|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Leia crônica que seria de Machado de Assis, publicada na "Gazeta de Notícias" em 25/4/1883
Carta a R.J. Kinsman Benjamin
MERCUTIO
Sou um dos maiores admiradores do Club a que ligou o seu nome, caro
maestro. Dos 25 concertos que
tem dado, tenho estado presente a 24.
Se não posso, como um meu
amigo, gabar-me de ter vindo
expressamente de São Paulo,
para não interromper a série,
ao menos não vou, como ele,
trocar as nossas reuniões quinzenais, tão íntimas e tão singelas, pelos concertos, provavelmente mais "fashionable", mas
com certeza menos acabados,
do célebre Pasdeloup.
Julgo-me, portanto, autorizado, como administrador seu,
como entusiasta do Club Beethoven, a dizer as inquietações
que nos últimos tempos me
têm atribulado.
A mudança do Club, da rua
do Catete para a rua da Glória,
à primeira vista acha-se ao
abrigo de qualquer reproche.
Mas pense bem e verá que "latet anguis".
Na rua do Catete havia como
que um santuário, uma cripta
venerável, a que iam em peregrinação os romeiros da arte.
Na rua da Glória temos um
templo magnífico: a sala de leitura é tão "coquette", tão
"cheerful", que atrai; a sala de
concertos é mais grave, porém
a gravidade só é percebida por
um ato refletido.
A consequência será que os
concorrentes não hão de ir
mais aos concertos por simples
amor à arte; mas por vaidade,
por desejo de mostrar-se, como
se vai a uma missa de meio-dia.
Talvez o mal não pareça
grande; mas com certeza não é
para desprezar. Em breve o
Club estará na moda; entrarão
nele primeiro os "gommeux",
depois os medalhões.
Ora, um medalhão quer dizer
um presidente.
Assim, dentro de um espaço
mais ou menos longo, teremos
para presidente o sr. Visconde
de S. ou o sr. Barão de C. ou o sr.
Comendador Z.
Teoria dos medalhões
O sr. Visconde, ou barão ou
comendador, não é, porém, homem que sinta grande entusiasmo pela música. Não que
ela o desgoste: ao contrário,
tem assistido a 50 representações da Mascotte, é um dos
maiores apreciadores do Boccacio, até sabe de cor porção de
trechos dos "Sinos de Corneville" e de "Maria Angu".
Mas para ele a música é apenas um condimento; um condimento com que no teatro são
servidas pernas, decotes e frases apimentadas; um condimento com que nos salões servem-se quadrilhas, valsas, recitativos e namoros.
O primeiro ato do medalhão,
presidente, será portanto fazer
inserir no programa as peças
de música que lhe sabem ao paladar: valsas, polcas, habaneras
etc. Depois começará uma propaganda ferrenha: tocar polcas
e não dançar é um suplício de
Tântalo; um salão sem mulheres é um jardim sem flores, um
céu sem estrelas, um oceano
sem águas; e mais outras chapas. Venham portanto as flores
do jardim de nossa existência;
as estrelas do céu de nossas
fantasias; as ondas azuis do
oceano de nossos devaneios
-mais outras chapas.
Julga que isso não há de se
dar?
Há de.
No concerto de sábado, estive junto a um medalhão; olhei
indiscretamente para a sua algibeira e vi quatro conferências
a saírem e uma presidência a
bracejar.
A coisa é, portanto, séria,
meu caro maestro, e é urgente
dar-lhe remédio enquanto é sanável.
O remédio é fácil e eu aqui
lho ofereço com todo desinteresse.
1º) Os medalhões serão sujeitos a provas especiais e muito
rigorosas.
2º) Pagarão o décuplo da joia
e víntuplo da mensalidade.
3º) Todos os anos a assembleia geral decidirá se poderão
continuar.
4º) O único emprego que poderão ocupar é o de caixeiro ou
cobrador (prestando conta dobrada).
5º) A atual diretoria é inamovível.
6º) Desde o dia em que se decidir a entrada das senhoras, o
nome do Club Beethoven será
mudado no de Club Polca.
Espero, caro maestro, que
atenda às minhas considerações, faça-as passar e assegure
assim o futuro de uma instituição que, nascida de ontem, já
arquiva um tão belo passado.
Texto Anterior: +Livros: Condinome Machado Próximo Texto: +Livros: O colecionador Índice
|