São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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+Literatura

Agente duplo

Consultor de James Cameron em "Titanic" e "Avatar", autor americano é acusado de ter inventado informações em seu novo livro e sobre si mesmo

MOTOKO RICH

As editoras de livros se veem há muito tempo como guardiãs da cultura literária. Mas, quando não estão atentas, a verdade com frequência acaba sendo deixada em segundo plano.
Na semana passada a editora Henry Holt & Company deixou de imprimir e vender "The Last Train From Hiroshima" (O Último Trem de Hiroshima), sobre o bombardeio atômico do Japão, porque seu autor baseou parte do livro em uma fonte fraudulenta e, possivelmente, inventou outras fontes.
Não é a primeira vez que uma editora é humilhada pelo trabalho de um autor cuja veracidade não é verificada. Mas esse caso ocorre quando o papel tradicional dos editores se encontra sob pressão econômica e tecnológica.
Com a ascensão dos livros eletrônicos, fabricantes de aparelhos de leitura e varejistas on-line estão exercendo pressão sobre os preços e sobre o modelo tradicional do setor.
E, assim como acontece com gravadoras e jornais, a mídia digital levanta a questão do papel que a editora de livros tradicional vai exercer no futuro. No livro em questão, seu autor, Charles Pellegrino, disse que foi enganado por uma fonte e insistiu em que outras fontes que a editora pôs em dúvida existem de fato.
As editoras dizem que, em última análise, a responsabilidade por erros e falsidades fabricadas deve ser do autor. "Não seria humanamente possível fazer a checagem factual do conteúdo de livros, do mesmo modo como pode ser feito com artigos de revistas, devido à extensão dos textos", disse Robert A. Gottlieb, editor renomado que trabalhou para a editora Alfred A. Knopf e para a "The New Yorker".
Em muitos casos recentes, porém, a impressão que se tem é que os editores não fizeram perguntas básicas aos autores, simplesmente aceitando as versões destes com fé cega.
É o notório caso de James Frey, que inventou detalhes em seu livro autobiográfico sobre dependência química, "Um Milhão de Pedacinhos", que ganhou o endosso da apresentadora de TV Oprah Winfrey. "Há uma linha nebulosa entre "verdade" e invenção na não ficção criativa, mas bons escritores não precisam inventar coisas", disse Jeffrey Porter, professor de escrita de não ficção na Universidade de Iowa.
No caso de Pellegrino, cujo livro afirmava expor um acidente secreto que teria acontecido com a primeira bomba atômica, Porter escreveu: "Talvez a ideia de dar um furo tenha sido irresistível. Mas alguém deveria ter sido cético". Pellegrino disse ter confiado na informação obtida de uma fonte, Joseph Fuoco, que afirmou ter sido substituto de último minuto de um engenheiro de voo em um dos aviões que fizeram a escolta do Enola Gay, a aeronave que despejou a bomba atômica sobre Hiroshima. No final do mês passado, cientistas, historiadores e veteranos denunciaram Fuoco como impostor, dizendo que ele não participou da missão.

Embuste
As dúvidas em relação ao livro só foram manifestadas após ter sido publicado e de leitores terem feito queixas. A editora disse que publicaria edições corrigidas, removendo as referências a Fuoco. Mas então a Holt começou a examinar informações que recebeu sobre a possibilidade de outras pessoas mencionadas no livro não terem existido.
Também começou a examinar uma controvérsia em relação ao Ph.D de Pellegrino, ao qual o autor se refere com destaque em seu site e na biografia contida no livro. Pellegrino disse que recebeu o doutorado na Universidade Victoria (Nova Zelândia), no início dos anos 1980, e que teria sido destituído dele alguns anos mais tarde em razão de uma discordância sobre teoria evolucionária com membros do departamento.
"O tópico se tornou alvo de muitas desavenças acaloradas em 1982", disse Pellegrino por telefone. Pat Walsh, vice-reitor da universidade, disse que as alegações de Pellegrino são "destituídas de fundamento e difamatórias" e que a universidade nunca lhe concedeu o título de doutor.
A agente literária de Pellegrino, Elaine Markson, e seu editor na Holt, John Macrae, disseram que não viram razões para checar suas credenciais. "Nunca questionei sua base de conhecimentos científica, porque ele estava trabalhando em pesquisas sobre o Titanic e outras pesquisas com laboratórios", disse Markson, referindo-se a seus livros anteriores.
O escritor também levou algum glamour cinematográfico a seu projeto: tinha dado consultoria ao diretor James Cameron nos filmes "Titanic" e "Avatar", e Cameron tinha comprado a opção de transpor "Last Train" para o cinema, em um filme sobre o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki.
Por telefone, Pellegrino falou repetidamente sobre seus defensores, incluindo Stephen Jay Gould, que morreu em 2002, mas que, segundo Pellegrino, sabia que ele tinha sofrido perseguição acadêmica.

Resenhas elogiosas
Os detratores dizem que sua reputação editorial era controversa. Escrevendo em 2000 para o "New York Times Book Review" sobre "Ghosts of the Titanic" [Fantasmas do Titanic], Michael Parfit disse que o livro "despreza a maioria dos princípios da erudição científica".
Mas os críticos ficaram bem impressionados com seu livro mais recente e não questionaram os fatos. Tanto "The Times" quanto "The Washington Post" publicaram resenhas positivas de "O Último Trem". Richard Rhodes, ganhador do Pulitzer por "The Making of the Atomic Bomb" [A Construção da Bomba Atômica], disse que, se tivesse sido editor de Pellegrino, "teria feito muito mais perguntas do que evidentemente foram feitas, pois se trataria de uma mudança radical no registro histórico".

A íntegra deste texto saiu no "New York Times".

Tradução de Clara Allain.



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