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+Livros
O colecionador
Morto
no último
dia 28, o bibliófilo
José Mindlin fazia parte de uma generosa estirpe de pessoas que preservam
e partilham
o saber
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
José Mindlin (1914-2010)
foi o mais recente e, esperemos, não o último
integrante de um grupo
de colecionadores de livros, possuidores de interesses
acadêmicos, que se mostram
generosos para com outros estudiosos.
Várias grandes bibliotecas
públicas foram, em sua origem,
bibliotecas particulares. A Biblioteca Britânica, por exemplo, começou como Biblioteca
Real, a coleção particular do rei
Jorge 3º, enquanto a Biblioteca
Nacional da França foi, até a
Revolução Francesa, a Biblioteca Real francesa.
A Biblioteca Morgan, em Nova York, foi anteriormente a
coleção particular do banqueiro John Pierpont Morgan
(1837-1913), transformada em
instituição pública pelo filho
dele, em 1924.
Contudo, esses exemplos
ilustram como livros, assim como obras de arte, com frequência são colecionados com finalidades exibicionistas -em outras palavras, mais para impressionar outras pessoas que
para uso ou desfrute próprios
de seus donos.
O rei francês Luís 14, por
exemplo, não se interessava especialmente pela leitura, mas
seus assessores políticos sugeriram que montar a biblioteca
real seria uma maneira de fomentar sua reputação fora do
país, de associar seu nome e o
da França ao conhecimento e à
civilização.
Jorge 3º, da Inglaterra, tampouco foi um intelectual, embora se interessasse por livros
sobre agricultura. Sua biblioteca também foi montada mais
para ser mostrada que para seu
próprio uso.
Contrastando com isso, porém, algumas grandes bibliotecas particulares foram formadas porque um indivíduo determinado não apenas tinha
paixão por livros, especialmente livros sobre determinados
assuntos, como era dotado dos
meios econômicos para acumular uma bela coleção.
A seguir, eu gostaria de comparar a biblioteca de Mindlin
com quatro coleções que já foram particulares, embora todas
tenham se tornado públicas ou
sido incorporadas a bibliotecas
abertas ao público.
Livros não lidos
Duas dessas coleções foram
formadas na Europa e duas no
Novo Mundo. Pertenceram no
passado a lorde Acton, Aby
Warburg, John Carter Brown e
Manoel de Oliveira Lima.
Lorde Acton (1834-1902),
que lecionou história na Universidade de Cambridge, foi um
inglês incomumente cosmopolita (de ascendência parcialmente alemã) cuja riqueza herdada lhe permitiu comprar tantos livros quanto quis, sobretudo livros de história.
Um estudioso que o visitou
em Cambridge ficou impressionado com os livros que enchiam a sala em que Acton o recebeu, observando que muitos
deles tinham pedaços de papel
marcando uma página em especial, fato que sugeria que os
livros teriam sido usados.
Mas ele também havia recordado que os pedaços de papel
normalmente estavam nas primeiras páginas de cada livro,
como se Acton não tivesse tido
tempo de lê-los até o final.
Já usei em vários momentos
livros da coleção de Acton, que
hoje faz parte da Biblioteca
Universitária de Cambridge e,
por várias vezes, tive que cortar
as folhas de um livro cujo dono
evidentemente nunca o lera.
Como todos os grandes colecionadores, Acton possuía mais
livros do que poderia ter lido na
vida. Afinal, se lermos um livro
por dia durante 40 anos, o total
chegará a 14.600 livros, sendo
que uma grande coleção particular pode conter até 40 mil ou
50 mil volumes.
Mesmo assim, a biblioteca de
Acton foi formada para pesquisas, mais que para exibição, fato
condizente com o interesse de
seu dono pela história da Europa, especialmente a partir do final da Idade Média.
O filho do banqueiro
Aby Warburg (1866-1929) foi
o filho mais velho de um banqueiro alemão. A expectativa
era que seguisse o caminho de
seu pai, trabalhando na empresa familiar, mas ele queria ser
acadêmico.
Então, entregou o banco a
seu irmão, sob uma condição
-que ele pagasse por todos os
livros que Aby quisesse, pelo
resto de sua vida.
O irmão não deve ter imaginado quantos livros Aby iria
querer ou precisar -tudo o que
pudesse encontrar sobre a história da tradição clássica e, de
modo mais geral, que fizesse
parte da "ciência da cultura"
("Kulturwissenschaft").
Warburg tinha prazer em receber outros estudiosos em sua
biblioteca, que se tornou semipública em 1914 e então foi convertida em um instituto, transferido de Hamburgo para Londres após a chegada de Hitler
ao poder, em 1933, para evitar o
confisco (já que a família Warburg era judia).
Hoje a biblioteca faz parte da
Universidade de Londres.
Warburg se interessava profundamente pela organização
dos livros nas estantes.
A biblioteca era -e, felizmente, ainda é- uma biblioteca de acesso aberto, com isso
permitindo que funcione o que
Warburg chamava de "a lei do
bom vizinho".
(Segundo essa lei, o livro de
que um leitor realmente precisa não é aquele do qual ele já
tem conhecimento e que identificou no catálogo, mas o livro
ao lado, em um sistema de classificação cuidadosa e precisa
por temas.)
Coleções na América
Duas importantes bibliotecas particulares no Novo Mundo, além da de José Mindlin, focalizam a América -a do Norte
e a do Sul.
A ambição de John Carter
Brown (1797-1874), um homem rico que passou sua vida
colecionando, era reunir todos
os livros, manuscritos e mapas
que pudesse encontrar que dissessem respeito à história das
Américas.
Seu filho John Nicholas
Brown continuou a colecionar,
mas, em seu testamento, deixou a biblioteca à Universidade
Brown (que assumiu seu nome
em agradecimento às beneficências recebidas da família
Brown). Hoje, com cerca de 45
mil volumes, ela faz parte de
um instituto independente de
pesquisas no interior da universidade e abriga exposições,
palestras e conferências.
Outra grande biblioteca particular que foi posteriormente
incorporada a uma universidade foi montada pelo diplomata
e estudioso brasileiro Manoel
de Oliveira Lima (1867-1928),
que, entre outras coisas, foi
mentor de Gilberto Freyre na
juventude deste.
Como seu proprietário, a biblioteca se concentrava sobre a
história do Brasil, de Portugal e
do império português na Ásia e
na África. Em 1916 Oliveira Lima doou a biblioteca, que hoje
contém 50 mil livros, à Universidade Católica da América, em
Washington. Ele se nomeou o
primeiro bibliotecário dela.
Tradição grandiosa
Resumindo: a biblioteca de
40 mil volumes de José Mindlin, que agora será doada à
USP, faz parte de uma tradição
grandiosa.
"Nunca me considerei o dono desta biblioteca", observou
Mindlin certa vez, apenas seu
guardião para a posteridade.
Esperemos que Mindlin não
seja o derradeiro dos grandes
colecionadores cujas bibliotecas refletem seu entusiasmo
pessoal pelo conhecimento,
mas que têm a generosidade de
compartilhar com outros aquilo que adquiriram.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "A
Tradução Cultural" (ed. Unesp) e "O Historiador
como Colunista" (ed. Civilização Brasileira). Escreve regularmente no Mais!.
Tradução de °Clara Allain .
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