São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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+ arte

Criticado pelo modo como tratava as dissonâncias, o compositor italiano contra-atacou com uma artimanha de guerra e inaugurou o estilo moderno

Monteverdi, um Maquiavel na música

Rogério Cezar de Cerqueira Leite
do Conselho Editorial

Durante a Revolução Francesa, em 1794 mais precisamente, foi guilhotinado um dos primeiros grandes musicólogos da história moderna. Ele anunciara a primeira "lei da musicologia": "Em música nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Mais tarde esse princípio veio a ser conhecido como a primeira lei da termodinâmica. O musicólogo sacrificado em nome da liberdade e da igualdade se chamava Antoine Laurent Lavoisier e, embora os termos com que em realidade enunciou seu princípio sejam bastante diversos dos mencionados acima e consagrados pela tradição, o significado é o mesmo. Na história da música não há revoluções, apenas transformações. Eis por que historiadores e comentaristas tanto se contradizem. Uns afirmam que Beethoven foi um revolucionário, outros atestam com a mesma convicção que era um conservador, um reacionário, pois nunca conseguiu, de fato, se livrar da "forma sonata" e de outras fórmulas estruturais clássicas. Críticas mais severas ainda são dirigidas a Brahms, que é freqüentemente e com alguma razão acusado de arcaizante, enquanto certos autores o consideram como intemporal, acima de estilos e de categorias. Com Bach há uma certa benevolência. Teria ele a infelicidade de acontecer no final de uma era gloriosa, o barroco, e, aceitando a árdua tarefa de resumi-la, de encerrá-la com chave de ouro, não teria tido a oportunidade de inovar. Até seus filhos, músicos de sucesso, contribuíram para essa avaliação.

Regra empírica
Somente Claudio Monteverdi (1567-1643) escapou a essa crítica, e isso ocorreu graças a um maquiavélico estratagema. Criticado acerbamente por comentaristas seus contemporâneos, principalmente o todo-poderoso teórico de então, Artusi, pela sua maneira de tratar dissonâncias, contra-atacou com uma artimanha digna do autor de "A Arte da Guerra". Aliás, vale aqui um comentário ou, mais ainda, o enunciado de uma regra empírica. Críticos sistematicamente atacam o compositor contemporâneo pela inobservância das regras vigentes e, o do passado, pelo seu conservadorismo, pela sua subserviência às normas e princípios da harmonia. O que se pode depreender dessa observação é que o crítico é necessariamente um ente anacrônico. Eis que, entretanto, surge um gênio que derrota com um simples ardil a mais ferrenha crítica. Monteverdi emudece a crítica de seu tempo e simultaneamente se eterniza como revolucionário com uma declaração inequívoca de que um novo estilo estava sendo inaugurado e que, portanto, não havia obrigação nenhuma de novas composições obedecerem as regras do "stile antico". Esse pressuposto confundiu inteiramente seus críticos contemporâneos, mesmo porque ninguém sabia muito bem o que era, ou melhor, o que viria a ser este "stile novo" ou "moderno". Posteriormente, percebendo melhor a realidade da mudança, historiadores passaram a chamar o "antico" de "estilo estrito" e, o moderno, de "livre". Ou seja, não houve de fato uma revolução do estilo, apenas eventuais inobservâncias das regras rígidas de harmonia da maneira que foram proclamadas por Palestrina, além de eventuais usos da monodia, recuperada da Idade Média. E o compositor do barroco continuou atrelado em grande medida às mesmas regras que aquele do Renascimento. A famosa unidade de estilo do Renascimento era quebrada, embora as leis de harmonia, contraponto, ritmo etc. continuassem imperando. Eis por que alguns autores dos séculos 18 e 19 distinguem os dois estilos como "gravis" e "luxurians", o que realmente reflete mais o caráter subjetivo de ambos. E essa ambivalência de estilos atingiu no barroco não somente a música profana como também a eclesiástica. Então o que realmente significa essa segunda prática, esse "stile moderno", "livre", "luxuriante", afinal? Em realidade o que aconteceu de modernização, além da oficialização de algumas dissonâncias, foi uma recuperação de certas formas tradicionais da Idade Média. Monteverdi escolheu seu quinto livro de madrigais para inaugurar o estilo moderno, em mais um notável golpe político. Justamente na forma renascentista dominada pelas regras do "estilo antigo", o madrigal, introduz, de maneira tímida embora, alguns toques da monodia acompanhada, banidas por Palestrina, como Eva o fora do paraíso. A distinção entre uma ária de Monteverdi e uma balada de Machaut do início do século 14 é extremamente sutil.

Homofonia
O barroco abrigará desde então uma permanente competição entre a monodia e a polifonia, como havia já ocorrido na Idade Média, que só se resolverá no classicismo com uma fórmula de conciliação; a homofonia, em que "vozes distintas" se agregam, complementando umas as outras.
Na base do conflito está a questão da "inteligibilidade". A polifonia privilegia a "música" em detrimento do "texto". A monodia, reduzindo o discurso musical a uma única voz, embora acompanhada pelo suporte do baixo-contínuo, facilita a compreensão da narrativa. Aliás, é nessa mesma época que "nasce" a "ópera barroca", com a adoção de uma alternância entre recitativos, segmentos puramente declamados, e árias, onde o canto era reduzido a uma única voz.
Nos dois casos, recitativos e árias, alcançavam-se uma inteligibilidade e uma concisão inatingíveis com a polifonia extremamente elaborada que prevalecia na "maneira antica". Não obstante continuaram sendo usadas formas polifônicas, inclusive, com alguma freqüência, por Monteverdi, em suas obras litúrgicas e em madrigais. Somente da ópera foi a polifonia, desde então, praticamente banida, restrita a momentos muito especiais. A inteligibilidade, a clareza, triunfaria enfim sobre a grandiloqüência espessa da polifonia. A narrativa dramática sobrepujaria a música. Mas não por muito tempo.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite é físico, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas e membro do Conselho Editorial da Folha.


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