São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005 |
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+ história Obra de Manoel Bomfim fez crítica pioneira ao fatalismo racista que vigorava no Brasil há cem anos A redenção dos mulatos
CARLOS ALBERTO DÓRIA
Quando surgiu (1905) ele foi massacrado, no ano seguinte, por "A América Latina", de Sylvio Romero (1851-1914). Ambos eram sergipanos e talvez a vida intelectual, vista da província, fosse estreita para comportar dois intelectuais de projeção. Mais do que isso, Bomfim é o crítico de um certo evolucionismo de cunho racista -do qual Sylvio foi um dos expoentes entre nós- que representava o nosso atraso como uma espécie de fatalidade. Bomfim, ao contrário, explicará o atraso como fruto da exploração metropolitana, ou seja, como tributário de razões econômicas e históricas. Curioso é que Bomfim tenha sido redescoberto apenas nos anos 90 do século passado, fato que se atribui a Antonio Candido, o que pôs em marcha a reedição do livro (Topbooks; com interessante prefácio de Darcy Ribeiro) e uma nova vaga de análises. Mas ainda não deixa de surpreender um autor que acha "que a necessidade de amar a natureza, as gentes, a vida, se concretize nas coisas entre as quais existimos" e faça dessas coisas um recorte maior que o Brasil: a América Latina. O internacionalismo jamais foi um traço forte do nosso ensaísmo anterior à fundação do Partido Comunista. A singularidade lingüística, o Império entre repúblicas, forjaram o sentimento de solidão diante do destino histórico, enquanto nos demais países da América Latina, por força da herança bolivariana, identidade lingüística e passado indígena, o internacionalismo logo se mostrou, como no socialista chileno Luis Emilio Recabaren e no peruano José Carlos Mariátegui. Parasitismo Mas é interessante que Bomfim vá se dar conta da existência comum do continente por meio da imagem que a Europa constrói como nossa. O livro de Bomfim será para provar que, ao contrário, o colonialismo é um dos piores males civilizatórios, utilizando a metáfora do parasitismo que debilita tanto o organismo parasitado quanto faz involuir o parasita (vide a decadência de Espanha e Portugal). Hoje qualquer estudante de biologia saberia apontar o erro que incorre na análise da adaptação especializada do parasita que estuda como exemplo da idéia de que "a função faz o órgão". É um tributo que paga à epistemologia da ciência que dominou o último quartel do século 19 e início do séc. 20, igualando-se, neste particular, ao seu detrator, Sylvio Romero. Mas, além de metáfora equivocada, o parasitismo em Bomfim é uma teoria da decadência civilizatória. Povos se despregam da história para jazer à margem do progresso. Fogem a esse destino aqueles "emancipados pela crítica, iluminados pelo saber", que sejam capazes de desenvolver políticas "solidarizando os indivíduos na luta pela vida, solidarizando as pátrias no sentido da civilização e da humanidade". Trata-se de postura distinta daquela de Euclides da Cunha, que verá a necessidade de um "fechamento" para o mundo exterior até que a nacionalidade possa amadurecer e se firmar no concerto das nações. De fato, o mundo vive a época do imperialismo, e é natural que várias estratégias de sobrevivência se esbocem. Porém mais uma vez Bomfim chama atenção pelos contrastes que estabelece com o pensamento vigente, pois se mostra distante das idéias de nação correntes entre brasileiros pela influência de Ernest Renan (1823-1892) -o pensador católico francês que tanto impressionou Joaquim Nabuco e a geração posterior-, para quem a nação é a síntese da língua, território, comunidade de interesses, religião e costumes; enfim, um "princípio espiritual". No conceito histórico de Bomfim, "o aperfeiçoamento é a vida que se desenvolve" em direção a um plano determinado, intervindo nele a utopia. Em outras palavras, a qualidade do futuro desenha-se na utopia e na capacidade de solidarizar os homens em torno dela, sendo que a idéia solidária não conhece fronteiras nacionais. Este o caminho de redenção dos "males de origem". Com o tempo, Manoel Bomfim acabou atrelando a utopia civilizatória à educação, associando-se ao poeta Olavo Bilac, com quem dividiu a autoria de algumas obras didáticas. Hoje, a busca da emancipação pela educação é do gosto das elites, visto que perdeu o seu vínculo com a prática da liberdade e assumiu a feição de habilitação para o trabalho e para o "empreendedorismo". E temos, ainda aqui, Manoel Bomfim como alguém que antecipou questões que compõem a galeria de temas pertinentes da nossa história. Ora, desconsiderar Manoel Bomfim é algo que diz mais sobre o quanto de Sylvio Romero possa haver em nós mesmos do que sobre o próprio Bomfim. Para Sylvio, falsas eram a etnografia, a história e a economia -ou seja, a base científica em que se apoiava Manoel Bomfim; portanto, falsas as chances da sua utopia. Mas é de sua voz isolada que deriva o valor atual de Manoel Bomfim, pois ele já nos mostrava o futuro não como uma fatalidade, como os evolucionistas-cientificistas pregavam, mas sim como fruto de uma construção histórica na qual devemos empenhar nossos pensamentos mais gerenerosos e as nossas melhores energias. Carlos Alberto Dória é sociólogo, doutorando na Universidade Estadual de Campinas, autor de "Os Federais da Cultura" (Biruta), entre outros. Texto Anterior: + autores: O arlequim e o comissário Próximo Texto: O avesso do avesso Índice |
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