São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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Leia crônica que seria de Machado de Assis, publicada na "Gazeta de Notícias" em 25/4/1883

Carta a R.J. Kinsman Benjamin

MERCUTIO

Sou um dos maiores admiradores do Club a que ligou o seu nome, caro maestro. Dos 25 concertos que tem dado, tenho estado presente a 24.
Se não posso, como um meu amigo, gabar-me de ter vindo expressamente de São Paulo, para não interromper a série, ao menos não vou, como ele, trocar as nossas reuniões quinzenais, tão íntimas e tão singelas, pelos concertos, provavelmente mais "fashionable", mas com certeza menos acabados, do célebre Pasdeloup.
Julgo-me, portanto, autorizado, como administrador seu, como entusiasta do Club Beethoven, a dizer as inquietações que nos últimos tempos me têm atribulado.
A mudança do Club, da rua do Catete para a rua da Glória, à primeira vista acha-se ao abrigo de qualquer reproche. Mas pense bem e verá que "latet anguis".
Na rua do Catete havia como que um santuário, uma cripta venerável, a que iam em peregrinação os romeiros da arte.
Na rua da Glória temos um templo magnífico: a sala de leitura é tão "coquette", tão "cheerful", que atrai; a sala de concertos é mais grave, porém a gravidade só é percebida por um ato refletido.
A consequência será que os concorrentes não hão de ir mais aos concertos por simples amor à arte; mas por vaidade, por desejo de mostrar-se, como se vai a uma missa de meio-dia.
Talvez o mal não pareça grande; mas com certeza não é para desprezar. Em breve o Club estará na moda; entrarão nele primeiro os "gommeux", depois os medalhões.
Ora, um medalhão quer dizer um presidente.
Assim, dentro de um espaço mais ou menos longo, teremos para presidente o sr. Visconde de S. ou o sr. Barão de C. ou o sr. Comendador Z.

Teoria dos medalhões
O sr. Visconde, ou barão ou comendador, não é, porém, homem que sinta grande entusiasmo pela música. Não que ela o desgoste: ao contrário, tem assistido a 50 representações da Mascotte, é um dos maiores apreciadores do Boccacio, até sabe de cor porção de trechos dos "Sinos de Corneville" e de "Maria Angu".
Mas para ele a música é apenas um condimento; um condimento com que no teatro são servidas pernas, decotes e frases apimentadas; um condimento com que nos salões servem-se quadrilhas, valsas, recitativos e namoros.
O primeiro ato do medalhão, presidente, será portanto fazer inserir no programa as peças de música que lhe sabem ao paladar: valsas, polcas, habaneras etc. Depois começará uma propaganda ferrenha: tocar polcas e não dançar é um suplício de Tântalo; um salão sem mulheres é um jardim sem flores, um céu sem estrelas, um oceano sem águas; e mais outras chapas. Venham portanto as flores do jardim de nossa existência; as estrelas do céu de nossas fantasias; as ondas azuis do oceano de nossos devaneios -mais outras chapas.
Julga que isso não há de se dar?
Há de.
No concerto de sábado, estive junto a um medalhão; olhei indiscretamente para a sua algibeira e vi quatro conferências a saírem e uma presidência a bracejar.
A coisa é, portanto, séria, meu caro maestro, e é urgente dar-lhe remédio enquanto é sanável.
O remédio é fácil e eu aqui lho ofereço com todo desinteresse.
1º) Os medalhões serão sujeitos a provas especiais e muito rigorosas.
2º) Pagarão o décuplo da joia e víntuplo da mensalidade.
3º) Todos os anos a assembleia geral decidirá se poderão continuar.
4º) O único emprego que poderão ocupar é o de caixeiro ou cobrador (prestando conta dobrada).
5º) A atual diretoria é inamovível.
6º) Desde o dia em que se decidir a entrada das senhoras, o nome do Club Beethoven será mudado no de Club Polca.
Espero, caro maestro, que atenda às minhas considerações, faça-as passar e assegure assim o futuro de uma instituição que, nascida de ontem, já arquiva um tão belo passado.


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