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livros
Imagens de cabeceira
Em "O Instante Contínuo", o escritor britânico Geoff Dyer faz uma abordagem pessoal da história da fotografia
RAFAEL CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Geoff Dyer é um homem de texto, mas
gosta de transitar
por outras linguagens. Autor de três
livros de ficção, ele é mais reconhecido por suas incursões
idiossincráticas pela não-ficção, que incluem um volume
premiado sobre jazz ("But
Beautiful" [Mas Belo, de 1991)
e o bem-sucedido (lá fora) "Ioga para Quem Não Está Nem Aí" [Companhia das Letras].
Agora ele volta sua dispersiva
curiosidade de geminiano para
novo assunto: fotografia.
O resultado é um livro tão fora do comum que os editores
brasileiros acharam por bem
acrescentar o subtítulo explicativo, "Uma História Particular
da Fotografia". Particular é
pouco. Peculiar, excêntrico seriam mais adequados.
"O Instante Contínuo" poderá ser odiado por alguns estudiosos da fotografia, mas será
cultuado por quem deseja se
iniciar na imensa e escorregadia fronteira entre imagens e
palavras.
De início, Dyer deixa claro
que não entende de fotografia.
Antecipando-se às críticas irritadas que diz esperar, anuncia
bombasticamente na introdução que nem sequer possui uma
câmera. Pode parecer pura estratégia, calculada para agradar
aos leigos e desarmar a ira dos
mais pernósticos -mas não é.
O fato é que o autor realmente não é muito experiente no
trato de imagens.
Poucas vezes são encontrados nas páginas de "O Instante
Contínuo" termos como enquadramento, composição,
contraste, planos ou ponto de
vista. Ele não se propõe a ler
imagens, no sentido metafórico
de decodificá-las seguindo algum método analítico.
Olhar de fora
Suas leituras são escrituras,
transbordando em alguns momentos para narrativas próprias, ancoradas na imaginação
do autor, e não em nenhuma
característica visual do objeto
sob inspeção. Esse olhar de fora
torna o livro fascinante, até para o mais calejado dissecador
de imagens.
Em todo momento, Dyer deixa claros dois aspectos fundamentais de sua busca: primeiramente, sua natureza pessoal
e opinativa, reiterada numerosas vezes mediante truques retóricos como o de imiscuir sua
própria voz nos momentos
mais improváveis ("não sei,
exatamente, quando foi que
Strand fez essa foto, mas me
apraz pensar que ela foi feita de
manhã") ou, então, o de denunciar sua falta de método ("de
certa forma, a estrutura tortuosa deste livro [...] pressupõe, como queria Diane Arbus, que o
tema é primordial").
Em segundo lugar, a faceta literária da empreitada. Se o autor não demonstra intimidade
com o jargão das imagens, maneja com uma erudição impressionante tanto técnica narrativa quanto a tradição escrita
da modernidade.
Atravessam o livro, em constante diálogo com os fotógrafos
analisados, referências a Rilke,
Pessoa, Steinbeck, Cortázar,
Huxley, Kerouac, entre outros.
As muitas notas e citações
acabam por formar textos paralelos, camadas de discurso
que vão se sobrepondo como
estratos geológicos, cada uma
com sua sedimentação, dureza,
alcalinidade.
Transparece a ambição do
autor de reproduzir, com a escrita, a estrutura complexa e
não linear por meio da qual as
imagens se operacionalizam.
Um trecho admiravelmente
cândido explicita essa intenção, contrastando-a com tentativas de construir narrativas fotográficas em formato de livro:
"Este livro pretende inverter o
processo, reiterar as possibilidades de simultaneidade e justaposição aleatória oferecidas
por uma pilha de fotografias".
Aventura
Compreendendo, corretamente, que as imagens suscitam instâncias de leitura múltiplas, paralelas, reversíveis e até
contraditórias, Dyer confessa
seu desejo de que "cada seção
de texto não [fosse] obrigada a
estar cercada por duas outras.
O ideal é que certas seções estivessem adjacentes a quatro, oito ou mesmo dez outras."
Trata-se, claro, de um sonho
impossível, já que a estrutura
livresca não permite desmembrar cadernos e páginas em
módulos trocáveis.
Mas o autor não se dá por
vencido. Chega a recomendar
que se leia o texto fora da ordem de sucessão, pulando de
uma seção à outra em livres releituras recombinantes.
A meta de Dyer parece mesmo ser a de traduzir em palavras a experiência da fotografia:
em especial, sua capacidade de
captar e preservar a essência de
um instante.
Fascinado pelo presumido
poder fotográfico de ver o todo
-inclusive possíveis verdades
ocultas- e transmiti-lo intacto
ao longo do tempo, o autor se
entrega a explorar o tema com
uma falsa ingenuidade que poderia facilmente descambar
para a puerilidade, caso sua elegância e fina ironia não servissem de rédea constante para
seu atrevimento.
É uma aventura audaciosa, e
o risco de se perder pelo caminho, constante, como nos muitos e longos trechos em que o livro descreve fotografias, com
riqueza de detalhes, e não as reproduz. "Por sorte, podemos
julgar por nós mesmos", conclui, ao comentar duas fotos
eróticas produzidas por Alfred
Stieglitz em 1921. Mas, como
elas não são mostradas, não nos
é dado fazê-lo, a menos que
compremos outros livros. Fica
com o autor a palavra final.
RAFAEL CARDOSO é professor de história da
arte na Pontifícia Universidade Católica do RJ.
O INSTANTE CONTÍNUO
Autor: Geoff Dyer
Tradução: Donaldson M. Garschagen
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 49 (304 págs.)
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