São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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Os vivos e os mortos

Desde 1998, quando foi fundada, até o ano passado, 1.041 pessoas morreram com a ajuda da dignitas, que tem entre seus membros 7 brasileiros; morte demora 30 minutos

Alessandro Della Bella - 23.nov.07/Associated Press/Keystone
Prédio em Schwerzenbach, também na Suíça, onde suicídios assistidos são organizados pela entidade

LUCIANA COELHO
DE GENEBRA

Suco de maçã, pede Craig Ewert, para amenizar o gosto dos barbitúricos que começa a tomar por um canudinho. Suas mãos não se movem mais, tolhidas pela doença neurodegenerativa. Ele precisa que alguém lhe sirva.
Mas sua voz é clara, e ele consegue engolir a solução de pentobarbital sódico.
O quarto de decoração simples, algo melancólica, e a paisagem tacanha nada lembram o chalé à beira do lago escolhido pelo personagem de Rémy Girard para morrer no delicado "As Invasões Bárbaras", filme de Denys Arcand (2003).
Deitado na cama enquanto a mulher, Mary, acaricia seus pés, Ewert escolheu estar ali. Escolheu morrer e, ativista até o minuto final, expor sua decisão ao diretor John Zaritsky. Os últimos dias do professor americano de 59 anos viraram o documentário "The Suicide Tourist" (O Turista Suicida), sobre o suicídio assistido.
O ano em que Ewert morreu, 2006, foi o ano em que a associação suíça Dignitas mais trabalhou. Foram 195 suicídios assistidos. Da fundação, em 1998, até o fim de 2009, 1.041 pessoas morreram com sua ajuda. Seus membros são 5.698 em 61 países, 7 deles brasileiros (nenhum até hoje morto ali).
A Suíça é um dos quatro países do mundo que permitem a um doente terminal escolher a hora de morrer (a Holanda e Luxemburgo permitem também a eutanásia, e a Bélgica, assim como os Estados americanos de Oregon e Washington, permite o suicídio assistido).
Temendo a pecha do "turismo suicida", o governo encaminhou dois projetos de lei ao debate público e ao Parlamento.
Um veta o suicídio assistido, outro o restringe. A consulta foi encerrada no último dia 1º, sem apoio majoritário a nenhuma das medidas, conforme informou à reportagem o Ministério da Justiça.
No segundo semestre, o Legislativo deve tomar uma decisão. Por ora, a lei determina apenas que o auxílio ao suicida não deve ser concedido por "motivos egoístas" e que é preciso um parecer médico para comprar as drogas fatais.
A maioria dos membros da Dignitas é formada por estrangeiros porque, diz a associação, são eles que mais necessitam de ajuda, já que os suíços podem recorrer a seus médicos particulares. Mas ser membro não significa morrer ali um dia.
Muitos apenas apoiam a causa, defendendo a liberdade de escolha e o conforto de ter seus momentos finais antes que uma doença congênita lhe roube a lucidez ou que suportar as dores não seja mais possível.
Outros querem a opção em aberto. Pagam para tanto 200 francos suíços (R$ 340) para se inscrever, mais 80 de anualidade. O processo final custa cerca de 4.000 francos (R$ 6.700), mas o valor pode cair dependendo do bolso do paciente.

Comercialização
Um estudo divulgado pela própria associação diz que, dos candidatos que recebem luz verde para morrer ali (cerca de 70% do total), só 13% levam a decisão a cabo. Para muitos, diz a organização, a simples perspectiva de poder decidir sobre sua morte é suficiente.
Isso não livra a Dignitas de ser acusada de comercializar a morte. Na mídia suíça e na britânica -vêm do Reino Unido 14% dos que morreram ali, índice só menor que o de alemães-, a crítica é frequente.
A pressão piorou depois que, em 2008, a Justiça suíça passou a exigir um segundo parecer médico para o suicídio e, em um protesto contra o atraso no processo, quatro pessoas morreram na associação inalando gás hélio com uma máscara.
A experiência foi considerada malsucedida pela própria entidade -a morte demorou mais do que o previsto e os espasmos provocados pelo gás nos suicidas levaram a Dignitas a desaconselhar os acompanhantes a assistirem à cena.
Parte dos relatos da imprensa dão conta de que os associados usaram sacos plásticos para sufocar, mas a Dignitas nega.
De qualquer forma, o hélio foi abolido até segunda ordem. A overdose de barbitúricos é ainda o método preferencial.
A repercussão levou a associação a ter problemas com seus senhorios. O apartamento no centro de Zurique usado nos primeiros dez anos já havia sido trocado. Mais uma vez o final do contrato foi antecipado, e a busca só acabou em uma casa azul na periferia, tão ampla quanto frugal.
Na descrição de uma sócia, "é muito tranquila" e mais inspiradora do que o barulhento apartamento do centro, onde as cadeiras de rodas custavam a chegar. Na descrição do "Wall Street Journal", a despeito do jardim que aparece nas fotos, fica numa região industrial, ao lado de um bordel.
Citando o tratamento quase sempre pejorativo, a Dignitas é arredia com a imprensa. A Folha procurou a associação há meses, e depois novamente por três semanas, quando obteve respostas pontuais.

