se trata de uma sociedade que consagra o indivíduo. Isso, porém, não quer dizer que as formas coletivas desapareceram, mas que são reguladas tendo em vista o indivíduo, sua liberdade, suas escolhas, seus gostos.
Não acredito que o futuro esteja se voltando para o passado. O mundo da tradição morreu, e vivemos em uma sociedade de projetos, e o drama maior dessa sociedade é justamente que para muitas pessoas simplesmente não há projetos -é a pobreza, a miséria, a exclusão. O objetivo maior da sociedade hipermoderna deve ser o de fornecer instrumentos para que essas pessoas tenham algum futuro -mas esse é um desafio enorme para o século 21.

Retomar a tradição é justamente o que propõe o crítico Terry Eagleton em seu livro "After Theory" [Depois da Teoria, lançado no fim de 2003 na Inglaterra], em que decreta o fim do pós-modernismo.
Não o li, mas acho que isso é uma ilusão, a história não recomeça. A nossa realidade é o respeito aos indivíduos. Talvez não seja muito, mas isso significa que não estamos em um universo inteiramente sem rumo ou privado de todas as referências.

Mas em um país como o Brasil, de desigualdade social flagrante, por vezes soa um pouco retórico falar de respeito ao indivíduo...
Certamente, mas se trata de um ideal do qual se deve se aproximar. Sei que a vida nas favelas está longe disso, mas, se não houvesse os direitos do homem, não haveria meio algum de criticar a realidade.

O que virá após a hipermodernidade?
Bem, ela não tem nem sequer 50 anos. Mas,por exemplo, quando [Francis] Fukuyama fala do fim da história, acho que ele não está correto, porque a democracia não é apenas uma forma política, mas também um estado social, com classes, modos de vida, educação, e isso nós simplesmente inventamos. Portanto ainda não é possível saber o que será a hipermodernidade em 20 ou 50 anos -será preciso inventá-la. Há tendências -a dinâmica tecnocientífica irá continuar, a democracia provavelmente deverá se perpetuar, assim como o mercado.
Mas, mesmo que o mercado e democracia venham a ser provavelmente o futuro, nós não sabemos que democracia será, que mercado será. Pois a democracia tem uma história, ela não foi sempre a mesma -ela é o modo como se educam as crianças, que escola se construirá, como se irão reduzir as desigualdades, e tudo está em aberto. Não estamos mais em uma época em que seja possível determinar as leis da história. A história não está escrita nas coisas, ela se inventa.

De que trata "Metamorfoses da Cultura Liberal", que está sendo lançado no Brasil?
É uma coletânea de três conferências que dei no Canadá. Uma sobre o estado da moral na nossa sociedade, uma sobre o sentido das metamorfoses da cultura liberal, discutindo a tese de que a economia não precisa da moral. Hoje, há uma nova regulação do mundo liberal que integra as exigências éticas, não de modo puro, mas inteligente, de modo a melhor captar o mercado e assim se impor à concorrência. Procuro mostrar o que há de aceitável e inaceitável nessa instrumentalização da moral.
O terceiro estudo questiona a onipotência das mídias. Minha resposta é um pouco contrastada: de fato as mídias vêem seu poder crescer cada vez mais, mas ele tem limites.

E quais são eles?
Por exemplo, no caso Clinton/Lewinsky, em que, apesar da campanha incessante contra o presidente realizada pela TV e pela imprensa ao longo de vários meses -pedindo sua destituição-, a opinião pública americana não mudou.

Então qual é exatamente o papel da mídia hoje?
Ainda é considerável, pois, como a tradição não tem mais a força de antigamente, é na mídia que as informações, os dados da sociedade são veiculados. Pode-se analisar a mídia como algo que vem condicionar as pessoas, mas pode-se também dizer que ela contribui para uma maior reflexividade.

Então as mídias ocupam o vazio deixado pela crise de legitimidade da sociedade hipermoderna?
Sim, mas de uma maneira inteiramente diferente, porque a tradição não se discute, ela não permite o questionamento: a tradição é a repetição, enquanto a mídia, em tese, retransmite uma informação para fazer mudar.

Onde encomendar
"Les Temps Hypermodernes" pode ser encomendado, em SP, na livraria Francesa (0/xx/11/3231-4555) e, no Rio de Janeiro, na livraria Leonardo da Vinci (0/xx/21/2533-2237).



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