São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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DESGRAÇA NA CIDADE DE LEIDEN

por Johann Peter Hebel

Essa cidade chama-se Leiden há tempos imemoriais e nunca soube por que até 12 de janeiro do ano de 1807 (1). Ela fica à margem do Reno, já na Holanda, e antes desse dia contava 11 mil casas, habitadas por 40 mil pessoas, e depois de Amsterdã era a maior cidade do reino. Naquela manhã, todos acordaram como todo dia; este fazia suas preces, aquele deixava por menos, e ninguém pensava em como andariam as coisas à noite, muito embora um navio com 70 barricas de pólvora estivesse aportado na cidade. Todos almoçaram com gosto, como todo dia, muito embora o navio ainda estivesse lá. Mas à tarde, quando o relógio da torre maior indicava as quatro e meia -o povo industrioso dava duro em casa, as mães dedicadas balouçavam seus filhinhos, os mercadores cuidavam de seus negócios, as crianças estudavam na escola, a gente ociosa se entediava entre as cartas e as canecas nas tabernas, os mais prudentes se ocupavam com o dia de amanhã, com o que comeriam, beberiam ou vestiriam, algum ladrão metia uma chave falsa numa porta alheia-, ouviu-se de repente um estouro. O navio com suas 70 barricas de pólvora pegou fogo, saltou pelos ares, e num instante (rápido assim), num instante ruas inteiras cheias de casas mais tudo o que por ali morava e vivia foi destruído e reduzido a pilhas de pedras ou ainda terrivelmente ferido. Centenas de pessoas foram enterradas, vivas ou mortas, sob esses escombros ou feridas gravemente. Três escolas foram ao chão com todas as crianças; homens e animais que se encontravam nas ruas próximas ao desastre foram lançados para o alto pela força da pólvora e caíram no chão em estado lamentável. Por desgraça, irrompeu ainda um incêndio, que logo grassou por toda parte e que não houve meio de apagar, já que muitos armazéns cheios de óleo e gordura de peixe foram atingidos. Oitocentas casas entre as mais bonitas desmoronaram ou tiveram que ser demolidas. Viu-se então como as coisas podem mudar de feição da manhã para a noite, e não só com um pobre homem, mas também com uma cidade grande e populosa. O rei da Holanda logo determinou um prêmio considerável para cada homem resgatado ainda com vida. Também os mortos desenterrados do entulho foram levados à prefeitura, de modo que seus familiares pudessem cuidar de um enterro digno. Grande foi o esforço por socorrer a todos. Apesar da guerra entre a Inglaterra e a Holanda, vieram de Londres vários navios cheios de provisões e grandes somas de dinheiro para os desgraçados, e isso é louvável -pois a guerra não deve jamais penetrar no coração dos homens. Já basta o mal que ela faz quando troveja diante das portas e dos portos.

Nota do tradutor
1. Pronunciado à alemã, o nome da cidade holandesa soa como "dores", "sofrimentos" ou "penas".


Johann Peter Hebel foi escritor suíço (1760-1826).

Tradução de Samuel Titan Jr.



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