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autores
Tribunal geopolítico
Julgamento
dos líderes nazistas
na cidade alemã de Nuremberg
foi preparação para a
Guerra Fria
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BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Vivemos numa época
em que os temas da
preservação dos direitos humanos, da
responsabilização
de acusados pela prática de genocídio estão na ordem do dia,
apesar dos obstáculos de toda
ordem impostos à ação dos tribunais na esfera internacional.
Esse quadro traz à luz um
episódio histórico, com incidência no presente: o julgamento dos líderes nazistas,
após o fim da Segunda Guerra,
realizado na cidade alemã de
Nuremberg, entre novembro
de 1945 e outubro de 1946.
O julgamento foi a primeira e
a mais ampla iniciativa até hoje
realizada no mundo em que figuraram como réus acusados
de crimes de guerra.
Ao longo dos 11 meses em
que o Tribunal de Nuremberg
se reuniu, questões candentes,
como o direito de os vencedores julgarem os vencidos sem
prévia definição legal do que
seriam seus crimes, as regras
de procedimento da Corte e o
alcance dos fatos que deveriam
ser submetidos à consideração,
foram trazidas à cena.
Do ponto de vista do historiador, uma das facetas mais
interessantes do julgamento
reside no fato de que, antes de
representar um episódio de entendimento entre as grandes
potências vencedoras do conflito -em particular, os Estados Unidos e a União Soviética-, ele foi o palco de uma rivalidade que prefigurava o início
da Guerra Fria.
Utilizo aqui, especialmente,
no tocante ao aspecto por último apontado, o ensaio da historiadora americana Francine
Hirsch, publicado na "The
American Historical Review"
(vol. 113, nº 3, junho de 2008),
com o título de "The Soviets at
Nuremberg - International
Law, Propaganda, and the Making of the Postwar Order" (Os
Soviéticos em Nuremberg -Lei,
Propaganda e a Construção da
Ordem do Pós-Guerra).
Terra sem lei
Hirsch demonstra que o julgamento, com ampla repercussão internacional, foi cenário
de um confronto entre um país
que tinha um sólido sistema legal e outro que, a rigor, nunca
chegara a implantar nada digno
desse nome.
O que não quer dizer que tudo se reduzisse à presença de
anjos julgadores, de um lado, e
de demônios também julgadores, de outro.
Para Stálin e o célebre procurador Andrei Vichinski havia
uma conexão clara entre os
grandes processos de Moscou
(1936-1938) -que resultaram
na morte de líderes bolcheviques da importância de Zinoviev e Bukarin, entre outros- e
o julgamento de Nuremberg.
Naquele processo-farsa, os
acusados não tinham sido condenados apenas como trotskistas, mas como trotskistas que,
com a ajuda direta de Hitler, teriam armado uma conspiração
para liqüidar a União Soviética
e implantar no país um regime
fascista.
Tanto assim que vários juízes
e promotores integrantes dos
processos de Moscou foram
convocados para atuar em Nuremberg.
Se esses personagens nutriam profundo desprezo pela
"ordem legal burguesa", pelo
menos estavam dispensados de
montar uma farsa, pois os crime atribuídos aos réus se baseavam em fatos.
Um dos pontos de discórdia
entre juízes russos e americanos residiu no alcance das condenações.
Para os russos, todos os réus
deveriam ser condenados. Para
os norte-americanos, seja porque levassem em conta as ponderações da defesa, seja porque
não quisessem ir tão longe, era
necessário distinguir no terreno das responsabilidades.
No final, foram absolvidos
três acusados: Hans Fritzsche,
uma das figuras centrais da
propaganda nazista, o embaixador Franz von Papen e Hjalmar Schacht, ministro da Economia. Curiosamente, os três
voltaram a ser presos e condenados a penas variáveis de prisão pelos tribunais alemães de
desnazificação.
"Cortina de ferro"
Um fato insólito ocorreu em
meio ao julgamento, em março
de 1946, provocando a indignação dos soviéticos. Foi o famoso
discurso de Winston Churchill,
no qual ele utilizou, pela primeira vez, a expressão "cortina
de ferro", que se tornaria famosa, e convocou ingleses e americanos a combater a tirania e as
agressões soviéticas.
Americanos e soviéticos esforçaram-se também no sentido de não trazer à cena episódios que fossem perturbadores
para a imagem de seus respectivos países.
Inutilmente, os soviéticos
tentaram evitar as referências
das testemunhas de defesa e do
ex-chanceler alemão Von Ribbentrop ao pacto germano-soviético (agosto de 1939) assim
como aos entendimentos entre
os dois países para a partilha da
Polônia, no início da guerra.
Não conseguiram evitar também as referências ao massacre
de Katyn, em que foram mortos
milhares de poloneses, atrocidade atribuída aos nazistas,
mas, na realidade, praticada pelos soviéticos.
Pelo contrário, americanos e
britânicos conseguiram evitar
que fossem explorados fatos
muito embaraçosos para eles,
como o bombardeio indiscriminado de cidades alemãs e o
catastrófico bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki.
Uma lembrança final, com
ressonâncias contemporâneas.
No Brasil, nas páginas da revista "O Cruzeiro", o jornalista
David Nasser publicou uma série de reportagens com o título
de "Falta Alguém em Nuremberg", denunciando Felinto
Müller, chefe de polícia do Distrito Federal no Estado Novo e
notório torturador de presos
políticos.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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