São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

autores

Tribunal geopolítico


Julgamento dos líderes nazistas na cidade alemã de Nuremberg foi preparação para a Guerra Fria

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Vivemos numa época em que os temas da preservação dos direitos humanos, da responsabilização de acusados pela prática de genocídio estão na ordem do dia, apesar dos obstáculos de toda ordem impostos à ação dos tribunais na esfera internacional. Esse quadro traz à luz um episódio histórico, com incidência no presente: o julgamento dos líderes nazistas, após o fim da Segunda Guerra, realizado na cidade alemã de Nuremberg, entre novembro de 1945 e outubro de 1946. O julgamento foi a primeira e a mais ampla iniciativa até hoje realizada no mundo em que figuraram como réus acusados de crimes de guerra. Ao longo dos 11 meses em que o Tribunal de Nuremberg se reuniu, questões candentes, como o direito de os vencedores julgarem os vencidos sem prévia definição legal do que seriam seus crimes, as regras de procedimento da Corte e o alcance dos fatos que deveriam ser submetidos à consideração, foram trazidas à cena. Do ponto de vista do historiador, uma das facetas mais interessantes do julgamento reside no fato de que, antes de representar um episódio de entendimento entre as grandes potências vencedoras do conflito -em particular, os Estados Unidos e a União Soviética-, ele foi o palco de uma rivalidade que prefigurava o início da Guerra Fria. Utilizo aqui, especialmente, no tocante ao aspecto por último apontado, o ensaio da historiadora americana Francine Hirsch, publicado na "The American Historical Review" (vol. 113, nº 3, junho de 2008), com o título de "The Soviets at Nuremberg - International Law, Propaganda, and the Making of the Postwar Order" (Os Soviéticos em Nuremberg -Lei, Propaganda e a Construção da Ordem do Pós-Guerra).

Terra sem lei
Hirsch demonstra que o julgamento, com ampla repercussão internacional, foi cenário de um confronto entre um país que tinha um sólido sistema legal e outro que, a rigor, nunca chegara a implantar nada digno desse nome. O que não quer dizer que tudo se reduzisse à presença de anjos julgadores, de um lado, e de demônios também julgadores, de outro. Para Stálin e o célebre procurador Andrei Vichinski havia uma conexão clara entre os grandes processos de Moscou (1936-1938) -que resultaram na morte de líderes bolcheviques da importância de Zinoviev e Bukarin, entre outros- e o julgamento de Nuremberg. Naquele processo-farsa, os acusados não tinham sido condenados apenas como trotskistas, mas como trotskistas que, com a ajuda direta de Hitler, teriam armado uma conspiração para liqüidar a União Soviética e implantar no país um regime fascista. Tanto assim que vários juízes e promotores integrantes dos processos de Moscou foram convocados para atuar em Nuremberg. Se esses personagens nutriam profundo desprezo pela "ordem legal burguesa", pelo menos estavam dispensados de montar uma farsa, pois os crime atribuídos aos réus se baseavam em fatos. Um dos pontos de discórdia entre juízes russos e americanos residiu no alcance das condenações. Para os russos, todos os réus deveriam ser condenados. Para os norte-americanos, seja porque levassem em conta as ponderações da defesa, seja porque não quisessem ir tão longe, era necessário distinguir no terreno das responsabilidades. No final, foram absolvidos três acusados: Hans Fritzsche, uma das figuras centrais da propaganda nazista, o embaixador Franz von Papen e Hjalmar Schacht, ministro da Economia. Curiosamente, os três voltaram a ser presos e condenados a penas variáveis de prisão pelos tribunais alemães de desnazificação.

"Cortina de ferro"
Um fato insólito ocorreu em meio ao julgamento, em março de 1946, provocando a indignação dos soviéticos. Foi o famoso discurso de Winston Churchill, no qual ele utilizou, pela primeira vez, a expressão "cortina de ferro", que se tornaria famosa, e convocou ingleses e americanos a combater a tirania e as agressões soviéticas. Americanos e soviéticos esforçaram-se também no sentido de não trazer à cena episódios que fossem perturbadores para a imagem de seus respectivos países. Inutilmente, os soviéticos tentaram evitar as referências das testemunhas de defesa e do ex-chanceler alemão Von Ribbentrop ao pacto germano-soviético (agosto de 1939) assim como aos entendimentos entre os dois países para a partilha da Polônia, no início da guerra. Não conseguiram evitar também as referências ao massacre de Katyn, em que foram mortos milhares de poloneses, atrocidade atribuída aos nazistas, mas, na realidade, praticada pelos soviéticos. Pelo contrário, americanos e britânicos conseguiram evitar que fossem explorados fatos muito embaraçosos para eles, como o bombardeio indiscriminado de cidades alemãs e o catastrófico bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki. Uma lembrança final, com ressonâncias contemporâneas. No Brasil, nas páginas da revista "O Cruzeiro", o jornalista David Nasser publicou uma série de reportagens com o título de "Falta Alguém em Nuremberg", denunciando Felinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal no Estado Novo e notório torturador de presos políticos.

BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).



Texto Anterior: Leia o início do romance inédito "No Caminho"
Próximo Texto: Livros: Imagens de cabeceira
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.