São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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Ponto de fuga

O arco e o marfim

Villa-Lobos e sua música identificaram-se com a expressão de uma "alma brasileira". Foi uma síntese operada dentro de inflexões profundamente nacionalistas ocorridas na cultura do país, durante o século 20. Trata-se de um processo artificioso e factício. Ele não compromete, em nada, as imensas qualidades musicais da obra, mas falseia-lhe a apreciação mais verdadeira.
O compositor foi plenamente convencido a fazer arte brasileira nos anos de 1920, em Paris. Escrevendo música "tropical", distinguia-se e se impunha, assim, no meio europeu. Depois, no Brasil, inseriu-se no nacionalismo crescente, que atingiria seu apogeu sob Getúlio Vargas. Antes de 1920, no Rio de Janeiro, a música de Villa-Lobos exprimia-se em francês, de modo genial, é preciso dizer. Suas duas "Sonatas Fantasia para Violino e Piano" acham-se entre elas.
A primeira, de 1912, traz o título "Désesperance". A segunda data de 1914. Ambas são esplêndidas. Constam agora de um disco recém editado na Itália, "The Violin Music in Brazil" (Dynamic). O violinista Cláudio Cruz -spalla da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp)- e o pianista Nahim Marum conferem a elas uma grande nobreza meditativa.
Nesse CD encontra-se ainda, entre outras peças, a "Sonata para Violino e Piano" de Henrique Oswald (1904), gravada aqui pela primeira vez. Oswald nunca cedeu a nenhuma demagogia nacionalista. Foi desdenhado dentro da cultura brasileira. Sua "Sonata" possui uma sutileza proustiana; o movimento lento é de intensidade comovente. Irmana-se com as de Villa-Lobos. Juntá-las no mesmo CD foi uma excelente idéia.

Ecos - As admiráveis "Sonatas Fantasia", de Villa-Lobos, conheceram, pelo menos, duas gravações anteriores às de Cruz e Marun. Uma delas é histórica e indispensável, de 1960, retomada em CD pela Funarte, com Oscar Borgerth e Ilara Gomes Grosso. O violino de Borgerth possui um timbre gutural, único, como é único o estilo veemente. As obras adquirem, aqui, um caráter imperioso, incendiado de energia.
O outro disco data de 1990, quando a norte-americana "Villa-Lobos Society" publicava uma versão, conscienciosa e dedicada, das duas obras, com a violinista Jue Yao e o pianista Alfred Heller.

Outrora - No cartaz, a silhueta medita diante de uma bicicleta sobre fundo azul, com o título: "Nostalgia". Nada disso desperta grande entusiasmo. Mas a peça, apresentada no teatro do Sesi, em SP, é teatro vivo, vigoroso, como poucos. Foi escrita e dirigida por Felipe Hirsch. No texto, a invenção flui sem parar, com diálogos esfuziantes, com situações que fazem a platéia rebentar em gargalhadas. Paira uma elegância sutil, impedindo que as falas mais escabrosas soem vulgares.
Os atores são capazes de registros muito variados: é espantoso vê-los passar, sem acessórios nem mudança de roupas, do comportamento adulto para o da pré-adolescência; ou, ao contrário, assumirem personalidades diferentes segundo o figurino que revestem. A peça não se embaraça com academismos de vanguarda ou com quaisquer malsinadas "raízes" brasileiras. Foge de convenções para atingir uma verdade teatral que a faz nova, inesperada.
A trama transcorre num passado recente, fazendo um balanço retrospectivo dos últimos 40 anos, por meio de uma trajetória pessoal que ocorre numa pequena cidade dos Estados Unidos. Hirsch move-se com naturalidade na música pop, no clima, na literatura norte-americanos, dominando tudo isso sem esforço. Mas o espetáculo não é apenas destinado para quem ama e conhece Salinger ou Bob Dylan: ele atinge qualquer platéia.

Desconsolo - É impossível que não exista um meio mais inteligente e respeitoso para com o público do que o empregado pelo teatro do Sesi para o acesso dos espectadores à sala. Os ingressos são gratuitos e não-numerados. Apesar disso, os que querem entrar são obrigados a filas intermináveis. É uma seleção feita pela resistência e pela paciência.


Jorge Coli é historiador da arte.

E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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