Pequena organização
Durante esse período, mergulhou em sua documentação e partiu atrás da história de pessoas que tenham morrido ali (leia na página ao lado).
"A Dignitas é apenas uma organização minúscula com uma carga pesada de trabalho. Nossa capacidade de atender às solicitações da mídia são muito limitadas", escreveu à repórter Ludwig Minelli, o fundador da associação e até hoje o condutor da maioria dos processos.
Dias antes, um funcionário dissera por telefone que atender ao Brasil não era interesse do grupo, que nos últimos meses limitou-se a dar entrevistas ao "Journal" e ao "Monde".
Minelli, 77, é um advogado que trabalhou com direitos humanos nos anos 70 e 80 e nos 90 serviu como conselheiro jurídico de dois diretores da Exit, outra associação suíça que ajuda doentes terminais que queiram se matar. "Ambos tiveram problemas com o conselho da entidade, e, em ambos os casos, a assembleia da Exit teve de tomar uma decisão", contou.
"Da primeira vez, nós ganhamos, da segunda, um membro proeminente do grupo levou 300 simpatizantes para nos tirar de lá. Na noite seguinte, em 17 de maio de 1998, a Dignitas tinha sido fundada. Um dia depois já funcionava, pois os acompanhantes mais experientes da Exit vieram comigo."
Os "acompanhantes" são pessoas com treinamento para manusear a medicação e acompanhar o suicídio, mas não necessariamente médicos.
Em seu perfil no "Journal", a adesão de Minelli à causa é atribuída ao fato de ter visto sua avó definhar após pedir que um médico a ajudasse a morrer.
A maioria das pessoas que trabalha na Dignitas, segundo afirmou um funcionário que não quis se identificar, é voluntária. Mas nenhum número sobre o quadro é divulgado.
"Que diferença faz se são 10, 20, 30 pessoas? É idiota focar nesse tipo de detalhe", afirmou o funcionário. "O importante é a filosofia por trás do trabalho único que fazemos." Viver com dignidade, morrer com dignidade, estampa o logo.
Todo suicídio é hoje monitorado por dois acompanhantes profissionais. O processo, da visita inicial à morte, também não ocorre mais num único dia.
Apesar das exceções em casos ditos urgentes, agora é necessária uma fase inicial de conversas e checagem de histórico médico. Uma vez autorizado a morrer, o paciente espera três ou quatro dias em novo turno de exames e conversas.
Na ainda inédita versão em inglês de seu estatuto, passada à Folha, a organização prega demover seus membros do suicídio. E a Dignitas proclama ajudar numa morte eficaz, pois suicídios frustrados têm alto custo emocional e financeiro.
Descreve o processo de morte, que leva cerca de 30 minutos uma vez que as drogas são ingeridas, e afirma ser ele indolor, devido à carga anestésica dos barbitúricos.
Na preparação, o grupo recomenda a ingestão de 70 tabletes de metoclopramida para evitar o vômito quando as drogas fatais caem no estômago.
Um dos pontos que o estatuto não responde, no entanto, é se membros com a decisão resoluta de morrer ali, mas com uma doença que não seja crônica, ainda são autorizados a prosseguir -no início, eram.
O suicídio, em 2008, de um jogador de rúgbi britânico de 23 anos, que ficara paraplégico após um acidente em uma partida, levou à abertura de uma investigação, ainda inconclusa.


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