São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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Nos limites opostos da cena política, Roberto Jefferson e José Dirceu rompem o equilíbrio entre representação e dissimulação constitutivo de todo político e levam essas práticas ao seu ponto máximo

O arlequim e o comissário

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

É um desafio refletir sobre o primeiro debate que José Dirceu e Roberto Jefferson mantiveram na CPI dos Correios. Figuras impressionantes da política brasileira, cada qual muito competente no seu gênero, entraram em luta para liqüidar o outro politicamente, isto é, para desmoralizá-lo e retirá-lo do espaço público.
Para cumprir esse intento, ambos lançaram mão de todas as armas disponíveis. Mas, ao levarem essas práticas ao limite, terminaram revelando perigos que a política brasileira deve evitar para que não se transforme numa briga de galos e numa farsa dos procedimentos da representação democrática.
Todos sabem que o político dissimula e representa. Ou melhor, representa que não está dissimulando e dissimula que está representando. Tenta convencer ou forçar o outro a operar conforme seu desejo, muitas vezes escondendo suas reais intenções, mas de tal maneira que há de aparecer como o mais veraz e confiável de todos os habitantes da Terra. Para isso, necessita representar, subir ao palco como se fosse o próprio personagem, sua personalidade e seus interesses se fundindo com este. Ao contrário do discurso do ator, que suspende e coloca entre parêntese suas condições de verdade, o discurso do político pretende ser verídico e, assim, dissimula que está representando. Não é o ator quem fura os olhos, mas Édipo, de tal modo que aquele, porém, age como cego até o fim da peça.


Todos sabem que o político dissimula e representa. Ou melhor, representa que não está dissimu-lando e dissimula que está represen-tando


A representação do político, em contrapartida, é instrumento de sua estratégia de rebater os conflitos reais da sociedade para um plano em que eles parecem ter soluções via debate e consenso, varrendo para debaixo do tapete a violência física, ou simplesmente representando-a, o que permite seu desgaste no nível da própria representação. No calor do debate, Jefferson diz a Dirceu: "Vossa Excelência desperta em mim os instintos mais primitivos". Mas não foram às vias de fato.
José Dirceu é mestre na dissimulação. Apresenta-se como aquele sólido líder político conformado na luta contra a ditadura -o que, de fato, ele é em grande estilo-, mas agora investido no cargo de ministro. Nesse posto, segue rigorosamente as normas ditadas pelo chefe e cumpre objetivamente as tarefas e funções determinadas pelo cargo.
Governa o Brasil, mas não faz política, isto é, nega ter ajustado as ordens e regras institucionais às práticas do dia-a-dia segundo um parâmetro de distribuição do poder. Nega, assim, aquela intenção de poder, do partido ou dele mesmo, intrínseca à política, intenção que, não podendo ser completamente evidenciada, somente transparece sob o manto da ideologia, livre, assim, para extravasar qualquer limite.

Respostas ao torturador
Dirceu age como se a política não fosse arte, mas mera atividade técnica. Pouca gente acreditou no que dizia, mas lhe importava construir uma versão, respondendo às perguntas de seus pares com a mesma tenacidade com que outrora respondia às perguntas de um torturador. E assim pensou poder escapar às transgressões que cometeu.
Essa atitude lembra-me aquela dos oficiais nazistas, sempre prontos a justificar as atrocidades cometidas porque nada mais faziam além de cumprir ordens. Banalização do mal examinada magistralmente por Hannah Arendt e que chega ao limite no processo de Eichmann em Jerusalém. Mas essa prática política também é parecida com aquela máquina de dissimular montada pelo stalinismo, quando os acusados nos processos de Moscou eram convencidos de crimes que não haviam cometido.
Seria incorreto e imoral transformar José Dirceu num personagem desse tipo. Apenas aponto um traço preocupante de seu comportamento, pois, na política, a dissimulação, ao excluir o jogo da representação, tende a ser vista como declaração de verdade, como aquela mentira que, de tanto ser repetida, pode ser tomada como verdadeira. Somente será democrática a sociedade que aprender a cuidar da simulação de seus representantes e, por isso mesmo, souber discriminá-la e cerceá-la.

Commedia dell'arte
Noutro extremo se aboleta Roberto Jefferson, ator no palco, encenando uma peça da commedia dell'arte. Não é por isso que deixa de dissimular, mas o faz de tal maneira que submete essa dissimulação a uma encenação da verdade. José Dirceu mente como se dissesse a verdade, Roberto Jefferson diz a verdade num contexto em que esse dizer não se resolve numa proposição empírica, antes se assemelha à fala do ator. Peça inventada, mas que traz a verdade para o plano do espanto. Não é assim que Hamlet reconstrói para a mãe e toda a corte a morte do pai? Cada denúncia do deputado é uma suspeita, fio a ser puxado, como aquelas cenas de um romance de Balzac que, mesmo que nunca tivessem existido, flagram com muita pertinência momentos relevantes da vida burguesa.
Estamos passando por um momento político em que a dissimulação e a encenação chegam ao paroxismo. Como isso veio a ser possível? Não haveria outro fenômeno, também ligado a tudo isso, procedente de outro lado da política?
O exercício do poder implica decisão e formas consentidas de violência. Quando o chefe de Estado se furta à decisão e nega a violência de que necessita para governar, quando atua como negociador e aparador de todo e qualquer conflito, para cuidar, sobretudo, de sua própria imagem, não é ele quem encena sua própria dissimulação?

José Arthur Giannotti é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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