São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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"Anatol on the Road" traz as primeiras impressões sobre o Brasil de Anatol Rosenfeld, que comporia a nata da intelectualidade européia exilada no país em fuga do nazismo

A vida atribulada do caixeiro-viajante

JOSÉ MINDLIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Anatol "On the Road'" é um livro que se lê com prazer, formado por um conjunto de textos avulsos, aparentemente sem coerência entre si, escritos num português absolutamente correto, não obstante seu autor, Anatol Rosenfeld -um segundo Paulo Rónai ("Como Aprendi o Português e Outras Histórias", ed. Globo)- só ter aprendido nosso idioma quando chegou ao Brasil, aos 25 anos de idade, como refugiado da perseguição nazista.
O livro foi organizado e apresentado por Nanci Fernandes e Jacó Guinsburg, editor da Perspectiva, uma de nossas mais importantes editoras culturais, com seu empenho em trazer aos leitores o máximo possível do acervo deixado por Rosenfeld. Chama desde logo nossa atenção o senso de humor com que foi escrita a maioria dos textos, de natureza múltipla: narrativas pessoais, lendas medievais fictícias (classificadas pelo autor de "adaptações") e um conto extenso sobre um episódio de tradição judaica.
"On the Road" começa com as experiências de Anatol Rosenfeld como caixeiro-viajante na região mato-grossense, em que cabe ressaltar sua aguda capacidade de observação de tudo quanto encontrava, tanto em relação ao ambiente quanto a seus habitantes. Mato Grosso nos aparece como um interior bucólico, cheio de encanto e boemia. Basta ver o capítulo "As Amazonas de Cuiabá", em que o título já é suficientemente sugestivo.

Emigração forçada
Em seguida vem a chegada de Rosenfeld a São Paulo, com destaque para o Juca Pato [colunista e personagem criado por Belmonte], que desde logo chamou sua atenção.
Daí por diante, dá largas a sua fantasia, com uma coletânea de artigos feitos para um jornal imaginário e que foram publicados na "Crônica Israelita". Nesse trecho, a parte três, chama a atenção o artigo "Entusiasmo e Ironia", em que ressalta a importância do entusiasmo, especialmente na mocidade.
Também não podem deixar de ser destacados os "Dezenove Princípios para a Crítica Literária" e "Como Fazer Amigos para Melhorar os Negócios". Finalmente, nas partes quatro e cinco, Anatol chega à ficção com três saborosos artigos supostamente medievais e com o conto "O Mínien Manco".
"On the Road" ressalta a importância da fase brasileira da vida de Rosenfeld, dando bem idéia de como as voltas que o mundo dá são surpreendentes e imprevisíveis. Às vezes produzindo o bem, às vezes o mal, acontece também ao sabor das circunstâncias que um desses efeitos se transforme no outro. Isso se aplica à história de Rosenfeld, história que, por meio desse livro, se lê com prazer.
Nascido na Alemanha, em 1912, já no início da década de 30 começou a conquistar, nos círculos intelectuais alemães, uma reputação lisonjeira. Estava se doutorando em literatura em 1934, o que, aliás, mais tarde teve que interromper. Tudo ainda lhe parecia favorável: tinha sua biblioteca, muitos amigos e admiradores, o que prenunciava um futuro brilhante.
Com o advento do nazismo, no entanto, sua vida se desestruturou. Forçado a emigrar de um momento para outro, alvo, como judeu, da perseguição do regime de Hitler, viu-se obrigado a abandonar tudo quanto tinha conquistado, partindo para o Brasil em 1937, sem recursos e sem conhecer nosso idioma.

No cabo da enxada
Para nós, brasileiros, judeus ou não, que tivemos o privilégio de uma vida estável, é difícil imaginar como nos sentiríamos numa situação como aquela -provavelmente, acabrunhados pelo desânimo, sem ver perspectiva de reconstruir o passado perdido. É bem possível que essa tivesse sido, de início, a reação de Rosenfeld, mas o desânimo, se existiu, durou pouco.
Sua estada no Brasil começou como colono de uma fazenda, com as mãos no cabo da enxada. Tornou-se depois caixeiro-viajante, passando a conhecer o Brasil melhor do que muitos brasileiros e tendo sucesso em seu trabalho.
Após algum tempo, veio para São Paulo e aqui pôde retomar uma vida intelectual, colaborando com artigos para a imprensa brasileira e alemã, inclusive com críticas teatrais. Seus estudos anteriores de filosofia e literatura permitiram-lhe ambientar-se nos círculos intelectuais paulistas com razoável rapidez, alcançando, em pouco tempo, uma posição de destaque. Passou a publicar livros, fazer conferências, conquistando o respeito e a admiração geral.
Morreu em 1973 e, não fossem os esforços da Perspectiva de publicar seguidamente seus trabalhos, provavelmente já teria caído no esquecimento -triste destino de tantos bons intelectuais.
"On the Road" é o mais recente esforço da editora para manter viva a memória de Rosenfeld -e consegue isso com muito brilho. A leitura desse livro, como disse há pouco, será certamente fonte de prazer.


José Mindlin é empresário e bibliófilo, autor de "Uma Vida entre Livros" (Edusp).

Anatol On the Road
272 págs., R$ 40 de Anatol Rosenfeld. Organização de Nanci Fernandes e Jacó Guinsburg. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, São Paulo, SP, CEP 01401-000 tel. 0/xx/11/ 3885-8388).


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